Já há algum tempo que queria escrever qualquer coisa sobre o que me parece essencial na política portuguesa de hoje - como já disse. É aquilo que exprime sempre, com a sua engraçadíssima exuberância gestual, um caro amigo meu: “vê no contexto!”. O contexto é indiscutivelmente o da economia global capitalista, mais abaixo o do consenso Washington/Frankfurt, com ele o euro, com o euro as regras que foram ditadas por quem lhe deu alguma solidez (alguma mas pouca, como se está a ver, e sem coerência): a Alemanha. Escrevo hoje porque não quero ser influenciado pelo que se passar amanhã em Berlim, na chamada de Sócrates ao paço.
Muita gente de esquerda, que estimo muito, parece-me estar desfocada deste contexto. Privilegiar a visão doméstica é legítimo em termos da capacidade de luta política, talvez ainda alguma a nível nacional, quase inimaginável a nível europeu, mesmo que, em primeira fase, por via de uma frente dos periféricos, contra os AAA. Também é aliciante porque temos à mão os culpados, e não há dúvida, também para mim, de que este governo é péssimo e é quase problema de saúde pública desratizá-lo. Mas é péssimo só porque governa mal em Portugal? Ou também, e principalmente, porque governa mal em total obediência aos ditames da economia política do sistema europeu?
Volto à questão do sistema. Entenda-se bem que não o aceito como desculpabilizante dos políticos concretos, que são seus instrumentos assumidos, convictos, não meros títeres. Mas entenda-se que considero infrutífera qualquer ação política, por maior que seja a sua virtude ideológica, social, fraterna, anímica, que não aponte a mira para os mecanismos essenciais do sistema, que são históricos, não são políticos (no sentido vulgar do termo).
Não sou economista - o que, nos tempos que correm, talvez seja uma vantagem política - mas sempre gostei de estudar economia, como amador aprendiz. Em época de crise como esta, com polarização extrema das escolas económicas, vou mais por uma certa vantagem minha, nada de particularmente revelador de qualidades pessoais, antes de mero traquejo profissional, de cientista: saber que não há verdades absolutas mas que, em cada momento, há uma teoria que a prática reforça, até refutação, e que quase sempre essa teoria não é a do senso comum ou da “verdade” escolástica; e não resistir a analisar criticamente qualquer afirmação, mesmo coisa tão “inegável” (e não é) como “o céu é azul”.
Muitas vezes, a crítica de “verdades indiscutíveis” exige um grande esforço de recolha de informação. Isto para se ter uma opinião contrária, fundamentada. Bem gostaria de a ter, porque, amador de economia, não tenho meios para fundamentar o meu keynesianismo, para não falar na minha matriz marxista, que me parece cada vez mais respeitável, nesta crise.
Mas o esforço de recolha de informação, em tempos de sítios na net de toda a imprensa internacional e de “clubes” de economistas, não é assim tão pesado para, ao menos, nos fazer pensar que “afinal, há quem escreva coisas aparentemente disparatadas, se comparadas com todos os economistas oficiais. Alguns até são Nobel. Então os oficiais são indiscutíveis, mesmo com os carimbos CE, BCE, FMI, BB, etc.?”
Por exemplo. Alguém escreve hoje, na nossa net, que o combate ao défice não é tão absoluto como se pensa? O que leio, mesmo à esquerda, são críticas às versões concretas do combate ao défice, mas sempre dizendo que “claro que é preciso combater o défice”. Mas combater o défice tem de ser obrigatoriamente levá-lo aos 3% de Maastricht? Porquê? 3 é número mágico (é verdade, era no meu tempo, cuidado com perdê-los). Como é que os EUA estão a dar a volta à crise financeira com défice de 9%? E como é que se pode escrever - Alejandro Nadal - que “quando se quer reduzir o défice, nem sempre é uma boa ideia cortar o gasto público. (…) O governo só tem controlo sobre o gasto, não sobre o défice. O défice depende do que ocorre em toda a economia. Quando existe capacidade instalada ociosa (como é o caso na actualidade) um programa de investimento público é produtivo e gera maior actividade no sector privado por meio de um efeito multiplicador. Tudo isso gera maior arrecadação, reduz a necessidade de endividamento, assim como o pagamento de juros mais adiante.” (Cheguei até aqui por via dos Ladrões de Bicicletas),
Por exemplo. Parece indiscutível, mesmo para os nossos comentadores de esquerda tradicional, que temos de cumprir os compromissos da dívida, senão os mercados levam-nos à bancarrota, eramá, os mercados misteriosos, nervosos. Mas lembram-se da Argentina, da sua “revolução” financeira de 2003, da quebra da paridade com o dólar (não é a situação em relação ao euro e à sua eventual dissolução?), da reestruturação da dívida? Porque é que os nossos políticos e economistas oficiais não nos fazem refletir sobre isto? Porque só há a receita do consenso de Washington/Frankfurt? E não se pode parar um minuto, mesmo que não se sabendo nada de economia, para pensar “será que é maluco este e outros economistas, que dizem isso mesmo, que a solução para os europeus periféricos é ir corajosamente (a esquerda é corajosa, por definição) para a reestruturação da dívida?”
Por exemplo. É difícil pensar-se em termos à David Ricardo em coisa tão limpidamente simples como se escreve no Politeia, “a Alemanha também pensa que pode manter uma zona euro em que ela seja o principal país exportador, com moderação interna de salários, baixa procura interna, contenção de importações e ter como principais compradores os demais países dessa mesma zona. Mas se estes ou alguns destes não vendem o suficiente para poder pagar o que nela compram, como vão pagar?”.
Por exemplo. Com moeda única, nenhum país da eurolândia pode recorrer ao mecanismo clássico da desvalorização monetária para ganhar competitividade nas exportações. Só pode recorrer à “desvalorização interna”, à alemã, isto é, a baixa dos custos do trabalho, da segurança social, a “flexibilização” do mercado de trabalho. Os alemães e os seus sindicatos aceitaram, a troco de crescimento da economia nacional. Os outros povos aceitarão, sem saberem como será distribuído esse correspondente crescimento da economia nacional? Já os islandeses, ao contrário dos irlandeses, ficaram muito mais livres, sem as peias da política dominante dos eurofinanceiros, para para adotarem medidas "heterodoxas", sem veneração pelos credores dos seus bancos falidos.
Com esta atitude largamente acrítica ou inadvertida em relação ao sistema político-económico europeu, é fácil o desvio da atenção. Por exemplo, 1., a luta contra a política de austeridade. Luta legítima porque a austeridade é mais para os desfavorecidos, porque os bancos ficam isentos, porque as mordomias continuam. Mas também luta inglória, porque exclusivamente ideológica, até mesmo demagógica, quando se trata frequentemente de amendoins, embora importantes no plano simbólico. Tudo obviamente importante, mas sempre com o sentido de que, mais importante historicamente - no processo histórico - a política de austeridade é um reflexo perverso e provavelmente anticientífico da ideologia (não ciência!) económica hegemónica. Fica para depois, a questão da hegemonia, mas entretanto, lembremo-nos de Gramsci.
Por exemplo, 2., a ideia generalizadamente aceite de que o défice é exclusivamente o resultado do desvario gastador, eleitoralista, dos governos. Reflete a tradição da discussão política, pró e contra o governo. Mais uma vez, longe de mim negar a sua validade, quantas vezes eu profiro impropérios em relação a este governo e ao seu engenheiro chefe, mas hoje não basta. O défice é reflexo da dívida e mais importante do que a dívida pública é a privada. Em particular, direta ou indiretamente, a da banca, que estimulou a das famílias.
Por exemplo, 3., e em consequência, a autopenalização de nós pecadores que exigimos uma solidariedade europeia imerecida, porque os civilizados, disciplinados, educados, nada amochados perante o poder, nunca historicamente manipulados, nunca historicamente dominadores, etc., alemães não têm nada que pagar com as suas virtudes privadas os nossos vícios públicos. Até acho que esta nossa auto-humilhação é hipocritamente freudiana. Afinal, quem tem toda essa culpa é o Zé, claro que não eu e os iluminados que sofrem este terrível destino de não termos políticos ao nosso nível, de não conseguirmos apanhar o elétrico, corre, menino!, porque os políticos voam depressa ao nível da sua ligeireza, não da nossa conselheiral lentidão sabedora.
Por exemplo, 4., a ideia acrítica de que a vinda da parelha Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF) e FMI é uma ajuda, sempre vista ideologicamente (ou como discurso moral). Ou é coisa desejada, para pôr a casa em ordem, porque o Padre Malagrida (“aka” Medina Carreira, boa piada de um meu amigo) não o consegue fazer; ou porque, por natureza, evocando só José Mário Branco, o FMI é diabólico.
Ora a questão essencial é que não se trata de nenhuma ajuda. Não é uma linha de crédito para o desenvolvimento e o investimento, não permite linearmente o resgate da dívida, mesmo no mercado secundário, os juros são altíssimos. As imposições austeritárias são viciosamente cíclicas, levando a recessão e a necessidade de novas “ajudas”. No caso da Irlanda, o sofrimento dos contribuintes vai pagar boa parte dessa “ajuda” destinada a salvar os bancos que criaram a crise com os seus produtos tóxicos (e a irresponsabilidade de negligência de regulação do governo).
Quando se tenta salvar a solvabilidade financeira de paises como a Grécia e a Irlanda, depois Portugal, quer-se garantir que eles cumprem a dívida, que os credores não vão perder. Quem são os credores? Os grandes bancos alemães e franceses. “So simple, stupid!”. Por isto, coisa entre banqueiros, curiosamente - ou não, porque ninguém os pode acusar de serem parvos - os nossos banqueiros não estão a ver com bons olhos o que todos os comentadores acham inevitável, a entrada dos homens da pasta de executivo.
Ainda uma nota politicamente incorreta. Este e outros meus escritos recentes podem cheirar a antigermanismo primário. Não é verdade. A cultura germânica é sublime. Muitos alemães elevaram ao cume a liberdade e a grandeza do pensamento humano. O luteranismo que, eu não religioso, admiro muito, ainda hoje marca tanto o profundo sentido ético dos alemães que me faz impressão, em amigos e familiares da minha geração, que não teve nada a ver com a guerra, o profundo sentimento de culpa e de remorso que transportam, tão diferente da forma como olhamos para o salazarismo, o colonialismo e a guerra colonial. Mas também é verdade que o nazismo não foi coisa de um bando de malfeitores. Caiu fundo na mentalidade e na maneira de estar (“Sein und Dassein”) alemães, é de facto uma culpa coletiva. E já nem falo de pagamento da dívida que têm para com toda a Europa felizmente vencedora do nazismo, mais os EUA, que financiaram a recuperação económica alemã do pós-guerra, mesmo dando de barato que não benevolamente, antes como jogo estratégico da guerra fria a começar. Fora, claro, todo o esbulho das riquezas dos países ocupados pela Alemanha durante a guerra. Estou a remoer no passado? Ou esquecer o passado é também esquecer que pode haver hoje uma 3ª Guerra Mundial em que as balas são notas de euro?
Aonde nos leva tudo isto? Voltando à ida vassálica de Sócrates a Berlim, a uma previsão fácil do que nos espera. Em si, a previsão é imediata, por tudo o que leio: mais semana menos semana, a tal “ajuda”, seja pela parelha FEEF/FMI ou, grande motivo para desavergonhada aldrabice do governo, nada de FMI, apenas o “novo” mecanismo decorrente do pacto de competitividade, se conseguirmos aguentar até ao conselho europeu de fim do mês. Entretanto, hipocritamente, continuam os governantes e outros dirigentes europeus a fazerem declarações sobre Portugal que, em vez de mostrarem de facto o apoio que sugerem, contribuem para açular os predadores do mercado financeiro.
Muitos leitores sabem o que isso quer dizer, o pacto de competitividade, mas não se perde nada em lembrar. Aumenta-se o montante do fundo, mas com contrapartidas pesadas exigidas pela sargenta prussiana (ou pela camponesa saxónica, como prefere o meu amigo JMCP): 1. Inclusão nas constituições nacionais de cláusulas de tipo Maastricht, limitando o défice e a dívida (já há bastante tempo que Luís Amado, babado, o defendeu). 2. Fim da indexação dos aumentos salariais à inflação. 3. Fixação da idade mínima de reforma ao valor alemão, 67 anos. 4. Uniformização das taxas fiscais, novamente que certamente pelo nível alemão. Entretanto, continua o governo alemão a recusar intransigentemente o aumento do orçamento europeu com transferências, a emissão de dívida europeia, a compra de dívida dos países em dificuldades pelo FEEF, o apoio comunitário à reestruturação das dívidas (neste caso, ase calhar será forçado a aceitar, se vir o incêndio a alastrar).
E nem sequer temos garantia de o governo alemão ficar por aqui. Depois da derrota de Hamburgo e com outras eleições regionais muito importantes a coincidirem com o conselho europeu, não me surpreende que haja endurecimentos de última hora.
Tenho o palpite triste de que, amanhã, vou ver Sócrates de regresso de Berlim e recordar a cena de Chamberlain a exibir o tratado de Munique, à saída do avião. Até já recordou antes de partir, com a incrível declaração de Teixeira dos Santos de que não se pode excluir um novo PEC. Declaração para uso da chancelerina, obviamente.
Mas qual é a alternativa? Dupont e Dupond? Volto à minha, alternativa à escala nacional conta pouco. Mas também qual é a alternativa para uma frente de “periféricos, uni-vos!”? Zapatero? E regressando da Europa ao Portugal de eleições próximas, PCP e BE também são alternativa ou debitam só o discurso político convencional, paroquial, sem visão global económica, que critiquei? Infelizmente, palpita-me que, mais uma vez, só me restará, como protesto quixotesco, o voto branco. Ou, quem sabe, mas acho que com riscos de que falarei um dia destes (Portugal não é o Norte de África e o Facebook português pode virar fascistado), as pessoas zangadas vão sair à rua e alguma coisa nova aparecerá.
P. S. - Um comentador escreveu coisa curta, "que esterqueira de blog". Não tendo em conta que isto revela outra estória que eu conheço, folgo muito por ser lido por quem acha isto uma esterqueira. Água mole em pedra dura... Talvez daqui a tempos 10% dos que hoje dizem isto tenham começado a pensar melhor.
Mas qual é a alternativa? Dupont e Dupond? Volto à minha, alternativa à escala nacional conta pouco. Mas também qual é a alternativa para uma frente de “periféricos, uni-vos!”? Zapatero? E regressando da Europa ao Portugal de eleições próximas, PCP e BE também são alternativa ou debitam só o discurso político convencional, paroquial, sem visão global económica, que critiquei? Infelizmente, palpita-me que, mais uma vez, só me restará, como protesto quixotesco, o voto branco. Ou, quem sabe, mas acho que com riscos de que falarei um dia destes (Portugal não é o Norte de África e o Facebook português pode virar fascistado), as pessoas zangadas vão sair à rua e alguma coisa nova aparecerá.
P. S. - Um comentador escreveu coisa curta, "que esterqueira de blog". Não tendo em conta que isto revela outra estória que eu conheço, folgo muito por ser lido por quem acha isto uma esterqueira. Água mole em pedra dura... Talvez daqui a tempos 10% dos que hoje dizem isto tenham começado a pensar melhor.
Os meus conhecimentos de economia, são também limitados, mas até hoje, ninguém me convenceu da dita inevitabilidade, de que haverá sempre ricos e pobres.
ResponderEliminarMaldonado
O PCP e o Bloco podem não ser, por isto ou por aquilo, alternativa, mas não estão rendidos. Por isso não voto em branco, apesar de saber que isto não muda com eleições.
ResponderEliminarMas há-de mudar!!!
V