terça-feira, 28 de junho de 2016

Referendo europeu, segundo o BE

Há dias, citei na minha página do FB as declarações de Catarina Martins sobre a eventualidade de um referendo europeu. A intenção era jocosa, sobre possíveis dificuldades (fictícias…) da “geringonça” mas, reconheço que justamente, tive comentários negativos. O assunto merece discussão, mais do que uns “sound bites” do FB.
Referendo? Porque causas? Sobre quê?
Antes da discussão das declarações para a comunicação social, convêm ver o que diz sobre isto a moção A, largamente ganhadora, e que serviu de base á eleição de Catarina Martins como coordenadora.
No seu capitulo “Defender Portugal do diretório da União Europeia”, o que monta para esta discussão, lê-se:
“Vencer a austeridade exige assumir o confronto com as instituições europeias, que as-  fixiam o campo das escolhas democráticas. (…) Não é hoje credível o projeto de uma redefinição democrática das instituições europeias ou que a disputa da relação de forças se faça a nível europeu. O combate à austeridade e ao autoritarismo exige a disputa de maiorias sociais em cada país, impondo instrumentos de soberania popular que permitam corresponder à vontade de rotura com a usura da dívida e a austeridade. Esse confronto não dispensa a cooperação e solidariedade das forças progressistas na Europa, mas convoca toda a esquerda para o confronto com as instituições europeias. É com essa orientação que o Bloco de Esquerda dialoga com outras forças políticas e movimentos sociais, no Partido da Esquerda Europeia como noutros fóruns.” 
Boa formulação, em aberto, assim como mais adianta se fala da dívida a meu ver com muito pouca concretização, comparado com esse “sound bite” do referendo”:
“A dívida pública e a do sistema financeiro são as maiores ameaças às contas do Estado e constituem os maiores problemas estruturais das contas nacionais. Renegociar a dívida pública e realizar uma intervenção sistémica sobre a banca privada, assumindo o controlo público, são processos essenciais para proteger os recursos nacionais, criando condições para o investimento, emprego e o reforço do Estado Social. O combate à corrupção, ao rentismo e à evasão fiscal, incluindo o cerco aos off shores, permite transparência no uso dos recursos públicos e responsabilizar quem lucrou com a crise e fugiu às suas obrigações fiscais.” 
Inteiramente de acordo. E os acordos com o PS?
As declarações de Catarina Martins não se encaixam nesta prudência, compreensível se se pensar na “geringonça”. São gritos de um dia para esquecer no seguinte, principalmente se se tiver em conta as reações negativas dos parceiros.
Começam por ser uma sucessão de “se”, em que não se percebe se um “se” se todos são determinantes, ou que conjunto de “se”. Se houver sanções? Em que montante? “Está-se a declarar guerra a Portugal e fica na ordem do dia “um referendo para tomar posição contra chantagem”. Qual é a pergunta exata desse referendo? Que chantagem? As sanções financeiras do incumprimento, a política de austeridade, o Tratado orçamental, o euro, a União Europeia? Até onde irá o referendo? À denúncia do Tratado orçamental, à saída do euro, à saída da UE?
Não se pode esquecer também que o referendo é uma faca de dois gumes. E que pode ser um grande tiro no pé. O referendo só é válido se a participação for maioritária. Alguém duvida de que, sem muito mais debate público e mediático, as pessoas, formatadas pela ideia adquirida da “Europa connosco” e com largo domínio pró-europeu da comunicação social, precisam de muito mais esclarecimento? E isto para não falar dos requisitos constitucionais da convocação de um referendo: a proposta é da Assembleia da República e a decisão final é de exclusiva competência do Presidente. Não é arma para se anunciar no calor de uma reunião mediática.
Desculpem a brincadeira do meu “post” no Facebook. Espero ter agora esclarecido a minha posição.

sábado, 25 de junho de 2016

A esquerda tem de imaginar uma nova Europa

Quando tenho um palpite errado, não o disfarço depois. Não acreditava na vitória do Brexit e felizmente falhei. Digo felizmente, tudo bem ponderado, dado que não ignoro os riscos e dificuldades, e me preocupam muitas das razões que provavelmente o influenciaram. Sei que vai haver consequências até para nós, mas julgo que o balanço é positivo. Com uma condição. Esta manifestação popular britânica, tendo muito de contraditório, não deve alimentar a direita xenófoba e ultranacionalista europeia. É dever da esquerda tomar a iniciativa.
As esquerdas europeias têm feito excelentes disseções do que enferma esta UE, de raiz e como evolução política a acompanhar o pensamento dominante neoliberal que, a reboque do ordoliberalismo alemão sempre influente na UE, mesmo na era Delors (os franceses sempre foram o “compaire” desta comédia), assumiu hoje natureza de pensamento único.
No entanto, não é claro o que, em última análise, pensam as esquerdas sobre a Europa, como ideia construtiva. A primeira linha de discussão teórica e prática é entre soberanismo e internacionalismo mitigado (deixo obviamente de fora a hipótese irrealista e manipuladora do federalismo). Depois, e de maior alcance prático imediato, o terreno privilegiado da luta, nacional ou institucional europeu. Pode também ser o europeu não institucional, mas parece-me que se reduz sempre a uma congregação de lutas nacionais, mesmo que coordenadas supranacionalmente.
A atual UE, o seu fundamento e normativo neoliberal, dominado por burocratas críticos e fiéis devotos dessa sacristia, a tábua-rasa dos princípios, a uniformização hegemónica do pensamento económico, a sujeição ao jogo dos poderes económicos, de estados e grupos económico-financeiros, é tida mesmo pelos mais entusiastas da utopia europeia como a negação da Europa idílica e anti-histórica que desejam, em “wishful thinking”.
Ninguém quer esta Europa. Mas como lutar contra isso é uma das mais vivas discussões políticas atuais.
A UE de hoje aprofundou as velhas divisões entre o norte e o sul que intencionava resolver. Para os parceiros do norte, a meta, embora cada vez mais ilusória, é a do seu estado de bem estar, pálida recordação dos tempos áureos da social-democracia dos anos 50. Para nós, os do sul, foi a “ilusão” da “Europa connosco”, dos fundos delapidados, dos movimentos de capitais que perverteram a nossa estrutura económica: desemprego, degradação do Estado social, aumento da disparidade entre rendimentos do trabalho e do capital.
Outro grande argumentou é o do papel de garantia da paz europeia desta UE. Há gente que ainda pensa, geomilitarmente, em termos das guerras do século XX. Guerra é, afinal, por qualquer meio, o ganho de soberania de um ou mais estados sobre outros. Klausewitz, bê-à-bá. Analogamente, golpe político era a saída das tropas dos quartéis, tomarem conta das instituições políticas, prenderem e executarem os adversários, mas sempre com o objetivo final de instalar um outro poder político e económico. Mas, agora, o capitalismo não tem prazer em optar por soluções sangrentas quanto consegue os mesmos resultados por outras vias que mais anestesiam o povo. Não é isto que se está a passar no Brasil?
Alguém duvida de que estamos em guerra, económica e política, já não militar? E que a Alemanha derrotada duas vezes em guerra convencional está a ganhar esta?
No entanto, registe-se muito do acervo positivo da UE: a livre circulação de pessoas, a promoção da produção cultural dos países europeus (nomeadamente no cinema), o intercâmbio de estudantes (Erasmus), o financiamento de programas de investigação, as diretivas – até por vezes demasiadamente exigentes, em termos científicos – de defesa do ambiente e do consumidor, etc. Mas não falo do mito do mercado livre europeu. Não sou perito, mas tenho dúvidas sobre a viabilidade e vantagem de algum protecionismo.
Por outro lado, em tempos de globalização em que ainda nos confrontamos com a dualidade do poder dos EUA e o poder selvagem da China, uma forte entidade económica europeia é importante. Creio que é mais fácil um consórcio de países europeus negociar com firmeza um TTIP com os EUA do que isoladamente (ou nesta UE subserviente).
Em resumo, sou absolutamente contra a solução dos problemas estruturais desta UE correndo para a frente. Da mesma forma, discordo de todos os utopistas que concordam comigo no diagnóstico dos males profundos, irremediáveis, desta UE mas que pensam que ela ainda pode ser reformável a partir de dentro ou de uma milagrosa mudança de ideias, simultânea, de dezenas de países com governos conservadores e formatados no pensamento único.
Plano B, DiEM, seus reflexos nacionais como o nosso LIVRE, são coisa de gente respeitável, inteligente muitas vezes, mas sem sólida base de reflexão política. Para já não falar no resultado catastrófico do europeísmo utópico do Syriza em que, apesar das nuances, continua a insistir Varoufakis.
O Brexit mostrou que o caminho está provavelmente acelerado, o que é um grande desafio para as esquerdas (apetece-me, no atual quadro europeu, e pelo seu compromisso governamental, falar só do PS português, quando falo de esquerdas no plural). Vivemos uma agudização das tendências centrífugas, contra a feroz ação centrífuga dos poderes e da máquina bruxelense. Acresce, com este Brexit, que já havia sido precedido por concessões importantes ao RU. Provavelmente assistiremos a uma UE fragmentada, sem lógica, em que, a pretexto da manutenção da entidade cada vez mais fictícia, cada um vai obtendo cláusulas à sua medida. Coitadinhos dos pequeninos!
A esquerda radical (ou as nossas esquerdas, dando o benefício da dúvida ao PS), têm denunciado os males da UE, têm vaticinado com razão a sua extinção a prazo, talvez curto, mas, a meu ver, fazem propostas de correção quase sempre de apenas melhoria do atual quadro. Mais democracia, mais poderes para o PE, mais transparência, menos controlo de Bruxelas, nomeadamente no que respeita ao Tratado orçamental, etc.
Não se trata de mais ou menos, mas de radicalmente novo. Essencialmente, uma nova proposta de esquerda para uma nova supranacionalidade e um novo modelo de cooperação interregional.
Julgo também que, na fase atual, é preciso, com realismo, distinguir as lutas a nível nacional (claro que potencializadas por convergências internacionais, mesmo os atuais partidos europeus) e, pelo contrário, as construções institucionais inter-países europeus, condicionadas, de um ponto de vista progressista, pelo simples facto de que a maioria dos governos europeus são conservadores e neoliberais. Mas há bem quem pense que a luta pode ser institucional, no quadro da atual UE, milagrosamente autorreformável.
Neste momento, não iria mais longe do que:
  • Ênfase na natureza confederal e não federal da Comunidade Europeia (designação preferível a União Europeia);
  • Extinção ordenada e cautelosa do euro, mas com possibilidade da sua manutenção como moeda comum (paralela, não única!), para transações eletrónicas internacionais;
  • Sistema flexível de paridades monetárias (“serpente”);
  • Uma declaração de princípios da Confederação Europeia e defesa dos direitos;
  • Tratados basilares sobre mobilidade e segurança dos cidadãos europeus;
  • Limitações por motivos importantes de índole nacional à liberdade de investimento em setores estratégicos e de nomeação de gestores para esses setores;
  • Manutenção do Espaço de Shengen;
  • Regulamentação da circulação de capitais e da banca;
  • Cooperação na defesa do ambiente e da biodiversidade, proteção do consumidor, gestão dos recursos naturais, licenciamento de fármacos, etc.;
  • Garantia da liberdade orçamental e fiscal, dentro de limites eventualmente decorrentes do uso do euro como moeda comum externa, com abolição do Tratado orçamental;
  • Extinção do BCE e redefinição da independência dos bancos emissores nacionais;
  • Criação de um fundo europeu de garantia da segurança dos bancos emissores nacionais;
  • Criação de uma “taxa Tobin”,
  • Proibição de paraísos fiscais na Europa e luta pela transparência dos depósitos e aplicações em outros “offshores”;
  • Remissão do papel da Comissão Europeia a proposta de normas, regulamentos comuns e tratados, a tabela comum de taxas aduaneiras, bem como de projetos de desenvolvimento comum;
  • Funções genéricas do Conselho Europeu em relação a problemas maiores, como a dívida, a integração de refugiados, a política externa, a política de defesa, etc.
É urgente que, com estas e obviamente outras ideias, a Esquerda elabore o seu projeto europeu, não ficando pela crítica da UE.

NOTA – Não falei do Parlamento Europeu. Tenho dúvidas. Parece-me, por um lado ineficaz, por outro conivente com a visão proto-federalista da atual UE. Preferia um órgão de vigilância dos princípios, por omissão e violação, de proposta ao Conselho europeu e à Comissão e de pronúncia sobre tudo o que discriminei atrás. Eleito diretamente ou em representação dos parlamentos? Não sei.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Programas e programas

O BE acaba de eleger os delegados à sua convenção, com base em moções que, afinal, refletem sem dúvidas o grupo de dirigentes que as subscrevem e se propõem, com essa base eleitoral, transpô-la para a composição dos órgãos dirigentes. À primeira vista, parece um jogo, porque toda a gente sabe quem está por detrás das moções à votação e à eleição dos delegados. 
Quem seguiu a última convenção, deu obviamente pela clivagem entre o grupo “fundador maioritário”, antiga moção U, a de Semedo, Catarina, Louçã, Marisa e amigos de Miguel Portas (os que restam depois da saída do manifesto) e, por outro lado, os radicais da moção de Fazenda. Hoje vão todos juntos, o que nem sequer critico, para mais não sendo aderente do BE (mas com muito interesse pelo que lá se passa).
Mas talvez não seja bem assim, um simples jogo tático e momento, dada a natureza atual dos partidos e uma relativa evanescência dos programas e da visão estratégica. Efeitos da grande mutabilidade da política nos nossos tempos.
Desde há muito tempo, e sob a noção distintiva de estratégia e tática, era tradicional os partidos terem programas a longo prazo, que incluíam a sua perspetiva histórica, o seu referencial ideológico e as linhas gerais da via para concretizar os objetivos estratégicos. Isto tanto à direita como à esquerda, principalmente no caso de partidos ideologicamente muito marcados (comunismo, social-democracia, democracia cristã).
Não é bem o que se passa entre nós. Do CDS, de quem ninguém duvida da sua mira ideológica, há apenas uma curta declaração de princípios (2300 palavras), da fundação em 1974. Tendo passado dessa democracia cristã para o populismo d direita, agora no neoliberalismo, tudo foi deixado à decisão dos dirigentes e congressos, sem uma clara redefinição dos princípios, desatualizados.
O PSD tem um programa, com última versão de 2012. É um programa curto, de 20 páginas, e tão genérico que serve para lideranças bem opostas.
O PS surgiu como “partido ideológico” e era de esperar que desse importância a um programa com certa fundamentalidade e estruturante. Tem desde 2012, no XIII congresso, uma declaração de princípios muito vaga, tanto mais quanto se pensa que essa época reflete um momento importante d viragem na comunidade socialista europeia, já muito contaminada pelo blairismo e a virar para a conciliação com o neoliberalismo. Daí que essa declaração seja um rol de palavras ocas e floreados, típicas de um partido de “catch all” e de clientelismo sem escrúpulos ideológicos.
Verdadeira tradição de um programa que define uma estratégia para iluminação das teses conjunturais sempre foi o do PCP. Tem sofrido alterações, mas pequenas, em função da conjuntura (por exemplo, o colapso do sistema comunista de tipo soviético). Fora isto, resta saber se o programa é adequado à sociologia e economia dos dias de hoje, de que tenho opinião contrária, ms não cabe essa discussão no âmbito deste artigo.
Volto ao BE. Que eu saiba, nunca teve um programa estratégico, talvez pela dificuldade inicial de elaborar um documento aceitarem por trotskistas, moaístas e dissidentes do PCP. O seu corpo doutrinário vai-se fazendo passo a passo, em moções às convenções e em programas eleitorais.
isto vai sendo um pouco moda. É o mesmo com o Syriza (que tem o programa de Salónica, mas exclusivamente de política económica e com objetivos eleitorais) e também com o Podemos, este chegando ao limite de evidentes contradições, oportunistas, entre os sucessivos programas eleitorais (populista, transversalista e oposto à ideia de esquerda-direita num dia, integrante de uma plataforma de esquerda clássica no outro).
Será que as condições atuais da vida política implicam isto, a regra da oportunidade e conjunturalidade dos programas? Claro que sim, no que toca às propostas para ciclos curtos e muito dependentes da conjuntura, por exemplo os programas eleitorais. Mas a definição programática essencial é necessária para a identificação de um partido. Julio Anguita, atualmente guru do Podemos, ficou famoso no seu tempo de PCE/IU pelo seu “programa, programa, programa!”.

Duas moções do BE, a A (largamente majoritária) e a R (ala mais radical) têm muito a merecer comentários neste quadro da relação entre a ideologia a prazo e a política a curto prazo, principalmente neste momento de todos os apertos do BE (e do PCP) deste jogo necessário mas perigoso da “geringonça”, em que se testam todas as capacidades de ginástica de cintura e coluna. Fica para próxima nota.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Transversalidade ou quarta social-democracia?

Ainda tenho muito para escrever sobre o fenómeno Podemos (e até certo ponto o Syriza antes de ganhar o governo), como desafio inevitável à renovação da esquerda tradicional. Se um partido que afirma não haver mais esquerda-direita tem o sucesso que tem, a esquerda, no caso a IU espanhola, tem de pensar bem.
Hoje não vou ainda escrever sobre isto, muito menos sobre a sua base ideológica, o populismo de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Vou-me centrar na polémica recente, depois da coligação Unidos Podemos, entre Podemos e IU. Até concordo com ela, em termos práticos. No entanto, ela é oposta ao que sempre defendeu Podemos, que recusou liminarmente qualquer aliança nas eleições de dezembro e, principalmente, à “transversalidade” (sim a “baixo-povo e cima-casta”, não a “esquerda e direita”) do ideólogo de Podemos, Íñigo Errejón.
Voltando a situar-se, para fins eleitorais, no binômio esquerda-direita, não admira que a exagerada flexibilidade volúvel de Iglesias (para não lhe chamar outra coisa) o tenha levar a posicionar-se de forma “imaginativa” na esquerda. É a nova social-democracia, a quarta, depois da traição da ala bernsteiniana na Grande Guerra, depois do esgotamento da segunda social-democracia do estado de bem estar, depois nada degenerescência originada pelo bairrismo, indo agora até à conciliação com o neoliberalismo.
Foi-se mais longe. Fazendo lembrar a tontice (que não desculpa a desonestidade) da questão posta pelo inefável candidato a Nobel da literatura José Rodrigues dos Santos sobre a raiz marxista do fascismo, discute-se agora na imprensa espanhola, com contribuição do próprio Iglesias, se os pais do marxismo, e até Lenine, foram sociais-democratas. É questão de sexo dos anjos, de jogar com as palavras fora do seu significado em cada época precisa.
Muito mais interessante parece-me a abordagem do escritor Paco Rodríguez de Lecea na Nueva Tribuna. Contra o esboço ideologicamente muito ambíguo que pablo Iglesias faz dessa mirifica “quarta social.democracia” no seu blogue “Otra vuelta de tuerka”, Rodríguez de Lecea enuncia os princípios caracterizadores de qualquer versão de social-democracia que não renegue as suas origens históricas, como movimento operário.
Baseia-se em grande parte numa análise do blairismo e da “esquerda instalada” pelo sociólogo e sindicalista italiano Bruno Trentin, no seu livro “La città del lavoro” (1997), de que não encontrou nenhuma tradução. Refere com ênfase uma posição de Trentin, segundo a qual um dos grandes erros permanentes da esquerda é atribuir as derrotas à conjuntura e às forças mais ou menos obscuras do capital, nunca olhando para os erros próprios.
Continuando, limito-me a transcrever parte do artigo de Rodríguez de Lecea, mantendo a versão castelhana:
Iglesias, o no conoce la aportación de Trentin, o la ha desdeñado. Paciencia. Pero no será posible revivir la gran tradición socialdemócrata y emprender un nuevo ciclo hegemónico, sin aplicarse a resolver antes los grandes temas trentinianos de las “culpas” situadas en nuestro campo. Con gusto comentaría esos temas por extenso, pero me cohíbe la certeza de estarme repitiendo, aparte de que la mucha extensión excede del alcance modesto de los apuntes de este blog. Me limitaré a situar tres ejes de discusión. 
1) El “trabajo humano” y su posición central en la vertebración de la sociedad. He puesto entre comillas “trabajo humano”: todo el trabajo, retribuido o no, dependiente o no. Hay una rutina en el pensamiento económico que predica que la tecnología viene a resolver de forma “natural” la cuestión; pero el trabajo humano no mengua ni desaparece en presencia de las máquinas; simplemente se transforma. Hay de otro lado una reivindicación de “trabajo decente” que no debe confundirse con lo anterior. “Decente” está referido a las condiciones laborales y a la retribución justa del esfuerzo del trabajador manual o intelectual; “humano” apunta al sentido último del trabajo, a su utilidad colectiva y a las posibilidades que abre de autorrealización de las personas en una sociedad más solidaria, más “común”. En la visión de la izquierda histórica, el problema del trabajo fue sustituido en general por el del “empleo”. Política de pleno empleo ha significado la pretensión de “cuadrar la planilla” de la fuerza laboral del país con un puesto para cada trabajador y un trabajador para cada puesto. Una bella ambición, pero planteada como la solución a un problema administrativo de distribución mecánica de un trabajo sin cualidades en una sociedad sin horizontes. 
2) Tanto desde el punto de vista del socialismo revolucionario como de la socialdemocracia, el objetivo principal de la política ha sido el Estado. Se dio en este punto un giro o una inversión significativa: primero el Estado era un obstáculo en el camino hacia la sociedad sin clases, luego un instrumento válido para alcanzar el fin de la emancipación, y por último se convirtió en un fin en sí mismo. Este proceso de mitificación del Estado como bloque sustentador supremo del poder, por parte de las izquierdas, ha corrido en paralelo a la permeación progresiva de sus estructuras y sus aparatos por parte de los poderes económicos “de facto”. A la institucionalización, por ejemplo, de las puertas giratorias y la colusión como método preferencial de la política económica. 
3) La prioridad correcta ha de ser, entonces, cambiar primero el meollo de la sociedad para imponer luego ese cambio en las instituciones; primero son las estructuras, y luego las superestructuras. La libertà viene prima,reclama Trentin. Importa más la transformación molecular de las personas que los gestos mediáticos en las campañas electorales. Solo así será posible remover estructuras perjudiciales muy arraigadas en la actividad política del país, pero sobre todo en las mentalidades de las personas.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

A moda das primárias


As primárias para eleição dos líderes partidários estão na boca de cena da discussão política. Há dias, foi assim reeleito António Costa. Há também pouco tempo, foi assim eleito Alberto Garzón coordenador da Esquerda Unida espanhola.
São processos muito diferentes, embora com aspetos comuns a discutir (mediatismo, protagonização do líder, subalternização das equipas, problemas de financiamento, etc.). Nos EUA, com os seus partidos muito atípicos em relação à tradição europeia, são coisa consagrada. Na Europa é que é recente e assume muitas variantes que afetam muito a discussão.
Primeiro. A votação é restrita aos membros do partido, aberta a simpatizantes e em que termos, ou aberta a todas as pessoas? A restrição aos membros do partido respeita a coesão interna e, se com base em moções programáticas, não afeta em princípio a discussão ideológica. No entanto, como veremos a seguir, pode afetar o princípio da direção coletiva, valorizando a priori o líder.
A abertura a simpatizantes, como fez o LIVRE e o PS na eleição anterior do secretário-geral, é aparentemente simpática e sinal de espírito democrático, mas exige uma noção bem definida do conceito e responsabilidade do simpatizante. Aliás, nem é coisa nova. O PCP sempre cultivou esta figura, embora sem tradução estatutária e muitas vezes só com significado instrumental. Curiosamente, o BE não a prevê nos seus estatutos, mas não sei se, na prática, o BE dá relevo significativo a simpatizantes. Deixa margem de manobra à participação. Eu, pessoalmente, não me importaria de ser reconhecido simultaneamente como simpatizante do BE e do PCP, com direito a opinião bem ouvida e a discordâncias amigáveis.
Por outro lado, a abertura a simpatizantes é aparentemente ilógica. Afinal, porque há-de ter o mesmo direito de intervenção partidária, até no momento decisivo da escolha do líder, quem não assume deveres, não paga quota, não participa regularmente na construção da posição política identitária? Ou, na escolha de outros dirigentes ou candidatos a cargos policias, se baseia apenas em curtos sumários de candidatura, sem verdadeiro conhecimento dos candidatos? A democracia à moda e aparentemente bonita não significa obrigatoriamente a seriedade e fundamento da democracia. Modas vão e vêm.
Já a abertura a todos os eleitores, como em alguns estados americanos, é perversa, porque, em alguns casos, simpatizantes de um partido podem usar as primárias de outro para influenciar a escolha dos dirigentes. Há casos bem conhecidos.
Segundo. A primária serve para votar um nome ou uma moção? Em Portugal, o caso do PS é ambíguo. Pela mediatização justificada pela importância do partido, ninguém liga ao documento político e é a personalidade do candidato que manda. Aliás, o processo está invertido: primeiro é eleito o secretário-geral e só depois, em congresso e com o peso da autoridade do eleito, é que é aprovada a moção política.
Já no LIVRE, por exemplo, nem sequer era preciso uma moção, bastando meia dizia de linhas de proposta política. Não é de estranhar que os resultados tenham obedecido linearmente à projeção mediática dos candidatos.
No caso espanhol, o que foi sujeito a votação primária, por todos os militantes da IU, foram plataformas políticas, mas era óbvio que se votava era no principal proponente. Quem elegeu Garzón muitas vezes nem terá lido a sua proposta.
Terceiro. Como se garante a responsabilidade coletiva? Na tradição leninista, hoje ainda em vigor no PCP, os dirigentes são eleitos em cascata. Os dirigentes propõem ao congresso o comité central, este elege os órgãos de topo e o secretário geral. Garante-se a manutenção do estilo coletivo de direção, mas é muito difícil qualquer renovação. Na prática, funciona em circuito fechado, em ciclo vicioso. É certo que funciona aqui o “espírito de partido”, muitas vezes confundido, por leigos, com unanimismo norte-coreano.
Pode-se dizer que, nos tempos atuais, a importância da direção coletiva está diminuída e que principalmente a mediatização destacou a figura individual do líder. É também verdade que a autoridade interna do líder é crucial, muitas vezes ancorada no seu papel no impacto mediático do partido. É um poder moderador e congregador de vontades, em muito contribuindo para o compromisso de facções e convergência de posições. No próprio PCP, é evidente como foi importante esse papel de Cunhal.
Também se deve distinguir partidos “ideológicos” e partidos populistas, “catch all”. Estes, como o Podemos em Espanha, são principalmente partidos de ação eleitoral e conquista de posições institucionais, muito mediatizados, com uma base de apoio muito individualista e muito sensível às ofertas de escolha “democrática” (muitas vezes viciada pela mediatização ou pelo maior acesso à internet e redes sociais). A experiência mostra nestes casos uma fraqueza do debate interno e elaboração política, circunscrita a um núcleo de académicos e “tertulianos” iluminados, em redor do líder consagrado pela massa Não admira que Laclau e a sua teorização do populismo/liderança estejam sempre a ser invocados. 
Note-se também que, no caso espanhol, a Assembleia da Esquerda Unida elegeu o seu líder e respetiva direção por um sistema misto de primárias e eleição em assembleia. Tem os problemas que referi, mas é de atender a que se trata de um partido/frente, essencialmente eleitoralista, coligação de vários partidos que, para outros efeitos, mantêm a sua autonomia. Assim, é importante garantir nos órgãos de direção a representação proporcional dos partidos constituintes. Mas já o maior membro da IU, o PCE, continua a ter para si próprio um mecanismo de escolha de direção tradicional nos partidos comunistas.
Pessoalmente, e com o direito que se tem de opinar sobre o funcionamento interno dos partidos, considero negativo esse procedimento tradicional, como o do PCP.  Dir-me-ão que isso é marxista-leninista e portanto no DNA do partido. Mas eu não sou leninista adepto do centralismo democrático dos tempos da revolução russa. Preferia que o comité central, como a mesa do BE, fosse eleita por representação de moções. É claro que há sempre o risco da personalização da direção, mesmo que as moções não identifiquem claramente o líder. Mas claro que tudo se sabe…