segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Krugman, duas leituras


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Paul Krugman, prémio Nobel da Economia e hoje doutorado honoris causa pelas três universidades lisboetas, é muitas vezes invocado como autoridade pela esquerda portuguesa (a esquerda real), embora a sua visão neo-clássica não seja totalmente coincidente com a de muitos dos nossos economistas anti-neo&ordo-liberais.
De qualquer forma, a direita rejubilou por ele ter afirmado que Portugal, para sair da crise e ganhar competitividade, precisava de reduzir os salários entre 20 e 30% em relação aos salários alemães. Não é o que a troika diz?
O que esses salivadores pavlovianos não esclarecem é que há duas formas radicalmente diferentes de se conseguir essa desvalorização: interna e externa.
A desvalorização interna, no espartilho do euro, é mesmo o que se pode deduzir linearmente do que diz Krugman: redução nominal e real do preço do trabalho, diretamente (redução ou congelamento dos salários) ou indiretamente (redução dos benefícios sociais, aumento do horário de trabalho, etc.). O que fizeram os gregos com o resultado que está à vista.
A desvalorização “externa” é cambial, por desvalorização da moeda, só possível se Portugal sair do euro. Krugman não rejeitou esta hipótese, que os seus leitores sabem ser recorrente nos seus escritos. O que disse até foi que não está seguro de que Portugal se possa manter no euro. Simplesmente, esta afirmação foi feita num quadro de “dinâmica histórico-económica”, em que só se vê o contexto geral, à escala europeia.
Ora o que devia contar mais era a decisão nacional, de um país ativo e não meramente elemento passivo ao sabor das dinâmicas europeias. Saltando vários passos evidentes da demonstração do teorema, a conclusão do “postulado” de Krugman parece-me simples: Portugal tem de sair do euro e adotar uma moeda nacional com adequada desvalorização

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Pela boca morre o peixe


Segundo os dados hoje divulgados por Bruxelas, Portugal vai sofrer em 2012 uma contração de 3,3% do seu produto interno bruto (PIB) - mais grave do que a quebra de 1,5% de 2011, e a segunda mais profunda da União Europeia este ano (a seguir à Grécia, cuja economia encolherá 4,4%).  
A previsão governo-troika começou por ser uma queda do PIB de 2012 de 1,6%. Passou para 1,9% no OE de 2012.
Em novembro, o ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, afirmou no Parlamento que "2012 será um ano determinante para Portugal e para a economia portuguesa", pois "certamente irá marcar o fim da crise e será o ano da retoma para o crescimento de 2013 e 2014".
Está-se a ver.  

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

As pessoas têm razão para estar confusas


As pessoas têm razão para estar confusas. A sua opinião, principalmente a partir de certa idade, com quase confinação a casa e à televisão, é o resultado do conúbio cada vez mais indecente entre as esferas política e mediática. 1984. Ainda há dias uma pessoa não muito próxima mas que estimo me disse, como derradeiro argumento, “eu ouvi na televisão”. 
Com raras exceções, consentidas para darem dos media uma ideia demagógica de algum pluralismo, a mensagem que passa é a do neoliberalismo, ou do ordoliberalismo europeu que não está muito longe e até é mais antigo. Para que não se diga que uso chavões e porque talvez eu seja lido por não convencidos da ortodoxia, embora ainda não lhe frontalmente opostos, recordo o que as pessoas hoje ouvem como massacre da sua capacidade de raciocínio crítico.
"A iniciativa privada e os mercados são indiscutivelmente virtuosos, por natureza. A despesa pública é perversa, abafa a economia. O estado social contribui, para além disso da despesa pública, para uma mentalidade de preguiça, desleixo, parasitismo. A intervenção reguladora do estado é perniciosa, perturba o “divino” mecanismo da auto-regulação do mercado. Não se pode impor restrições gravosas às empresas, senão o capital deslocaliza-se. Gastamos (quem é este pessoal plural, “nós”?) mais do que as nossas possibilidades". E muito mais.
Mas não é certo que muita gente que sente na pele os efeitos perversos desta ideologia não consegue desenvencilhar-se das grilhetas que a propaganda, os académicos de serviço, os gurus, lhes apertam cada dia mais?
De acordo com esta hegemonia do pensamento dominante (volto a Gramsci, não há revolução sem a mudança da hegemonia), é lógico que se aceite a grande consequência prática em tempo de crise, a política da austeridade expansiva, aquela a que foi sujeita a Grécia com os resultados que se veem e a que nós fomos sujeitos um ano depois e por isto ainda sem se verem os mesmos resultados.
Não é possível listar aqui as centenas de referências de trabalhos que mostram que austeridade e crescimento económico são incompatíveis. Mesmo que até a simples redução do défice e a diminuição da dívida - pública, porque da mais importante, a privada, nem falar - são impossíveis na espiral descendente de recessão-dívida-recessão. Que mais não seja, é questão de aritmética elementar: desce o denominador (PIB), aumenta a fração (dívida/PIB).
Mas nem é preciso eu mostrar citações, mormente de grandes economistas americanos, mesmo prémios Nobel, em quem adivinhamos uma ideia simples quando escrevem: “estes governantes e economistas europeus estão endoidecidos pelo seu fanatismo ideológico”.
Todavia, talvez não seja bem assim. Todos os dias, cada vez mais, lemos e ouvimos entre nós economistas, comentadores, jornalistas, a reconhecerem que a política troikiana da austeridade é suicida. Até vão hoje mais longe do que os políticos da corte berlinense, que já admitem a preocupação com o crescimento mas ainda defendem o milagre da sua compatibilidade com a política austeritária e recessiva.
Não hão de estar confusas as pessoas que passaram este último ano e meio a ouvir a inevitabilidade e a panaceia curativa da política da troika, e que agora ouvem que talvez não? Que ainda há duas semanas ouviram Passos Coelho e Gaspar, depois da cena triste dos “apanhados”, garantirem que nunca renegociação de prazos e juros, muito menos um segundo empréstimo, e hoje leem que Passos acha que afinal ninguém pode ter a certeza?
Um bom sinal desta confusão é o resultado de uma sondagem de há dias publicada pela Lusa. À pergunta se “o programa de austeridade permitirá a saida da crise”, não responderam que sim os 80% de eleitores na troika interna, há um ano. Responderam sim 47,4%, 34,7% negativamente. Mas há respostas pouco coerentes. Por exemplo, 66,8% apoiam o novo tratado, o que parece revelar a aceitação de uma lógica punitiva e de controlo dos incumpridores, afinal nós também. No entanto, é pequena (10%) a diferença entre os que aceitam e rejeitam a inscrição da “regra de ouro” na constituição, afinal, um aspeto essencial do novo tratado. Por outro lado, apoiando, a maioria (53,3%) quer ver isso referendado.
E, para esta atitude de confusão, como pesará o sentimento atual de todos os que deram a vitória ao governo atual? Pode sempre haver desculpas, como alguém me disse há uns tempos: “não votei no Passos Coelho, votei foi contra o Sócrates, que foi o único culpado desta crise”. Não sou nada simpático para Sócrates e não o quero desculpabilizar, mas fico a pensar como pode ter sido tão inepto um político que conseguiu que tantos milhares de pessoas fossem votar numa política ainda muito pior do que a dele. Por inepto não quero isentá-lo de outras coisas, videirinho, pouco sério, mesmo aldrabão. Mas, afinal, em política, isto acaba por ser inépcia. Como dizia Talleyrand, em política, pior do que um crime é um erro.
Como se vai sair desta confusão? Pode-se oferecer a tantos desses eleitores honestos mas perturbados uma alternativa política? Ou deixamos crescer o risco inevitável destas situações de ambiguidade, confusão, raiva irracional, que é o populismo, a descambar para soluções antidemocráticas?

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Um novo partido, precisa-se (II)


A política é multilinear, no sentido em que tem de atender a múltiplas dinâmicas de “processo histórico” interrelacionadas mas com velocidades e calendários próprios. Mais, e porque a dialética ainda vale, há interações entre as várias linhas que lhes modificam o percurso, a fluidez, a velocidade. Não é preciso ir à cosmologia moderna, à teoria das cordas, para perceber isto, mas até é engraçado, intelectualmente.
Velocidade e calendário, é o fator tempo. Nenhum político vinga se não dominar isto. Estamos defrontados, à esquerda, com muitas propostas interessantes. Iniciativas de cidadania, protestos de base, mais ou menos anárquicos, movimentações “tribais”. Nada novas, também as movimentações temáticas, ambientalistas, de direitos da orientação sexual, de defesa de culturas em risco, etc. Também antigas - meu MDP falido dos anos 90 - a nova sociologia de esquerda, a nova urbanidade desumanizada, os anseios individuais de sucesso, a qualidade de vida, a mudança geracional, o envelhecimento da população.
São por ora apenas sinais do que penso ser coisa para uma ou duas gerações, uma nova revolução. Nunca ninguém prevê exatamente o que é uma revolução. Vê-se e compreende-se na altura e assim se a controla. Mais frequentemente, segue-se apenas e ninguém a controla, para o bem e para o mal. Os partos da História são difíceis e dolorosos, respingam de sangue quem os está a ver. Mas deixemos agora isto, porque está numa dimensão temporal que não tem a ver com a nossa situação atual de crise.
Em todo o caso, nesta perspetiva, tudo o que pensarei convosco, a seguir, tem um eixo essencial. A luta política, sob que forma for, tem sempre e obrigatoriamente o objetivo da tomada de poder. Quando falar de ações pontuais, de movimentos grupais, de novos partidos, é sempre nesta perspetiva. Resistir por resistir, protestar apenas, como cultura política, é passo a passo para  a derrota final.
Em situações de crise, avulta a incapacidade dos políticos de lidar com a complexidade dialética do momento histórico a ser obrigatoriamente situado no processo histórico. Veja-se a situação europeia. Desde há muito que não há uma formulação política oficial em que possamos ler uma ideia grande sobre o significado histórico, civilizacional, da União. Tudo é reduzido a mentalidade e linguagem de guarda-livros. 
A mentalidade científica, o rigor intelectual, são coisas desconhecidas para os governantes. A economia é o que lhes é soprado pelos eunucos pequinenses da corte da finança. Os esquemas mentais alarves de moralismo económico e de punição são de mentalidade de aldeão da Pomerânia ou do nordeste transmontano. Por toda esta Europa fora, muito em Portugal, tudo isto é amplificado pela máquina da mistura catalítica da desinformação mediática, da aparente concordância de autoridade da opinião académica, da desvirtuação demagógica do senso comum.
A esquerda está a combater isto? A meu ver, não. A sua pedagogia política, no bom sentido, é quase nula, substituída pela agitprop, que a maior parte das pessoas topa logo e de que desconfia. Para pessoas mais informadas, os erros técnicos e a falta de rigor intelectual são motivo compreensível de antipatia. A arrumação habitual até é compreensível: o PCP é sério e coerente mas é fossilizado. O BE é mais atual e menos troglodita mas é oportunista e videirinho.
Repare-se que nada disto tem a ver diretamente com a estrutura económica, com a luta de classes. Tem a ver, mais diretamente, com a ideologia dominante e como ela é revolucionária - raramente - ou como abafa a dinâmica da luta de classes e o sucesso das lutas populares. O último grande pensador de inspiração marxista, Gramsci, desenvolveu tudo isto na sua discussão da hegemonia. Estamos a viver uma situação gramsciana, com uma crise europeia em que a situação económica, a exploração, a perda de conquistas fundamentais de direitos sociais reais, podiam despertar lutas políticas, mas em que a hegemonia do pensamento europolítico, ordoliberal, intelectualmente provinciano, mesquinho e egoista, trava a consciência da necessidade de revolta. 
O nosso processo revolucionário do 25 de Abril soçobrou, a meu ver, neste domínio. Dominou na superestrutura política, controlou temporariamente as bases da economia, mobilizou elites instruídas das camadas trabalhadoras, mas não conseguiu vencer a hegemonia ideológica da aliança entre o primitivismo cultural provinciano, a herança do obscurantismo salazarista-eclesiástico e o “liberalismo à europeia” difundido pelo duo PS e PSD. Afinal, como dentro das forças armadas, a mentalidade pequeno-burguesa. Todavia, a pequena burguesia, a "classe média", é hoje a classe social dominante. Potencialmente revolucionária, porque tende a ser a mais "esmifrada", mas ainda não tem consciência. Como resolver isto?
Voltemos às várias linhas de dinâmica de esquerda. Se não as destrinçarmos, ficamos confusos. Se olharmos para o horizonte distante, ressalta a inevitável mudança de paradigma da própria democracia. A democracia representativa está a morrer dos seus vícios, mas a democracia direta é tecnicamente muito problemática, podendo gerar vícios de “infocracia”. A democracia participativa é para mim o futuro, mas depende de uma nova configuração dos corpos intermédios, assimilando movimentações sociais novas, ainda não muito claras.
Mas há quem confunda linhas e desvie generosamente para propostas dessa tal linha estratégica as suas capacidades de esforço. É ótimo que coisas ainda em embrião tenham sopro de crescimento dado por pessoas motivadas, relativamente inexperientes politicamente (o que tem as suas vantagens...) e que não sentem apetência para lutas mais convencionais ou mais comprovadas.  Estão na luta, é o que interessa. Menos compreensível é que pessoas com maior experiência política prejudiquem o seu contributo para a ação política, ao nível em que podem ser mais eficazes, por uma espécie de complexo de idade, infantilizando-se em coisas à distância importantes mas hoje apenas confluentes e a cargo de quem para isso tem vocação.
À distância, estes novos movimentos inserir-se-ão nos corpos intermédios, coisa essencial a ter em conta na teoria política. Em termos gerais, corpos intermédios são tudo o que fica entre os cidadãos e as suas áreas próximas (família, amigos, colegas próximos) e o Estado: coletividades, autarquias, sindicatos, grupos de intervenção, irmandades, clubes, etc. Hoje também redes sociais na net, blogues. Voltando à hegemonia, creio que a sua construção e difusão pela comunicação institucional é dificilmente combatível. A esquerda só conseguirá combatê-la se puder atuar eficazmente a nível dos corpos intermédios. Não estou a inventar nada. Tudo isto fez parte da ação anti-salazarista, mas parece que ficou esquecida.
Outra conjugação essencial de linhas de ação é a que é determinada pela nossa atual crise económica e financeira, no quadro da crise do euro. O quadro geral é adverso. Os governos europeus são todos de direita, impera a visão da economia do ordoliberalismo centro-europeu, para já não o caracterizar como típico neoliberalismo à Reagan-Thatcher. Não se sente qualquer solidariedade europeia, para além dos egoismos nacionalistas. As subregiões naturais, como a latino-meridional, dividem-se em atitude de aluno da escola, aquele menino é que se portou mal. A Alemanha europeia de que falava Thomas Mann é o sargento da ordem prussiana da Europa alemã.
Como se articulam as linhas de ação? Vejamos o exemplo grego, que estou convencido que nada, objetivamente, tem de diferente do caso português, com a vantagem de podermos tirar lições com um ano de antecedência. Os partidos gregos não têm o mesmo fervor ideológico de mais papistas que o papa. O povo está a dar luta, em greves e manifestações, muito mais do que em Portugal. No entanto, isto não tem valido muito. Ou talvez sirva para serem empurrados para fora do euro, com uma experiência que adivinho ser muito instrutiva para nós. Uma grande semelhança, até há pouco, como escrevi, é a do quadro político e partidário. Também o facto de a ação de rua ser fortemente impulsionada e controlada pelas centrais sindicais, lá pelo KKE, cá pela tutela do PCP sobre a CGTP. Mas sem esquecer que a CGTP, como se viu sábado, mobiliza muito mais do que o PCP.
As diferenças são importantes. Não há na Grécia uma ideologia dominante de que "devemos cumprir, não sermos caloteiros". Em Portugal, são 80% dos eleitores. Em Portugal, alguma esquerda, por razões de certidão de nascimento, é utopicamente europeista e relega para uma vã luta europeia de esquerda a solução dos nossos problemas. Na Grécia, o maior expoente desta corrente, Yanis Varoufakis, hoje vedeta dos media internacionais, começa a derivar da sua “proposta modesta” de solução no quadro institucional europeu e já defende o incumprimento da Grécia e de Portugal. 
Estamos a um ano e meio do momento crítico - a ida ao mercado primário da dívida - em que se vai ver se o modelo de “austeridade com crescimento” imposto a Portugal resulta, em absoluto. Quer dizer, se resulta porque Portugal foi cumpridor, atento, venerador e obrigado. Mostrando que não resultou na Grécia, como toda a gente já viu, mas segundo os ortodoxos ordoliberais apenas porque a Grécia foi incumpridora e não teve a sorte de ter um ministro formatado como Gaspar. Ou mostrando, como penso, que é o modelo que é vicioso e contranatura e que não resultará nem na Grécia rebelde nem em Portugal submisso.
Entretanto, o relógio da crise acelera. Nessa marcha contra o tempo, uma diferença da Grécia - não sei o que vai dar - foi a subida a segundo lugar nas sondagens de um novo partido anti-troika, destacado da imagem tradicional de mera resistência da esquerda. Mais uma diferença para Portugal. Não podemos colmatá-la? Já escrevi sobre isto.
Voltando às linhas de tempo, como conciliar esta, a da superestrutura política, com a da movimentação social, com a da revolução? Simples. A da revolução, neste momento, dá valores, ideais, objetivos históricos. Dá a ideia central da história de que no princípio está o poder. Dá o que é preciso para a coerência das outras. A movimentação social é essencial para quebrar a rigidez partidária e a sua hegemonia e para, como na Grécia, tirar partido da lógica essencial do sistema partidário, o ponto vulnerável do seu  eleitoralismo. A Nova Democracia diz “nim” à troika porque quer garantir a vitória eleitoral. 


Cá, possivelmente será a atitude do PS, em próximas eleições. Não é brecha importante na muralha da política dominante do austeritarismo e da sujeição ao ordoliberalismo germânico. Mas é ponto fraco e, numa batalha, é sempre decisiva a ponta de lança, a tropa que se consegue infiltrar primeiro nas linhas inimigas. Isto é, no parlamento, na luta partidária. Para isto, um novo partido.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Um novo partido, precisa-se (I)


“Nós não somos a Grécia”. Num aspeto, é verdade. Os governos gregos, incluindo o atual governo tecnocrático, acossados pela movimentação popular e com eleições em mira, não têm sido propriamente fanáticos das imposições da “troika”. O governo português, quase que patologicamente, baba-se de gozo, estampado na expressão de Gaspar, por ir mais longe, muito mais, do que as imposições externas. Parece servirem-se do pretexto da “troika” para porem em prática um “imperativo histórico”, um delírio ideológico fanático, só satisfeito quando o mundo for na realidade aquilo que as suas cabeças formatadas concebem.
Fora esta diferença, é difícil encontrar algum economista estrangeiro reputado, algum analista sério, que não lembre que somos mesmo a Grécia, com um ano de desfasamento: os mesmos fatores de crise, a mesma política de austeridade imposta pelos mesmos poderes europeus, a mesma causa principal de falta de confiança dos mercados - o não crescimento económico e a espiral de recessão-dívida.
Mas hoje não vou escrever sobre economia, de que sou amador, antes de política e das lições que podemos tirar da Grécia. Comecemos pelos movimentos sociais e pela rua. Posso estar mal informado, mas não li sinais de grande relevância das novas movimentações. Manifestações de tipo ocupação da Puerta del Sol ou de Wall Street, se existem, parecem ficar obscurecidas pela movimentação social tradicional, nomeadamente a das greves e manifestações convocadas pelos sindicatos.
Parece-me que não andamos longe disto. Não diminuo a importância potencial dos novos movimentos (sectoriais, temáticos, flexíveis, não hierárquicos, etc.) mas creio que o seu desenvolvimento até eficácia real vai ser a ritmo mais lento do que é imposto pela aceleração desta crise económica, financeira e, claro, também política. Descontando o 12 de março, com sucesso conjuntural, basta a comparação da pequena manifestação de 15 de outubro com o Terreiro do Paço praticamente cheio, sábado, para se ter obrigatoriamente em conta que, em tempos de crise, o povo não vai em coisas menos testadas.
Diferente é o voto. Aquela centena ou duas de milhares de pessoas que se manifestaram sábado claro que votam de forma variada. Muitos, certamente, sempre votaram PS e dificilmente verão uma alternativa. Até sei de quem lá esteve e que foi o ano passado no engano do voto PSD. De quem votou assim massacrado pelo lavar de cérebro de que homem honesto não é caloteiro e entrega a camisa para pagar a dívida, mas que hoje já começa a ter dúvidas porque não ser caloteiro está a ameaçar ser deixar os filhos à fome. 
Toda esta gente está espartilhada por um quadro partidário que lhes oferece a obediência, a humilhação, o sacrifício, e, por outro lado, a incapacidade de proposta de uma alternativa que não seja apenas retórica de agit-prop, sem credibilidade para muita e muita gente que não passa de repente para uma postura radical. 
Aparentemente, esta é outra situação de semelhança, com a Grécia, em relação ao quadro partidário e às suas posições em relação ao plano de resgate. Dois partidos de direita (Nova Democracia e, mais à direita, o LAOS) e o partido socialista (PASOK) aceitam no essencial as imposições da “troika”, embora sem fanatismo e não concebem qualquer alternativa. O Partido Comunista KKE e o Syriza (análogo do BE português) assumem-se como resistência mas não apresentam propostas alternativas de saída da crise. Não conhecemos tudo isto?
A diferença essencial é recente, data de junho de 2010. A ala dita menos radical do Syriza separou-se e constituiu um novo partido, a Esquerda Democrática. Muito provavelmente por ter conseguido cativar muito eleitorado na margem esquerda do PASOK, as sondagens dão-lhe 18%, em segundo lugar, atrás da direita da Nova Democracia, com 31%. Passa à frente dos outros dois partidos de esquerda, cada um com cerca de 12% de intenções de voto, e esvazia o PASOK, maioritário até há dois anos e que agora se reduz a 8%. Contando com o LAOS, a direita tem 39% e a esquerda 42%. O fiel da balança será o PASOK, mas não é garantido que, mesmo contando com ele, o próximo novo parlamento grego continue a ter a política de submissão à ultra-austeridade.
Tenho para mim que é necessária uma visão estratégica que vá no sentido de uma rotura muito profunda, de novo paradigma político, de nova democracia e de reformulação do conceito de representatividade e do seu valor estruturante da democracia que conhecemos, de proposta de uma nova ordem económica mundial, logo europeia, logo portuguesa. Que a movimentação social e política cada vez mais se vai orientar para a tomada do poder, mesmo que de forma contra as regras, como forma imprescindível de conseguir esse renascimento da democracia.
Todavia, há o plano tático, ditado pelo calendário do ano e às vezes até do mês ou do dia. Neste sentido, creio ser urgente uma ação eficaz e rápida para constituição de um novo partido de esquerda. Há muita gente generosamente envolvida em múltiplas iniciativas pontuais, interessantes e úteis, mas que não vão ao centro do problema: como fazer mudar, a curto prazo, o voto de muitos dos tais 80% do “arco” troikiano?
O que é este curto prazo? Segundo o calendário eleitoral, parece termos tempo, haverá eleições em 2015. Mas alguém garante que, com o aprofundar da crise e com grande resistência social, não haja eleições antecipadas, por exemplo no próximo ano?

Não sou eu que vou aqui propor o que deve ser o programa de tal partido, coisa para os seus fundadores - espero que eu também possa ser, a tempo. Mas creio que não é abusivo dizer o que considero o fundamento e justificação do meu desejo de ver criado um novo partido. Para já, essencialmente, algumas coisas que cumpram o tal objetivo essencial de oferecer uma alternativa a muitos eleitores que não confiam na “esquerda radical”: 

– Um partido que combine o respeito pelos valores e ideais tradicionais da esquerda com uma compreensão, traduzida na ação, das grandes mudanças sociais das cinco últimas décadas, na estrutura social, no trabalho, nas aspirações individuais.
– Um partido que ganhe uma imagem de credibilidade junto de eleitorado que até pode não se rever na esquerda partidária atual mas que é sensível à pedagogia política séria, à honestidade inteletual, ao rigor das análises e à informação correta.
– Um partido que defenda um projeto progressista de união europeia mas que não fique refém desse projeto como quadro principal das lutas nacionais, muito menos de solução em prazo útil da crise do euro.
– “Last but not the least”, um partido que esteja aberto, publicamente, à consideração e estudo, a curto prazo, de todas as hipóteses alternativas à política ordoliberal traduzida na austeridade que nos é imposta, nomeadamente a reestruturação da dívida e/ou a saída do euro.

Nota - Os dados da sondagem grega foram transcritos do Arrastão