sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Bom ano

Tanto quanto nos deixarem... Ao menos boa disposição e, para isso, aqui vai uma cena do "season movie" mais popular deste ano.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

"Eu quero ser alemã?"

A meu pedido, uma amiga muito querida passou a escrito uma conversa que tínhamos tido. Aqui vai.
"Não sou primariamente anti-alemã e sabes como até uso o exemplo do meu primo U…, de quem gostas tanto, que andou nas lutas de 68 e ainda hoje até é criticado pela minha prima como homem que não vive fora da sua esquerda. Mas parece-me que os alemães estão a fazer tudo para nos obrigar a responder à pergunta “eu quero ser alemã?”. Eu portuguesa, com gosto pela alegria de vida, não obrigada não quero ser disciplinada, submissa, a ceder os meus direitos individuais cegamente a favor da grande pátria, mesmo que me sentisse arrogante e orgulhosa.
Às vezes falas-me da grandeza alemã, dos músicos de que tanto gostamos e dos filósofos ou do teu querido Marx. Mas afinal que povo é esse que deu ao mundo toda essa grandeza mas também coisas horrorosas? E o Hitler foi eleito, tinha milhões de gente a apoiá-lo, depois da guerra ninguém da gente da rua fez a sua penitência. Os da RDA se calhar ainda foram piores e a Merkel vem de lá.
Não há dúvida é que eles são patriotas e se calhar nós temos vergonha de ser, por complexo do salazarismo. Como é que é possível estarmos a aceitar isto? Acho que tu também, quando entramos na Europa, pensavas que era um sonho bonito, a nossa cultura comum e a solidariedade. Que solidariedade é esta, só de egoismo, de rivalidades económicas, de desprezo do norte pelo sul que não tem nada de se envergonhar como civilização?
Se calhar nunca houve a solidariedade que pensavamos no tempo das ajudas europeias. Afinal, foi quando os interesses já fizeram a destruição da nossa agricultura e da nossa pesca e não percebemos que já era perdermos independência. O que nunca houve foi esta coisa incrível de até quererem mexer na nossa constituição. Eu era muito mais jovem do que tu na constituinte, mas lembro-me muito bem do que foi a ideia de ter uma constituição. Como lês muita história, diz-me lá se te lembras de alguma vez na história alguém ter imposto a outro povo a mudança da sua constituição.
Mas vamos ver bem, esta Europa é possível? Não é uma fantasia de uns iluminados? Os povos europeus nunca foram iguais e sem serem iguais podem fazer uma união artificial contra a história?"

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O que pagar e a quem pagar?

Pagar ou não pagar? Há tempos, esta pergunta não fazia sentido para muita gente. Hoje começa a fazer. Pagar o quê? Há tempos, esta pergunta não fazia sentido para muita gente. Hoje começa a fazer. Pagar a quem? Há tempos, esta pergunta não fazia sentido para muita gente. Hoje começa a fazer.
Como a questão se põe só recentemente para muita gente, que agora começa a questionar, até dentro do seu partido, a posição ambígua e de “proposta modesta” de uma renegociação cordata de prazos e taxas de juro, é bom lembrar algumas coisas bem simples.
Há um discurso moral sobre a dívida, esquecendo que a economia moral é tão má à direita como à esquerda. “Paga-se a que é legítima, moralmente correta”. Claro que isto exige o juiz da moralidade. Por onde campeia a ideia, o juiz é um pequeno coletivo de cidadãos, com juízos que ficam em grupo de amigos e que não chegam aos milhões dos seus concidadãos.
Pode-se chegar a uma situação limite. Portugal tem uma dívida total de cerca de 400 mil milhões de euros (mM€), cerca de 217% do PIB, da qual menos de metade (170 mM€, 93% do PIB) é que é dívida pública. Na prática, só esta é que é analisável, porque se pode, pelo menos em princípio, obter os dados oficiais. Como é que se pode auditar a dívida privada?
Em relação à dívida pública é fácil, mas como analisar moralmente, por exemplo, a dívida  em relação à troika, com grande peso na dívida pública? E, em relação à dívida pública, simplesmente, só coisas irrelevantes podem vir ao de cima por esta análise, uns submarinos ou uns truques contabilísticos. A dívida não é consignada, é encaixe genérico e obscuro para cobrir as necessidades de pagamentos do Estado. Afinal, tudo está bem visível no orçamento de Estado. O Estado recebe x, faz despesa de y. Tem ainda de pagar o serviço da dívida, tem de amortizar a que chega ao fim do prazo, tem de a substituir por nova dívida. Com isto, y passa a y'. Para cobrir a diferença z=y'-x, o Estado emite dívida z. Elementar, meu caro Watson.
Isto é elementar. Onde é que se pode aqui fazer juízos morais sobre a dívida, o que é legítimo, moral, sobre esse bolo amorfo que é z? Os juízos são políticos. Se pensarmos só no acréscimo de dívida decorrente do défice primário (isto é, a diferença entre receitas e despesas públicas sem contar com o serviço da dívida), o juízo moral não é sobre a dívida, é sobre a política orçamental do governo.
E não vale discutir as PPP. Ou melhor, não vale discuti-las na análise da dívida, porque ela não é dívida atual. É coisa politicamente muito importante, compromisso para o futuro, mas só se fizeram tantas abusivas PPP exatamente porque não contam para as contas da dívida.
Diferente é discutir a dívida privada, mormente a da banca. Aqui até aceito bem juízos morais: como é que a banca comprou dívida pública a juro de 7% ou mais com dinheiros emprestados pelo BCE a 1% de juro? Do mesmo BCE que cobra 5% de juros no resgate a Portugal, aquilo que as pessoas conhecem como o plano da troika? Mas pergunte-se: não se paga esta coisa ilegítima? Deixa-se falir os bancos nacionais, enquanto se respeitam os grandes credores bancários europeus? Não se pensa nos efeitos no financiamento da economia? Ou - o que não se diz nas propostas modestas, nas auditorias - pura e simplesmente se nacionaliza a banca e se vai à origem desta crise mundial, a desregulação total do capital financeiro? Isto não tem nada a ver com moralismos resultantes de auditorias de “legitimidade”, é pura e simples política.
Esta coisa de “economia moral de esquerda” está na moda. É claro que é muito importante como bandeira política, os seus trabalhos e conclusões esclarecem os cidadãos dominados pela outra economia moral, a de direita, a das culpas dos devedores, da inevitabilidade de pagar de rastos o preço dessa culpa.
Mas nunca a política foi só isto. Como ouvi há dias, “a minha família sempre pagou as suas dívidas, só não as que eram ilegítimas, que não eram da nossa responsabilidade; é o que temos de fazer como país” (não consegui perceber o que são, no caso de uma família, as dívidas que não são da sua responsabilidade). É a tal economia moral, da dívida legítima ou ilegítima. Isto é a mais retinta herança da ideia salazarista indigente (ou não, que o homem não tinha nada de pobreza de inteligência) de que um país se governa como a sua casa beirã. 

A política, e a sua economia, é a gestão das responsabilidades coletivas. A de cumprir compromissos, pagar o que se deve, é uma responsabilidade, é a tal de como nas famílias. Mas há outras responsabilidades a pesar, a do desenvolvimento, do bem estar do povo, da segurança social e da facultação dos direitos elementares. E mesmo que se aceite a analogia da família honesta, há pais que ponham as filhas na prostituição para a família cumprir o dever sagrado de pagar as dívidas?
A auditoria à dívida começa com o caso do Equador. E muito bem e com sucesso, mas tendo de se ver porquê. Caso único. Foi numa iniciativa do governo que, antes ou em concomitância, tinha decidido reestruturar a dívida. Não esperou pelo resultado da auditoria, decidiu por critérios exclusivamente políticos e económicos que faria um enorme “corte de cabelo”, 70%. A auditoria serviu principalmente de justificação política e propagandista das medidas políticas, junto da opinião interna e internacional. Foi usada por num governo que a facilitou, não contra um governo que lhe vai secar as fontes.
No caso português, o que conta é saber se vamos e como reestruturar a dívida. E, no “corte de cabelo” inevitável, que critérios usar para decidir quem vai sofrer e quanto. Insisto: critérios políticos, não morais. Por exemplo, dos tais 400 mM€, 78 são de dívida à troika. Parece-me evidente que, politicamente, esta dívida tem de ser paga. Mas porque é legítima? Muito escreveria sobre a moralidade deste recurso ao resgate troikiano.
A reestruturação de uma dívida faz-se num fim de semana, com critérios estritamente objetivos, políticos e económicos. Devemos x, só podemos pagar y, é tudo. Faço corte de cabelo, não me interessa, em primeira fase, se é mais na testa ou se na nuca. Mais ainda quando se coloca outra questão essencial, também obrigatoriamente a decidir num fim de semana: reestruturamos no âmbito da eurolândia ou começamos por sair do euro? Não há nada de moral nisto. “It’s politics, stupid!”
Dito tudo isto, mantenho que toda e qualquer iniciativa que vá contra a hegemonia do pensamento neoliberal e da suas tradução de prática política, do eixo merkoziano até aos lacaios do nosso espaço doméstico, me merece apoio e simpatia. Mas, porque acho que me sabe a pouco, que fica sempre a faltar o essencial, a alternativa política que aponte para milhões de eleitores perplexos, não deixo de dizer que, entretanto, o rei vai nu.

P. S. - Em homenagem ao comentário de JMCP, aqui fica como imagem a lembrança de alguém cuja leitura se recomenda.

(Nicolau Maquiavel, por Santi di Tito)

Referendo

Quero um referendo ao próximo tratado europeu. Muito fica para escrever depois, até sobre esta coisa inicial - é ou não um tratado europeu? - até também sobre os riscos desta iniciativa de referendo, até sobre quem já avançou com esta proposta e porquê. Neste momento, escrevo só que quero um referendo e faço um apelo aos meus amigos e leitores. O resto virá a seguir. E acreditem que sou desprendido. Não me fecho em copas até ter um texto bem combinado para colocar na net como petição, eu à cabeça. Que alguém o faça; que eu, se me agradar, assino quando tiver azo. 
A política hoje é a economia política. Mas a política hoje como ontem e amanhã tem de ser coisa do homem comum e o homem comum não tem biblioteca nem sabe nada de finanças.
A política hoje foi assenhorada por um bando de gente sem vergonha, desvertebrada. Mas a política hoje como ontem e amanhã tem de ser coisa do homem comum e o homem comum é honesto, é íntegro, mesmo que não saiba nada da filosofia da honestidade intectual e nunca tenha lido Epicuro, Descartes ou Espinoza.
A política hoje continua definida por categorias com total validade ideológica, desde logo esquerda e direita. Mas a política hoje como ontem e amanhã tem de ser coisa do homem comum e o homem comum tem sido confundido com terminologias que, por uma questão de palavras, o afastam da noção das dicotomias essenciais, sem a importância mas também o significado subtil de “o nome da rosa”. Tenho de arranjar um novo nome para a minha querida esquerda, porque este foi muito conspurcado e não só pela direita.
A política hoje está nas mãos de gente apátrida, traidores como Camões reconheceu que sempre houve na nossa história. Mas a política hoje como ontem e amanhã tem de ser coisa do homem comum e o homem comum sabe o que é ser modesto mas importante grão de areia de tão pequena pátria como esta pequena praia ocidental. 
A política hoje está nas mãos de cobardes que se ajoelham diante dos efemeramente poderosos, sargentas prussianas ou patéticos gendarmes franceses de opereta. Mas a política hoje como ontem e amanhã tem de ser coisa do homem comum e o homem comum malha varapau à malhadinhas ou ao menos, se não pode mais, manguita.
A política hoje está nas mãos de gente egoista e mesquinha, à menino de escola  “sô pfessô, foi aquele menino, não eu, foi o grego”. Mas a política hoje como ontem e amanhã tem de ser coisa do homem comum e o homem comum, como dizia Torga dos seus transmontanos, é aquele que responde ao bater à porta “entre, se vem por bem”.
A política hoje está nas mãos de gente que confia na impunidade, na brandura dos costumes a que o seu salazarismo cultural de infraestrutura mental os conduz. Mas a política hoje como ontem e amanhã tem de ser coisa do homem comum e o homem comum andou numa das mais terríveis guerras civis, as lutas liberais, foi atrás da Maria da Fonte e lutou na Patuleia (sem que eu elogie essa guerra).
O homem comum julgava que tinha entrado num clube de nações de primeiro nível mundial, exemplo do maior avanço da civilização, coisa que lhe disseram - a Europa connosco - que era o supra-sumo da democracia, um espaço europeu de iguais, fosse o pequeno Portugal ou a enorme Alemanha.
O homem comum ouve agora que afinal dois governantes medíocres, acolitados por mais muitos outros e incluindo o seu, empurrados por quem verdadeiramente manda, os homens da finança, vão fazer tábua rasa de tudo o que ainda é respeito elementar pela lei e pelos alicerces da nossa noção de estado democrático e de direito, a casa comum da gente de bem
O estado democrático moderno tem raiz muito notória no parlamentarismo inglês expresso na Magna Carta. O essencial desse documento seminal é o direito dos povos a decidir dos impostos que pagam. Isto é, do orçamento do Estado. Nunca ninguém até agora se atreveu a limitar esta coisa basilar da democracia e dos poderes essenciais dos parlamentos.
Até esta aliança merkoziana querer impor que o nosso direito soberano de votarmos as contas públicas, por meio dos nossos representantes, seja limitado por um “governo económico europeu” que é apenas o visto prévio, burocrático, exercido por entidades europeias sem legitimidade democrática, sobre as propostas de orçamento, a ver, “nihil obstat” como nos tempos inquisitoriais, se os parlamentos podem então exercer o direito de voto, quase reduzido a uma formalidade.
É claro que têm razão todos os que dizem que o euro exige um governo económico europeu. Mas governo económico, orçamento comum, solidário, à Estados Unidos, não é aquilo que nos estão a impor. Desafio um amigo meu americano, qualquer, a comparar a visão federal de Jefferson e dos outros pais da União com o discurso horroroso do casal merkoziano. Ou até o meu caro amigo Bernie, suíço. Mais tarde escreverei sobre isto.
Nem falo sobre as regras que vão ser impostas, mais ou menos tantos por cento.  Nem falo de muitas outras coisas que vêm no próximo tratado. Nem falo do desrespeito pelos povos que é esta conversa de tratado comunitário a 27, mas se não pode ser será a 17, com mais os que vierem, coisa reveladora da falta de ética política e de sentido de grandeza histórica e civilizacional dos governantes desta Europa em fim de ciclo histórico, numa nova queda do império romano.

Hoje, falo só do político. E falo como português indignado. Como cidadão que quer que a sua voz seja ouvida. Sem menosprezo por muitas outras formas de manifestação política, dou particular atenção àquilo em que muita gente me acompanha - a nossa voz é o voto (não só!). 
Assim, reclamo a convocação de um referendo antes da ratificação por Portugal do próximo tratado decidido na cimeira de 8-9 de dezembro.
NOTA - Isto de referendo tem muito que se lhe diga, na prática. Quem viveu na Suíça até tem boas razões para refletir. Pesei bem antes de fazer esta minha modesta proclamação, mas não quero agora enfraquecer o seu efeito e significado com considerações práticas que ficam para amanhã ou depois. E nem me importa quem já o propôs. Se o fizeram a sério, estendo-lhes a mão.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Será que estou errado?

Volto à entrada recente sobre o défice estrutural.  Ouvi (ontem, 15.12, 20:13) uma jornalista da RTP1 confundir défice estrutural e défice real ou total, referindo-se a uma intervenção parlamentar de Luís Fazenda, do BE. "Ignorância de jornalista de última geração", pensei, até sem que isso fosse coisa impensável. 

Mas, de imediato, passaram à tal intervenção e aposto que qualquer espetador médio pensaria que Fazenda, falando como falava do monstruoso limite de défice de 0,5%, não estava a falar de défice estrutural mas aparentemente daquilo de que as pessoas falam, o défice total limitado a 3%, segundo o PEC. Estava a dar a entender que o défice, sem mais especificação, terá de limitar-se a 0,5%, tanto mais que até comparou esse valor com défices atuais de 4,5 ou 5,9%. Ao fim e ao cabo, o que dizia era simplesmente isto: "se já estamos como estamos para garantir o máximo de  4 ou 5% de défice, como é que vamos poder chegar a 0,5%?". Eu acho que o austeritarismo é mau, com 5, 3 ou 0,5%. Mas para defender esta minha posição, não preciso de aldrabar números.
Quero crer que não foi coisa intencional. O BE tem bastos economistas, alguns bem conhecidos, como bloguistas, que, se percebessem que era truque do seu deputado, certamente ficariam indignados. E Louçã é professor de economia. Mas acho que, propositado ou não, foi erro inadmissível num discurso político. Ou então sou eu, leigo, que estou errado, que não percebo a diferença entre défice total, défice cíclico e défice estrutural.

Torturado por esta dúvida fiquei a matutar em coisa importante: nenhum deputado do triplo arco troikiano aproveitou este deslize para trucidar Fazenda. Conhecendo-se a alta competência e agudeza dos deputados, a probabilidade de isto acontecer é ínfima. Portanto, em conclusão, sou eu que estou errado. Que os meus caros leitores me desculpem. E até aceito que não me elejam como deputado.

NOTA - Mais uma vez, dir-me-ão amigos e gente respeitável das minhas bandas que estou a dar tiros no pé, a criticar a "esquerda", a dar munições ao inimigo. Não creio. Como escrevi antes, penso que só chega ao homem comum e honesto uma esquerda que seja honesta, incorruptível, não demagógica e com sentido da democracia real, participativa. Esta esquerda ainda não existe e é preciso que se diga isto, porque, quando ela aparecer, não é nada de semelhante à rigidez sectária do PCP ou à aldrabice do BE. Portanto, malhar "à esquerda" não é suicida, é rapar ervas daninhas, é abrir caminho para o que é preciso fazer-se caminhando e urgentemente. 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A responsabilidade dos arquitetos


Hoje vai tema pouco tratado nestas escritas, a estética e, mais especificamente, a arquitetura. Afinal, a política não é tudo na vida. A pergunta que faço parece-me raramente suscitada: qual é a responsabilidade profissional de um arquiteto? Ninguém duvida da responsabilidade do médico, do advogado, do engenheiro. Em contraste, ninguém coloca esta questão em relação a criadores, músicos, pintores, escultores, escritores.
Se um músico compõe uma obra imprestável, mal dele, vai condenado ao esquecimento da sua obra. O mau pintor não vende ou vê os seus quadros remetidos para a arrecadação. O escritor, idem. São atividades artísticas sem implicação social direta. Claro que a têm, indiretamente, por exemplo se um romance for de apologia racista sem aviso ao potencial comprador ou se um quadro em local público permanente retratar Hitler a subir aos céus transportado por anjos. Mas a condenação é fácil e retira a obra da esfera possível de influência. No limite, pode ser destruída.
Por isto, em geral, recuso obviamente qualquer “ditadura estética”, em relação às artes em que eu ou qualquer pessoa é o único juiz de gosto pessoal, o que não quer dizer que não procurando o auxílio da crítica. Até tenho defesas fáceis, como arrumar um livro lido só até meio, nem olhar para um quadro numa exposição, sair do cinema a meio (e tudo isto me acontece, embora, no último caso, por razões práticas, me aconteça mais dormir uma boa soneca).
A arquitetura é diferente. A obra arquitetónica raramente pode ser escamoteada e muito menos destruída depois da construção e, para o bem e para o mal, é uma presença ostensiva, no circular de uma cidade, para milhares de pessoas por dia. Pode ser uma lição de estética, um prazer de contemplação, um anúncio de evolução do gosto. E pode ser uma agressão que nos é imposta ao nosso prazer de bem ver a cidade. Temos direito ao bom ambiente. O que quer isto dizer? Bom ar e espaços verdes? Só? E bom ambiente estético?
Para mim, as torres das Amoreiras (confesso que já as banalizo) ou a sede aguitarrada do BNU na Av. Berna, bem como outras taveirices,  insultam o meu sentido estético. Mas tenho o direito de falar no “meu” sentido estético? Quantos discordam dele? Quem é o juiz? Ou não tem de haver juiz? Perguntas de resposta difícil, todavia importantes. 

O arquiteto não trabalha só para si e para o cliente, tendo este até pleno direito individual, de pagante, ao mais horroroso mau gosto (e não me venham com o “gostos não se discutem”). Ele impõe as suas obras à sociedade, ao contrário, como disse, dos seus relacionados pintores e escultores. A sua obra é pública (em relação ao aspeto exterior, ao volume, à ocupação de espaço público); a dos pintores e, em parte, a dos escultores, é privada.
Claro que não falo de obras controversas mas de indiscutível qualidade, problematizantes. Eu gosto do CCB e da Casa da Música, do pavilhão de Portugal na Expo, dos edifícios de Byrne no Estoril; não gosto das coisas de Pardal Monteiro depois do Técnico (mas este acho magnífico, até às torres novas); detesto o Areeiro do grande Cristino (o do Éden) e ainda mais a cidade universitária de Coimbra; não gosto da Caixa Geral de Depósitos em Lisboa; falando de África ex-portuguesa, gosto da racionalidade de Vieira da Costa, não gosto do artificialismo de Pancho Guedes; mas respeito inteiramente as opiniões contrárias. Porque são opiniões que têm em comum o reconhecimento da qualidade. 
Afinal, como responder a tudo isto? Podemos arrasar a Brandoa? Vamos destruir os milhares de casas de emigrante espalhadas por todo o país, mormente no norte? Mas esse exagero impraticável é impeditivo de haver juízes de mínima qualidade artística antes da aprovação dos projetos? Mas, novamente mas, com que padrões e critérios? A democracia é complicada…!
Tudo isto vem a propósito da nova igreja do Restelo, de Troufa Real, que se vê na imagem, e que ele diz, sem que eu perceba minimamente, que, no Restelo, representa uma caravela. Estão mesmo a ver a caravela? Sem palavras.
Nota pessoal - Quase nenhum amigo meu, a não ser os dos tempos de liceu, sabe que hesitei bastante na escolha de curso. Deixadas para trás algumas coisas de dúvida efémera, como matemática - sinal da minha incontornável incapacidade idealista de lidar com o concreto - ou direito - só pelo prazer da retórica e da argumentação - ficaram duas coisas que não têm nada de comum, medicina e arquitetura. Ou melhor, têm uma coisa em comum, que me gabo de ter e que me foi muito útil no terrível estudo da anatomia do peritoneu, a intuição do espaço, da geometria tridimensional, o que faz que ainda hoje só falhe por poucos por cento quando digo que "esta parede mede 5 metros". Não levem a mal o gabar-me, é brincadeira ou então elogio de coisa herdada de avô e pai. Afinal, não fui na vida nem médico nem arquiteto. Sobre medicina ainda vou escrevendo de vez em quando. Hoje saiu-me a arquitetura.

O que pode hoje escrever um não economista?

Leio regularmente o blogue Arrastões. Um dos seus principais animadores é Daniel Oliveira, que gosto muito de ler. É conhecido por ser militante do BE, embora numa posição marginal, que me desperta muita curiosidade sobre o que daí poderá vir em relação a algumas minhas preocupações.
Um seu “post” recente, “Um golpe de estado constitucional”, fez-me pensar no risco, que assumo com grande preocupação a cada vez que publico um “post”, de quem escreve politicamente numa época em que a política é essencialmente economia política e nos podemos interrogar sobre os riscos de descredibilização política dos leigos que escrevem erros sobre economia. 
Quantas não direi eu, até no comentário a DO, que se segue? Mas o reverso da medalha é o silêncio dos cidadãos não especialistas, o domínio dos economistas. Ou, como cada vez mais vejo, o refúgio dos generalistas num discurso político tradicional, "partido contra partido" (como se fossem muito diferentes), "quem teve a culpa da dívida" (Sócrates? ou porque não Barroso, Guterres, Cavaco? afinal todos e nenhum porque a culpa foi da ignorância económica e do domínio do pensamento económico neoliberal). É um discurso, a meu ver, desajustado dos tempos atuais. Confesso que já me custa lê-lo, mesmo quando escrito com grande nível intelectual.
Comentei no Arrastões (com alguma edição do texto que se segue):
Concordo com a generalidade do "post", mas lamento ler um erro primário, considerações sobre a nova "regra de ouro", com desconhecimento do que é o défice estrutural. Nem tudo se pode desculpar só porque se é leigo. O leitor quer ver que escrevemos sobre o que sabemos. 
Claro que nenhum país vai ficar sujeito a uma limitação do défice, tal como geralmente se fala dele, de 0,5%. Na prática, o limite do défice total andará por volta do limite imposto por Maastricht e o seu PEC, isto é, 3%. 
O défice estrutural é apenas uma parte do défice total. É aquela que resulta de decisões políticas discricionárias dos governos, sem contar com o défice cíclico, resultante de regras automáticas e diria que incontroláveis decorrentes de variações ao longo de um ciclo económico. Por exemplo, custos de empréstimos e PPP assumidos por governos anteriores, alterações das expetativas de despesas e receitas por razões de mudanças no quadro económico mundial, efeitos da recessão, custos de matérias primas, etc. 
É por isto ser tão vago que já haja quem diga que a nova regra de ouro, ao contrário da rigidez primária dos critérios de Maastricht, vai ser inócua. Que tribunal vai decidir se uma certa parcela do défice é estrutural ou cíclica?  
Um défice total com máximo de 0,5%, coisa de que a Alemanha está longe (por excesso, porque o seu défice total é muito maior), devia parecer suspeito mesmo a quem não é economista, como DO e eu não somos.
Qual a margem de manobra hoje do opinador político sem domínio elementar da economia? A minha resposta muito banalmente prática é que tive de comprar um livro que estou a estudar como se ainda estivesse na universidade: Krugman e Wells, "Economics", quase 1000 páginas já devoradas quase até ao fim. Difícil? Com uma ou outra ida à Wikipedia para ver “background” ou definição de termos, ainda não houve um parágrafo que não conseguisse aprender.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Nova esquerda, é urgente

Há muita gente em orfandade política. Mais conscientemente, porventura com angústia - falo por mim - gente de esquerda que só vê nela hoje becos sem saída ou estreitas veredas que ninguém sabe aonde podem ir, mas certamente a parte nenhuma a curto prazo, nem sequer em termos de calendário eleitoral.
E também muito mais gente, que nem se consegue identificar com categorias políticas estabelecidas - como, por exemplo, esquerda e direita. Para estes, que cada vez mais se indignam, mas numa indignação de homem comum que não podemos pretender que seja a dos “indignados” com vagar e cultura política (?) para indignação na rua. Falo antes é dos muitos que, tendo estado nos tais 80% das últimas eleições, hoje me dizem - e dizem mesmo, porque é gente boa e honesta que conheço, não são invenção - que, se houver eleições ou qualquer outra chamada às urnas, foram enganados pela última vez há meses. Mas em quem podem votar, se também têm total descrença - em parte preconceituosa, em parte justificada - nas atuais alternativas de esquerda?
Tendo até protagonizado (confesso que sem muito entusiasmo) um grande exemplo de abnegação partidária, a entrega do MDP ao que a seguir veio a ser a Política XXI, e porque isto radicava num profundo processo partidário interno de necessidade de construção de um partido alternativo de esquerda, creio estar bem posicionado, vinte anos depois, para dizer algumas coisas com clareza, porque não sou diletante de clube político nem guru de discursata demagógica a acampados no Rossio. Falta-me já tempo de vida, cada dia é dia a não desperdiçar com flisterias. E cada vez me é mais importante, sentindo-me coitado do Álvaro de Campos, eu dizer-me, à mesa do café ou na plateia embevecida com alguns debates, com alguns dislates de infantilização política de gente serôdia, “merda, sou lúcido”. Isto vale para a política, oh se vale! 
Porque não divagar sobre este tema na minha idade tão sentido, o Tempo?
Começo pelo tempo zero. Ironicamente, é o de muitos jovens hoje em protesto. Saem à rua porque alguma coisa os motiva, protestam limitadamente contra coisas que lhes dizem muito, mas não têm qualquer noção do valor político do tempo. A manif tanto pode ser hoje como daqui a um ano, tem aparentemente o mesmo valor porque o protesto é o mesmo. Cada coisa vale por si própria, não há um fio condutor de estratégia política. O que vale é a catarse. Pode parecer que é qualquer tempo na hora seja qual for, mas que afinal se esgota ao fim do dia.
Depois, o tempo do pequeno universo, que não se sabe se se vai expandir se colapsar. Iniciativas pontuais, circunscritas, em quantas alinhei ou até promovi, como dirigente estudantil, mas sabendo que eram mais uma pequena peça na construção de uma grande luta. Hoje não, perdeu-se o sentido estratégico do eixo norteador da luta, cada iniciativa mobiliza os seus entusiastas (o que é muito bom) como se essa iniciativa esgotasse redentoramente o fim da luta (o que é muito mau). Já escrevi sobre isto.
Não sei se ainda pior, mas pelo menos mais triste e menos entusiasmante, o tempo do pousio sobranceiro. “A situação objetiva é desfavorável, as pessoas estão pessimistas, não se consegue mobilizá-las, ao menos nós, como clube bem pensante, vamos trocando ideias semanalmente”. E nem sequer se dando ao trabalho desta coisa, talvez patetice, de escrever em blogue com traço de metal fulgente, como dizia Graciliano, “quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas”. Nos círculos de bem pensantes?
A vida não espera! Para mal dos que estão à espera de fadas.
Da fada da sua autoconfiança política, esperam os que fazem grandes planos como se a vida obedecesse aos seus neurónios. Por exemplo, “é preciso mudar o BE, mas temos um grande plano, vai ser coisa para uma convenção lá para o fim de 2012”. Claro que a estão já a preparar, com os dados de situação real do fim de 2011. E no fim de 2012, será a mesma recessão, a mesma dívida, a mesma política europeia, a mesma atitude dos cidadãos em relação ao sacrifício que hoje ainda acham que vem de “o que tem de ser tem muita força”? O mundo vai parar até à milagrosa convenção? Não têm a noção do tempo?
Ou a fada do entusiasmo de “hoje é que sim, não interessa amanhã”. Iniciativas obviamente muito importantes politicamente, se enquadradas numa luta com eixo estratégico, mas parecendo muitas vezes auto-confinarem-se. Por exemplo, como critiquei, “primeiro a auditoria cidadã à dívida, depois a decisão de reestruturação da dívida e/ou saída do euro”. Tolice! Auditoria à dívida muito bem, mas é apenas um instrumento político. Melhor é usado por um governo empenhado na reestruturação, não como ação de oposição, sem prejuízo de ela valer muito, como outras ações de oposição. Mas não é um objetivo político, em si, muito menos passo prévio, necessário, a outras decisões de fundo.
Ou ainda a fada do “todos unidos”. Central é unir as “esquerdas”, coisa que ouço desde que se começou a não se saber muito bem o que são essas esquerdas. Estrategicamente, historicamente, é inegável como grande objetivo político. Mas faz-me lembrar a anedota dos escuteiros que queriam ajudar a atravessar a rua a velhinha que não queria. Concordo inteiramente com que os escuteiros se propusessem um longo trabalho de convencimento da velhinha, mas de forma alguma quando defrontados com a situação de vir ou não na rua o autocarro a desafiar quem tem pernas para correr e o cruzar. A velhinha certamente morreria atropelada.
Há dois tempos na política, o da estratégia e o da tática. Há o do trânsito calmo com calmo atravessar da rua e o do tal autocarro a alta velocidade. Neste momento, o autocarro é a eurozona em crise, é a loucura da política neoliberal do austeritarismo, é o da sujeição “de traição à pátria” em relação ao eixo Merkozy, é a reverência abjeta em relação ao capital financeiro, os grandes senhores.
Tendo isto em conta, é importante que se apoie todas as iniciativas que convirjam para o objetivo central de luta. É importante entusiasmar os velhotes políticos acomodados, mesmo que os seus alibis sejam criticáveis. É importante dialogar com todos os que, nos aparelhos existentes, se estão a colocar nas suas margens, com destaque para contestatários, mais ou menos firmes, no PS e no BE.  É importante acompanhar os que acreditam em fadas, mas fadas em que eu já não vou.
Todavia, sempre, é essencial ter em conta os tais dois tempos da política.  O das fadas é o tempo do sonho e das boas intenções. O outro tempo, das gentes com pés na terra, é o da crise, da acelerada caminhada em vórtex para a espiral recessão-dívida-recessão. É o do euro a colapsar sabe-se lá quando, mas ninguém a poder garantir que não antes da tal convenção do BE ou de os clubes nas margem esquerda do PS deixarem de ser só clubes de bom jantar. Por bonito e romântico que seja lembrarmo-nos de “le temps des cérises”, não é o tempo real. O tempo real é difícil de apreender, mas talvez isso seja a maior sabedoria política.
O tempo obriga a coisa tão simples e tão difícil, ao mesmo tempo: para corresponder eficazmente aos anseios ainda tantas vezes mal formulados por milhões de pessoas, é preciso urgentemente uma alternativa no plano político institucional, porque a arma política única dessa gente não é a saída à rua, é o voto. A rua é fundamental, indispensável como forma de luta, mas não vai dar nenhuma revolução em tempo útil, o tempo da provável implosão do euro, o tempo da certa miséria portuguesa.
Urgente é a oferta de uma alternativa partidária, de uma nova esquerda, consequente, e por isto capaz de ser apelativa, pela sua seriedade, ao voto de muita gente séria que acha que “assim não vamos lá”. Para toda esta gente, uma nova alternativa tem identificações essenciais, que são transversais, coisa comum a toda a gente bem formada: é honesta, incorruptível, não demagógica e com sentido da democracia real, participativa. Não é fácil, mas nada tem tanta força como ser necessário.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A “Iniciativa Cidadã da Dívida”

Há dias, partilhando com um amigo críticas a algumas atuações de esquerda, dizia-me ele que não as divulgava porque, em guerra, não dava armas aos seus (nossos) inimigos. Tem razão, mas há o reverso da medalha. Mostrar que a esquerda é plural, que desperta e aceitas críticas no seu seio, sem que isto afete a unidade para a luta pelos objetivos comuns, são coiusas que só podem fazer a esquerda ser mais respeitada.
Isto vem a propósito da Iniciativa para a Auditoria Cidadã à dívida (IAC), que vai ter como lançamento a Convenção de Lisboa, no próximo sábado, 17. Sou um dos promotores iniciais, coisa que não renego, mas a proposta de declaração política merece-me algumas observações. Como o sítio da IAC não permite um texto tão longo como o meu, o que de forma alguma critico, aqui ficam as minhas observações.
Não são impeditivas do meu apoio à IAC, dado desde a primeira hora, mas, honestamente, e com o sentido do respeito e valor da pluralidade de opiniões, gostaria de as deixar registadas.
A IAC uma importante iniciativa política, convergindo com outras novas formas de intervenção política, participativa e alternativa. Não havendo ainda condições para uma unidade orgânica dos novos movimentos sociais ou dos movimentos políticos alternativos, a convergência no protesto contra políticas específicas, mesmo sem uma perspetiva global das lutas, é o passo possível mas promissor. 
Por outro lado, a IAC enquadra claramente a sua motivação e razão de convocatória da iniciativa numa visão  da crise financeira e da dívida, no quadro da crise geral do euro, que acolhe sem dificuldades diversas hipóteses de solução - com exclusão óbvia do austeritarismo e da atitude de economia moral de punição - o que pode e deve originar o diálogo entre as diversas opiniões alternativas no campo do “não ao austeritarismo neoliberal”.
Como escrevi, (“Hoje sabe-me a pouco!”), estamos em tal situação que é absoluta a fronteira entre o “sim” e o “não” ao austeritarismo e ao fanatismo ideológico dos economocratas neoliberais. Simplesmente, como sempre, o campo do não é muito mais diversificado do que o simplismo do sim.
Por isto, pessoalmente, apoio todas as iniciativas parcelares, mesmo que com perspetivas limitadas, que convirjam para o fortalecimento do não, mas não deixando de manifestar eventuais discordâncias, desde que não sejam de fundo e portanto impeditivas da minha adesão.
É neste sentido que noto que me parece haver uma importante diferença do projeto de resolução em relação ao manifesto de lançamento da iniciativa, que subscrevi. No ponto 2.5 do projeto, parece-me claro que se considera a auditoria como prévia à reestruturação. No 3.1, fala-se de ilegalidade e de ilegitimidade a par de insustentabilidade. Novamente se diz, neste ponto, que a reestruturação é em função dos resultados da auditoria.
Parece-me haver nisto três riscos principais, pelo menos para quem, como eu, defende uma abordagem radical da nossa crise, com reestruturação da dívida a curto prazo e/ou preparação da saída do euro. Não rejeito que a reestruturação deva diferenciar tipos de dívida, mas os critérios dessa diferenciação devem ser definidos no imediato, com a decisão de reestruturar, ficando a auditoria para a fase seguinte, de apreciação casuística das dívidas. Parecendo ser quase a mesma coisa, é muito diferente em eficácia e clareza política.
1 - Há um tom que me parece evidente de “economia moral”, para mim tão errado como o da punição dos incumpridores e coisas do género, do outro lado. A meu ver, decisões como a reestruturação ou a saída do euro são objetivamente determinadas. A auditoria é muito importante como ação política, como bandeira, no quadro geral da luta do “não”, mas é instrumental, não é um componente obrigatório do eixo principal do processo de luta contra a política de austeridade. Quem ganha as batalhas são os infantes, cavaleiros e artilheiros, não os porta-bandeiras nem os tambores. 
Porque, corrigindo, nem sequer é a luta contra a política de austeridade que é central, mas sim a luta contra o processo bem definido na prática que é o plano consagrado nos memorandos e exagerado pelo governo. Essa luta, repito, é norteada por critérios políticos objetivos, não morais (claro que não estou a dizer que não haja uma dimensão moral na política).
A auditoria insere-se nesse processo de luta mas a par de muitas outras iniciativas possíveis. Só por si, não resolve o problema, todos concordamos, mas parece que discordamos em que ela seja condição prévia e necessária. Voltando à questão “moral”, deixo um exemplo que me parece demonstrar as ambiguidades deste processo: a dívida para com a troika. Quando recebermos a totalidade dos 78 mM €, representa 45% da atual dívida pública. Não é dispiciendo. Mas vamos falar dela em termos de legitimidade ou ilegitimidade? É evidente que é um problema estritamente político, considerando a natureza muito especial desses credores. Até porque, em termos morais, ela foi legitimada, a posteriori e na prática, pelo resultado das eleições.
Da mesma forma, vamos discutir o valor moral da dívida pública esquecendo a dívida privada, mormente a da banca? E como se discute o valor moral da atuação bancária fora de uma perspetiva ideológica sobre o capitalismo nesta fase moderna da supremacia do capital financeiro e da especulação não produtiva?
2 - Outro risco é o de formulações como as que exemplifiquei reforçarem posições suaves ou “modestas”: i. “renegociação” limitada à troika e aos prazos e juros (posição do BE); ii. crença eurofílica na fada da boa Europa, com que todos os problemas sistémicos da crise do euro se resolverão por um avanço de um projeto que cada vez mais se mostra errado e certamente a agravar-se, com estes governos e dirigentes europeus, se não houver, pelo contrário, um retorno radical às raízes (idem, BE); iii. posições de compromisso quase nada como da hoje célebre “proposta modesta” de Varoufakis e Holland. 
Claro que respeito estas opiniões e, na perspetiva que defendo para mim próprio da convergência hoje necessária, não as critico, mas tenho pena que, a meu ver, distraiam do essencial.
  
3 - Talvez mais importante seja o problema do tempo. O euro está a desmoronar-se, já é truismo dizer isto. O que será de propostas “modestas” ou baseadas na fada da boa Europa se o euro se for pelo alçapão daqui a um ano ou dois - e nem digo semanas ou meses (ou a partir de hoje, se falhar a cimeira), como prevêm reputados economistas, chamem-lhes pessimistas? E em que fase de trabalho e com que resultados estará qualquer auditoria? E entretanto a esquerda preparou e propôs algum plano de emergência ou de contingência, como já estão a preparar os grandes bancos, confessadamente o Banco de Inglaterra? Como somos poucos e não podemos ir a todas, não era bom pensarmos em prioridades?
Também o tempo nacional. Quais as consequências, vistas no tempo, do plano da troika? Lembram-se de que a Grécia, a da grande tragédia, do desatre, só vai com ano e meio de troika? Podemos arriscar afirmações do tipo “antes do mais a auditoria”, sem darmos tanto ou mais atenção a outras atuações?
E não é só um problema do tempo, é também um problema de “quem”. Obviamente, a mesma auditoria é completamente diferente se da iniciativa de um governo do “não”, a reforçar a sua posição política, ou se da iniciativa da oposição da rua. E o “quem” aqui também é tempo e eficácia.
Dito tudo isto, claro que não nego a importância e alcance político da IAC. Senão, não estava nela nem a gastar o vosso e o meu tempo com estas reflexões. Receio é que estejamos a subalternizar outras intervenções. Ou será porque esta iniciativa parece estar a permitir facilmente a convergência de variados movimentos e pessoas, ou que se esteja a pensar no fator internacional como favorecedor? Ou a contar com o apoio logístico do BE, que há muito tempo vem a propor esta ação política, na moda internacional, coisa que conta sempre muito para o BE (os outros que puxem pela cabeça)?

(Imagem: Lucas Cranach, o Velho, "Adão e Eva" ou o pecado original)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Vale a pena ler

A hegemonia do pensamento económico “ortodoxo” está a abrir brechas. Certamente ninguém pensa que o Jornal de Negócios seja um perigoso clube de economistas revolucionários nem que a sua diretora adjunta, Helena Garrido, seja uma economista radical. Por isto, vale a pena ler o seu artigo de hoje, “Preparem-se, a Europa está a morrer”.

E mais, coisas que não são da minha esquerda: os artigos recentes de Pacheco Pereira e a sua defesa do referendo (hei-de escrever sobre isto, porque não é líquido); a conversa jocosa de Freitas do Amaral, na TV, sobre a senhora alemã e o rapazinho francês; e até, hoje - ó céus! - Sócrates a chamar de infantil a ideia de que se tem de pagar a dívida, quando, para ele, o essencial é garantir o seu serviço (o mal é quando esse serviço, com ele, chegou aos 7%), declaração que até incomodou Zorrinho. Portugal acomodatício, bom menino e bom aluno, o que tem de ser tem muita força, pobrezinhos mas sérios, a minha política é o trabalho. "Eppur si muove".

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Há alturas em que é bonito ver chorar


A política pode ser a mesma. O dogma da austeridade ser o mesmo. A sujeição ao sistema neoliberal ser a mesma. A crença na infalibilidade do dogma económico dominante ser a mesma. A marcha ao som dos tambores prussianos e dos pequenos pífaros franceses ter o mesmo passo. Os ministros das finanças tenderem a ser uns “nerds” fanáticos e economopatas, messias compulsivos da transformação do mundo segundo os seus aprendimentos das escolas de economia. Mas é confortante, faz-nos sentir mais humanos, ver estas lágrimas - embora os mais cínicos possam dizer que a senhora Ministra das Finanças italiana tem é de se demitir e ir chorar para casa.

Chamada de atenção

Quem leu a minha última entrada não estranhará que eu chame a atenção para este artigo exemplar de Jorge Bateira, no jornal I. "Portugal está em crise devido às políticas da troika. A esquerda que se opõe a elas está também em crise. Precisamos de uma nova esquerda, com a ambição de governar o país".
As palavras que destaco fazem toda a diferença. Porque esquerda a viver mesquinhamente das suas pequenas benesses de oposição parlamentar, satisfeita com a inevitabilidade de nunca ser poder, mas com subsídios a pagar dirigentes e funcionários; esquerda de gente da minha idade cansada mas muito hábil e experiente em arranjar alibis - não há condições, as pessoas estão assim e assim...; esquerda inconsequente de "hoje saio à rua como amanhã sairei para uma boa farra"; esquerda de exibições de gurus para gente honesta que eles tomam por papalvos; obrigado, isto não é a minha esquerda e a esquerda que julgo que é a de que precisamos - consequente, mobilizadora, capaz de oferecer a milhões de pessoas honestas e politicamente carentes uma alternativa real.
Afinal, coitado do JVC. Cruzei por ele, veio ter comigo, numa rua da Baixa. Se calhar até nem simpatizo com ele. E não tenho para lhe dar coisas de parvo ou romancista russo. E ele está ao lado da escala social, é isolado na alma, é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki. Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações! Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia! E a dizer: sou lúcido. Nada de estéticas com coração: sou lúcido. Merda! Sou lúcido.

Sou lúcido porque nunca me passeei na política, quando passear à diletante era caminho para Caxias sem sentido nem proveito. Fiz-me a levar muito a sério a política, a medir cada passo, qualquer erro custava muito caro. Ainda hoje, embora com o maior afeto, me custa ver quem mede o seu passado mais pelo que sofreu do que pelo que fez. Quem não desejou fazer sem sofrer? Nem todos tiveram esta sorte, infelizmente.

Ainda hoje não me livro deste critério de eficácia política. Ser lúcido hoje é, pelo menos, ter presente que daqui a três anos e meio vamos às urnas e continuamos a ter o arco íris da troika interna e a "alternativa" que não adianta e em que muita gente não confia, até por más razões de preconceito ideológico e de manipulação orwelliana. Em quem se vai votar? Ou vamos na onda de que "votar não interessa, sistema parlamentar não interessa, partidos não interessam, não sujamos as mãos neste sistema político mal-cheiroso, esperamos pelo momento da pureza, lá nos confins do futuro haverá uma alternativa"? Enquanto, nos anos que estão à vista, nos vamos esmifrar sem essa alternativa.

NOTA - Muito escrevi aqui a palavra esquerda. O meu grilo falante, sempre preocupada com a eficácia do que escrevo e com que concorda e me quer ver realizado, lembra-me que muita gente séria, à M. Jourdain, é de esquerda sem o saber ou até se horrorizando com tal ideia. Que, por esta simples razão pratica, eu devia inventar outra palavra, mas também ela não sabe qual. Alguém tem uma ideia?

sábado, 3 de dezembro de 2011

Um conto de fadas

Era uma vez uma terra chamada Europa... 

Esta é uma história de fadas, embora com bruxas. Comecemos por estas. A maior parte eram de outra terra e algumas das fadas diziam que não se lhes ligasse, porque tinham era inveja, mesmo que algumas das bruxas tivessem sido premiadas com o Nobel dado por entidade da terra das fadas. Bruxas eram Krugman, Sitiglitz, Roubini, até mesmo Soros. Também os comerciantes do G20 que disseram “se vocês não compram aos vossos amigos, somos nós que vamos comprar?”. Mas também as havia na própria Europa, como Jacques Sapir, aqui e aqui, os “economistas estarrecidos”, W. Munchau.
A fada da confiança
Em todo o grupo há quem domine e, por enquanto, esta é a fada rainha. Chamo-a de confiança em homenagem a Paul Krugman, que assim a crismou. Tem às suas ordens um exército de peões que invocam uma troika e que são  muito eficazes porque onde aterram nas lonjuras da Europa encontram logo outros gnomos locais. O que ela diz é muito simples. “O problema é só teu, não há nada de errado no sistema. Tens dívidas, tens de as pagar rapidamente, sem querer saber se os teus credores foram usurários ou não, se vais ter de contrair mais dívidas para pagar este empréstimo que te damos para pagar as dívidas anteriores, se vais morrer de fome a pagar cada vez mais dívidas”.
“Principalmente, tens de estar em condições de poder sempre pedir novos empréstimos. Bater à porta do mercado e mereceres confiança. Se cumprires o plano de austeridade e empobrecimento que te exigimos, vais ter esta confiança dos mercados” [é mentira; temos sido pateticamente cumpridores do plano e os juros continuam a subir, porque os mercados confiam é no crescimento económico e correlativa garantia de cumprimento, não em parâmetros artificiais como os de défice/PIB].
Os tais gnomos são perigosos porque vestem a couraça da infalibilidade. As suas opiniões não se discutem, são assim porque são assim. E onde aterram todos dizem que é assim porque tem de ser assim e o ter de ser assim tem muita força.
A fada é uma hipócrita moralista. É moralista porque abusa do sentido de honestidade das pessoas comuns, "és honesto ou não, és caloteiro ou não?". Mas é hipócrita, nunca vê os pecados da ganância, do egoismo, das gentes que se rebaixam para que os donos do seu grupo ganhem mais dizendo-lhes que os estão a enriquecer. Os pecados são os dos tais devedores que se portam mal, gastam demais, são irresponsáveis, não são gente séria. Tudo dito em linguagem para criancinhas, que só assim percebem a economia política, coisa que um velho ditador beirão já tinha dito que não era mais do que uma família saber governar a sua casa.
A fada é mentirosa, como os seus gnomos. Diz que só quer é resolver crises, contrita dos sacrifícios que com isto vai causar. De facto, é uma fanática religiosa de uma nova crença, o neoliberalismo e, como todos os fanáticos, o que deseja é ver o mundo transformado segundo as suas crenças pessoais, em que, obviamente, o fim do Estado, da segurança social, da educação e da saúde sustentadas publicamente, a inclusão mesmo que como lacaio na corte do grande império da finança, lhe dá um enorme prazer quase sádico e claro que não a afeta nem aos seus gnomos.
Claro que nem todos julgam dançar inteiramente ao compasso da fada. “Era melhor se também houvesse crescimento, se se cortasse só um subsídio e não dois, se não houver muita recessão e desemprego”. E a fada ri-se…
A fada da boa Europa
A visão eurófila, na crença na fada da boa Europa, com muitas variantes, parte de um princípio correto, de que a crise é sistémica, coisa que hoje até empedernidos econocratas do consenso de Bruxelas já reconhecem. Portanto, para esta fada, o mau euro resolve-se com o bom euro. É quase uma homeopatia económica, em que o veneno se transforma em remédio. Das variantes, vejamos principalmente duas, que por simplificação chamo a de esquerda e a de direita (mas só por simplificação!).
Em algumas esquerdas, reconhecem-se os malefícios do euro, a sua insustentabilidade como projeto económico e político, sem um orçamento comum, sem uma política fiscal comum, sem um banco central que seja “o último emprestador” e financiador da economia e dos equilíbrios intra-espaço monetário, à maneira da Reserva Federal, e não só o garante da não-inflação. Para este setor, virá o quinto império do grande desígnio europeu, que fará renascer os “grandes políticos europeus” (por sinal, os que inventaram e desenharam o euro) e criará uma Europa que nos resolverá a crise porque será solidária, fraternal, avançada social e civilizacionalmente.
É claro que nada disto é acreditar em fadas. A Europa atual dos egoismos, da xenofobia, da mentalidade de punição puritana e protestante dos pecadores periféricos, a Europa atual dos dirigentes políticos mesquinhos, claro que de uma penada, por boa ação política dessas esquerdas no parlamento europeu, vai converter-se à grande missão da sua reconstrução. A começar por aquilo que está mesmo à vista, governos portugueses a dizerem que não são gregos, italianos a dizerem que não são portugueses, espanhóis a dizerem que não são italianos. Já ouvi propor a frente dos periféricos. Dá-me vontade de rir, mais agora com dois dos seus governos presididos por homens do sistema financeiro internacional e os outros por neoliberais retintos, Coelho e Rajoy.
No entanto, esta perspetiva tem tido sucesso apreciável. Em Portugal, tem uma origem bem delimitada. O PS será sempre "a Europa connosco", coisa da guerra fria. O PCP foi sempre ferozmente anti-europeista, por razões bem conhecidas e, com alguma moderação, continua a sê-lo. Os seus dissidentes de 1990, que deram depois a Política XXI, no seu grande afã de se desmarcarem, assumiram um idealismo europeista, que hoje mantêm agora como bandeira de luta. (Abro parênteses para destacar o trabalho parlamentar de Miguel Portas, mas pergunto com que resultados). Os louçã-trotsquistas foram nessa porque sim, porque ficava bem; como sempre é seu costume, vai-se na moda, transversalmente, é giro, mesmo que não dê depois para compensar o esgar de Savonarola. Os albaneses não sei porquê, vai com a pobreza ideológica do clube. Com tudo isto, o BE acredita na fada Europa.
O lado de direita da fada europeia é a fuga para a frente do aparelho do euro e do eixo Mer-k-ozy. A crença é a mesma, tudo pelo euro. Mas à boa maneira autoritária, afinal de pés na terra: disciplina orçamental à alemã, porque crise sistémica resolve-se é marchando todos ao toque do tambor mais sonoro. O rapazinho francês atrás, à "petit fifre". 
No entanto, esta história da fada europeia ainda está muito longe da última página. Estou a recolher, de uma pilha cada vez maior de papéis, as contradições, guinadas, incoerências do discurso oficial europeu nos últimos meses. Sairá em próxima entrada e certamente muito incompleto em relação ao que será idêntica escrita daqui a um ano.
A fada boazinha
Simplifiquemos: aparece como uma fada mas com uma grande saia, sob a qual se escondem muitas fadas irmãs. Algumas estão a piscar o olho à fada da boa Europa.  É o caso da mais mediática dessas filhotas, a “proposta modesta” de Varoufakis-Holland (uma paródia, a meu ver inadequada, ao título da célebre sátira de Jonathan Swift). Tudo “soft”, a ver se aceitável pelos poderes.  Essencialmente, apenas a transferência das dívidas nacionais para uma dívida europeia garantida por euro-obrigações (“eurobonds”), mas, atenção, só até ao tal limite maastrichtiano de 60% do PIB. O resto da proposta são amendoins: investimentos aumentados do BEI, testes de “stress” mais rigorosos e recapitalização da banca, tudo coisas consensuais. Euro-obrigações é que não são nada consensuais, a Alemanha não quer ouvir falar. Como é que a “proposta modesta” resolve isto? Porque, sem Alemanha, é chover no molhado, a não ser que se proponha uma forma de luta eficaz contra o novo Reich. No entanto, o homem viaja por todo o mundo, dá entrevistas, deve estar rico. Quem tem interesse em pagar-lhe tudo isto?
Também temos entre nós vários reflexos da fada boazinha. Reestruturar a dívida não, mas pode ser “renegociar”. Vai isto desde coisas ambíguas do BE até coisas de típica piedade política de um PS "contrito". Ainda só consegui ver nisto uma diferença real: esta renegociação seria de tudo menos do montante da dívida, nenhum “corte de cabelo”. E tudo amigável, nunca imposições dos devedores.
Outra é a auditoria cidadã. Tenho de ter cuidado ao escrever isto, porque é uma ação da maior importância política, que apoio sem reservas, no quadro de um amplo leque possível de ações contra a fada da confiança. O problema poderá estar - espero que não - em considerar esta ação como acabada em si própria, como a solução do problema. Ou mesmo, em versão mais suave, como passo prévio indispensável a outras ações ou estratégias de maior fôlego, como a reestruturação da dívida. Quero crer que os promotores da Iniciativa para a Auditoria Cidadã, em que me conto e com quem sou solidário, não cairão nestes erros.
A fada preta
Coitada desta minha fada. Vem de preto, magrinha, triste, desiludida com a sua aparente falta de poder mágico. Calma, espera e verás!

Ressalve-se que só lhe chamo de fada por congruência com a história. Ela quer ser racional, objetiva. Por exemplo, ela rejeita qualquer tom de “economia moral” que parece evidente em algumas propostas e posições da “nova esquerda”, para mim tão errado como o da punição dos incumpridores e coisas do género, do outro lado. A meu ver, decisões como a reestruturação da dívida ou a saída do euro são objetivamente determinadas. Por exemplo, como acabei de escrever, uma auditoria cidadã é muito importante como ação política no quadro geral da luta do “não”, mas é instrumental, não é um componente obrigatório do eixo principal do processo de luta contra a política de austeridade. 
Porque, corrigindo, nem sequer é a luta contra a política geral de austeridade que é central, mas sim a luta contra o processo bem definido na prática que é o plano consagrado nos memorandos e exagerado pelo governo. Essa luta, repito, é norteada por critérios políticos objetivos, não morais (claro que não estou a dizer que não haja uma dimensão moral na política). E não pode ficar limitada ao registo político tradicional, exige uma linguagem político-económica.
Voltando à questão “moral”, deixo um exemplo que me parece demonstrar o risco de ambiguidades deste processo: a dívida para com a troika. Quando recebermos a totalidade dos 78 mM €, representa 45% da atual dívida pública. Não é dispiciendo. Mas vamos falar dela em termos de legitimidade ou ilegitimidade? É evidente que, num processo de reestruturação, é um problema estritamente político, considerando a natureza muito especial desses credores. Não porque, em termos morais, ela foi legitimada, a posteriori e na prática, pelo resultado das eleições.
Da mesma forma, vamos discutir o valor moral da dívida pública esquecendo a dívida privada, mormente a da banca? E como se discute o valor moral da atuação bancária fora de uma perspetiva ideológica sobre o capitalismo nesta fase moderna da supremacia do capital financeiro e da especulação não produtiva? E mais comezinhamente, da responsabilidade partilhada de credores e devedores no endividamento interno, que os bancos foram buscar ao endividamento externo? E à posse pela banca de dívida pública a 75 e mais comprada com empréstimos do BCE a 1% de juro?
Esta fada também está muito atenta ao fator tempo. O euro está a desmoronar-se, já é truismo dizer isto. O que será de propostas “modestas” da fada boazinha ou de propostas baseadas na fada da boa Europa se o euro se for pelo alçapão daqui a um ano ou dois? E em que fase de trabalho e com que resultados estará qualquer auditoria? E entretanto a esquerda preparou e propôs algum plano de emergência ou de contingência - como o presidente do Banco de Inglaterra confessou que está a fazer? Como somos poucos e não podemos ir a todas, não era bom pensarmos em prioridades? “Think tanks”, apareçam com urgência! Para sair à rua, felizmente há hoje muita gente capaz e disposta. É preciso mais.
Também o tempo nacional. Quais as consequências, vistas no tempo, do plano da troika? Lembram-se de que a Grécia só vai com ano e meio de troika? Podemos arriscar ações que, com a vantagem de serem congregantes, mediáticas e na moda internacional, correm o risco de se fecharem inconsequentemente, sem darmos tanto ou mais atenção a outras atuações? E, principalmente, sem definição de uma estratégia conjunta para a luta consequente e com possibilidades práticas de sucesso contra a ameaça do nosso empobrecimento?
Esta fada negra só ainda não me conseguiu convencer de coisa bem importante, de entre duas que há tempos pensava serem coisas intimamente relacionadas, não alternativas. Reestruturação da dívida ou saída do euro. Ou uma e outra? Ou ambas?
Parece que até podem ser soluções contraditórias entre si, como se pode ler aqui e aqui. E há quem se mantenha em alguma expetativa, pensando o nosso futuro depois do euro.
Sair do euro parece uma heresia, ao que se lê por toda a parte. Talvez não e talvez não se leia por toda a parte. Vejam-se as propostas/planos de Sapir, de Mosler e Pilkington ou de Alain Parguez. E, se quisermos ver do outro lado, para não desconfiarem de vícios de simpatia ideológica, a preparação de planos de contingência pelos principais bancos europeus.
E se nada disto se colocar como questão, sair ou não do euro, pelo simples facto de o euro se dissolver? Coisa impossível daqui a um par de anos? Ou até daqui a um par de meses? Só para quem anda desatento ou está completamente dominado pela fada da confiança e pelas suas outras amigas. Andamos a viver tempos que consagram a velha máxima “nunca digas nunca!”. O que fazer nessa situação? Ainda não vi os nossos economistas tentarem imaginar planos de contingência. Desafio-os a esta tarefa urgente, porque creio bem que a direita, o governo, os fanáticos à Gaspar tão cega e radicalmente recusam esta ideia que nunca se prepararão para ela.
A fada do novo partido
Pouco tenho a dizer sobre esta fada, quase invisível, infelizmente. Estamos, no melhor das hipóteses, a três anos e meio de chamada democrática às urnas a que desejaria responder com uma alternativa hoje inexistente. Não há o partido da fada negra. Mas é preciso um partido, dirão os novos movimentos? Claro que sim, embora um partido diferente. Como? 

Vai haver uma revolução que destrua o nosso sistema político? Não creio e até a recearia. Vão-se transformar os atuais partidos de esquerda? Não acredito em milagres. Então como vou votar na próximas eleições? Para que servirão coisas inegavelmente muito importantes mas limitadas, coisas de centenas ou alguns poucos milhares - manifestações, acampamentos de protesto, assembleias populares, auditorias, etc. - se não houver uma possibilidade de elas se traduzirem rapidamente em poder político. E rapidamente é hoje a palavra chave! A crise vai a velocidade imparável. Podemos conceber uma estratégia de desenvolvimento e de libertação do espartilho neoliberalismo-euro-troika mas não a concretizaremos sem uma nova força política que lhe dê corpo.

Eu sei que fazer um partido custa muito. Como dirigente do MDP, sei como foi bom para os plataformistas saídos do PCP (Miguel Portas e outros) fazerem-nos a OPA para dar a Plataforma XXI, e até acho - o que não pensava na altura - que foi o fim mais digno do MDP. Neste momento, não há nenhum partido de esquerda à venda (ou melhor, talvez haja). Mas a principal dificuldade não é esta, prática. É a ideia tonta, generalizada nos "novos movimentos", de que partidos são coisas inaceitáveis, como se eles pudessem riscar de um momento para o outro a ordem constitucional.
NOTA 1 - Segundo a Eurosondagem (28.11.2011), 3/4 dos portugueses querem manter-se no euro, mas 52,5% rejeitam o preço que o sistema nos está a impor. Onde vai a tal maioria dos 80% que votou na troika interna e no plano de resgate? E esses 3/4 querem manter-se no euro porquê, quando tudo lhes mostra que o euro e a nossa situação são indissociáveis? É a hegemonia gramsciana do falar da fada da confiança, mas com os números a prenunciar mudança.

NOTA 2 - A vulgarização do termo "fada da confiança" deve-se a Paul Krugman.