quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Coelho fora, mas como votar a seguir (III)?

E concluo com o aspeto mais determinante desta discussão, o de maior interesse prático para os eleitores: seja em 2015, seja antecipadamente, o que mudará com o voto? O que mudou passando de Sócrates a Passos Coelho? Valerá a pena haver eleições ou não será melhor encontrar uma solução tecnocrática, um Monti que deve haver por aí? Alguém acredita numa verdadeira alternativa de governo de esquerda?

O que mudará com o voto? Há logo uma maneira muito simples, talvez radical, de responder: pior do que isto não pode haver, é matéria de salvação nacional retirar urgentemente do poder este bando de loucos que está a arruinar o povo português como nem o fascismo conseguiu, por muito que também lhe estivesse na sua “fé” política. Chegou-se a um ponto tal que essa urgência é tão premente que passa à frente de qualquer ponderação do que será o que venha a seguir. 

De qualquer forma, admitindo que seja vencedor o PS e mesmo receando que possa governar encostado à direita, penso que sempre tem alguma vantagem: mesmo que obedeça à troika e ao pensamento europeu dominante, e oficialmente obedece, parece-me que, ao menos, não faz gala em ser muito mais troikiano do que a troika. Que, por afinidade partidária, tenderá a ir mais venerar Hollande que Merkel. Claro que tudo isto pode ser menor, mas do mal o menos.

O que mudou passando de Sócrates a Passos Coelho (ou de Teixeira dos Santos a Gaspar)? Que pensem nisto todos os tais eleitores, de entre o pântano ou centrão dos 80%, que transitaram do voto num partido para o voto no outro. É verdade que já ninguém podia aceitar Sócrates sem vergonha ou ofensa à honestidade de cada um, mas a política não é só emoção ou reação primária. 

Muitos me dizem que se deixaram enganar, mas nunca mais. Gostaria de acreditar nisto, dito por quem se deixou enganar por Cavaco e lhe deu a maioria absoluta, por quem trocou Guterres ou Ferro Rodrigues por Durão fujão, por quem trocou Sócrates por Passos Coelho. Nunca mais se vão deixar enganar? Só quando se libertarem da influência desinformativa, ideológica, de comodismo de vida, de egoismo, de des-socialização, também de medo, que a sociedade hegemónica, à “big brother”, tem usado para os dominar.

Valerá a pena haver eleições ou não será melhor encontrar uma solução tecnocrática, um Monti que deve haver por aí? Assim começaram sempre as soluções autoritárias. Por detrás de cada “tecnocrata” está um político autoconvencido, arrogante, movendo-se no círculo fechado dos poderosos mundiais do neoliberalismo e com grandes raízes profissionais e de amizades na banca internacional, os homens do Goldman-Sachs. Gaspar, Borges? Ou então, qualquer provinciano senil (ou intelectualmente pouco honesto?), que só pode ser tido a sério num país de tão forte marca messianista sebastianina. 

Os pergaminhos técnicos servem para fazer esquecer a falta de cultura e valores éticos democráticos. Pior, talvez não só a falta, mas a existência dos contrários. A Dra. Manuela Ferreira Leite proferiu aquela célebre afirmação de que Portugal talvez precisasse de seis meses de suspensão da democracia. Foi tida como blague. Têm a certeza? E têm a certeza de que o Presidente da República, por quem passaria obrigatoriamente esta solução de governo, garantiria, como jurou, a obediência à democracia e à Constituição de um governo “tecnocrático”?

Alguém acredita numa verdadeira alternativa de governo de esquerda? Esta é a grande questão. Também eu, no imediato político, não acredito. Mas antes é preciso entendermo-nos sobre o que é uma alternativa de governo de esquerda. Estamos num momento muito propício a discursos ambíguos. Começo por falar da esquerda apartidária, em que me situo. É coisa muito fluida e complexa, extremamente plural (e bem bom!) e que, por não obedecer a disciplinas e instrumentalismos partidários, preza muito a ética pessoal e a sua independência mental.

Para esta esquerda, o que é a esquerda? O que interessa mais é o que é para ela a esquerda organizada, partidária. Joga muito aqui um velho e louvável sentimento radicado na unidade antifascista, que partilho (embora, pessoalmente, no âmbito do movimento associativo em que tive ações políticas destacadas, tenha tido por vezes de dizer não, mesmo contra a unidade).

Esta atitude unitária, ainda louvavelmente prevalecente, usa um critério inegavelmente útil: é fácil definir a direita; portanto, tudo o resto é esquerda. Infelizmente, não é assim. Por exemplo, nas eleições marcelistas de 1969, sabe-se muito bem como as ilusões de aceitação pelo regime, mesmo como o mendigo a provar a caridade do senhor, não atraíram só a ala liberal, também causaram a criação das três CEUD. As CDE eram indiscutivelmente esquerda. E as CEUD eram esquerda ou não? Depois, por exemplo, os conflitos dentro dessa “esquerda” muito larga – com reflexos no MFA – sobre a luta antimonopolista e sobre a descolonização, depois do 25 de abril?

Afinal, parece-me inegável e a ter sempre presente que esse entendimento muito ambíguo sobre “a esquerda” teve sempre avanços e recuos, de natureza tática. Creio que estamos numa situação única, simultaneamente de avanço e recuo. Pode parecer isto estranho, mas já explico a ideia, obrigatoriamente circunscrita já não a uma luta estratégica, contra o fascismo, mas a um ciclo político curto, em duas fases.

Para o grosso da esquerda, consequente, o ciclo político que vivemos tem como eixo de luta a recusa do austeritarismo; a recusa da ideologia neoliberal; a defesa acima de tudo do emprego, do bem estar mínimo garantido dos portugueses. E, para tudo isto, o crescimento económico; a obrigação de assumirem responsabilidades os causadores do principal problema, a dívida privada e nomeadamente a banca; e, se necessário, a aceitação das últimas consequências, como a suspensão do serviço da dívida e mesmo a sua reestruturação, para não falar da eventualidade de saída do sistema monetário do euro. Tudo isto é, essencialmente, a denúncia do memorando com a troika, obviamente que com negociações subsequentes.

Muita gente de esquerda, e dois dos partidos desta área, pensam que isto é absolutamente necessário para solução da crise e que, mesmo com custos elevados, eles serão inferiores aos custos terríveis, sempre a crescer e a derrapar, da política de austeridade.

Então, a plataforma de uma desejável alternativa de governo deve exigir esta base comum? É óbvio que o PS não está minimamente aberto a sequer discuti-la. Até onde ele pode ir é a) à pretensão de renegociação, com todos os cuidados, dos prazos do resgate, dos juros, de novas condições para recapitalização da banca e das condições para compra de dívida pelo BCE; b) à exigência, mesmo que só com efeitos propagandísticos internos, de compromissos do memorando que foram acrescentados pelo fervor gaspariano, depois da assinatura pelo PS.

Perante esta situação, PCP e BE, sem esquecer a importância de posições a defender por movimentos não partidários e pelos sindicatos, têm uma árvore de bifurcações de opções. 1) Mantêm a exigência da denúncia do memorando, e não há plataforma eleitoral, mas: 1.1) o PS tem maioria sobre o conjunto PSD/CDS (o que, para já, vai contra as sondagens) e o bloco PCP/BE fica em posição confortável, destacando-se da política do PS. 1.2) o PS precisa dos votos do PCP/BE (e/ou, não vou esmiuçar isto agora) mas exige-lhes apoio quase incondicional e estes ficam numa posição muito delicada. 2) O PCP e o BE dão sustento antecipado a um governo do PS essencialmente com o programa deste e então não podem colaborar na governação, tendo sempre que afirmar a sua posição e justificando cada voto com o “entre o péssimo e o mau, seja este”, mas com total liberdade de esclarecimento dos eleitores.

Porque é que falei em duas fases do próximo ciclo? Por causa de 1.1 ou de outra hipótese ainda, a de o PS, com maioria relativa, fazer um grande bloco troikiano ou então só com o CDS/PP. A meu ver, um primeiro ciclo legislativo para o PS, completo ou incompleto, nestas condições, seria catastrófico, eleitoralmente e em termos de fracionamento interna. Era a “pasokização”.

As posições vencedoras dos congressos recentes do PCP e do BE parecem apontar para esta estratégia de desgaste do PS e, por parte do BE, de um mimetismo com a Syriza, o que está longe de ser “cientificamente” sustentado. Parece-me claro que a moção A da convenção do BE aposta nisto, contra o que me parece ser uma posição mais flexível taticamente, mais atenta à psicologia especial dos possíveis dissidentes do PS, que era a da moção B, perdedora. No entanto, findo o predomínio Louçã, e apesar de não perceber como vai funcional a nova direção dual do BE, mantenho alguma expetativa positiva em relação ao traquejo político, do meu tempo, de João Semedo.

A hipótese 1.2 é de cortar à faca e desafia qualquer prognóstico. É imprevisível, depende do calendário, da reação popular às exigências da troika e à degradação económica, do nível de asneira do PS. É seguir a cada momento. À primeira vista, será catastrófica para o PS, mas não excluo consequências indesejáveis, mesmo golpes antidemocráticos.

Na hipótese 2) não acredito, pelas idiossincrasias de cada um dos partidos. No entanto, seria a via mais segura para a “pasokização” do PS, para a emergência de alternativas intra-partidárias. Até agora não falei disto, que me parece essencial. Um dos nossos problemas mais velhos na esquerda é a ausência de qualquer coisa entre o PS e o conjunto PCP/BE. 

Ficam ainda duas notas. Neste contexto, com tanta margem de imprevisibilidade, com uma dinâmica política que ultrapassa o sistema partidário, os movimentos podem ter um papel determinante. Alguns diluiram-se ou perderam dinâmica, até por terem sido coisas impreparadas a cavalgar a onda, outro remeteu-se a um trabalho muito circunscrito (a Iniciativa da Auditoria Cidadã da Dívida), muito dedicado mas teórico. Resta o de maior ambição de globalidade política e o de maior impacto público, o Congresso Democrático das Alternativas (CDA).

Em relação a tudo o que agora escrevi, parece-me ter o CDA um papel muito importante, como mediador: defende sem ambiguidade a denúncia do memorando; defende eleições antecipadas e declara-se a favor de uma alternativa eleitoral comum de esquerda; não hostiliza o PS oficial e mantém todas as portas abertas à discussão amigável e leal; procura relações com margens do PS. Pode ser que nada disto resulte, mas toda a muita gente que participou no Congresso ao menos fica de consciência política tranquila.

Também continuo a pensar que a esquerda portuguesa precisa de um novo partido, como tantas vezes discuti neste moleskine. Simplesmente, tentativas em que me empenhei, também as de outros, mostraram-me a inviabilidade, por razões que em boa parte lamento profundamente, de uma tal convergência de esforços. Embora admita uma boa dose minha de irrealismo, creio que só será possível um novo elemento de jogo partidário na esquerda por gemulação a partir do PS, desde que não feita por diletantes, mas sim por políticos a sério que sabem o que são as bases estruturais, financeiras e organizativas necessárias à criação de um novo partido.

E também o debate político e a coerência de posições que assemelhem esse novo partido a um Parti de Gauche francês e não à Esquerda Democrática grega, hoje no governo troikiano.

Faltou falar da rua. Não foi esquecimento. Disse logo de início que, por agora, ia falar só de eleições. A rua fica para depois.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Coelho fora, mas como votar a seguir (II)?

Tendo falado do troikismo, passemos à recusa. Não há muito a dizer, no essencial, embora haja nuances. No essencial, é cada vez mais gente que recusa o programa combinado com a troika, que recusa os programas e orçamentos do governo que ultrapassam em devoção esses compromissos, que recusa a ideologia neoliberal fanática que lhes está na base, que recusa a noção de que a austeridade a conduzir ao empobrecimento nos vai fazer sair da crise.

Não há dúvidas sobre a posição comum: é preciso denunciar o memorando, é preciso substituir urgentemente este governo. Mas há divergências, penso que resolúveis.

Uma tem a ver com a questão (e o termo) da “denúncia”. Há quem discorde por achar que não temos força para tal, que é uma aventura, que há é que propor renegociações. Afinal, é principalmente uma questão de bandeira política. É claro que ninguém imagina que “denunciar” é fazer uma declaração estrondosa e ficar calmamente à espera. O que se segue imediatamente é exatamente o que os outros propõem, uma negociação. Simplesmente, e isto politicamente é essencial, é uma negociação por parte de quem um murro na mesa, sabendo ao que se arrisca, não por quem, à Egas Moniz, vai de baraço ao pescoço ao Afonso troikiano.

Isto pode parecer uma pequena diferença tática. Não é. Faz-me lembrar tempos meus antigos de horas e horas de discussão com a principal corrente minha rival no movimento estudantil (antes dos maoistas), em que, sobre a luta antimonopolista ou sobre a descolonização, cada palavra não tinha só sentido tático; sentíamos que traduzia uma postura política e uma maior ou menor força de luta.

Mais importante e divisiva é a questão do euro. Há quem defenda como ponto de partida indiscutível a nossa auto-exclusão da zona euro. Na prática, penso ser a posição do PCP.  Pelo contrário, os europeístas utópicos recusam qualquer solução nacional que não seja no quadro da “refundação do euro”, numa via trotsquista à Syriza. Era claramente a posição dominante de Louçã no BE, verei como evolui o partido com a nova direção.

Sem desprimor para a legítima participação de militantes partidários nas mais recentes discussões sobre este tema, parece-me que se deve dar maior atenção a um grupo crescente de gente de esquerda não alinhada, em que me situo. 

Creio que foram muito instrutivas as intervenções na sessão de trabalho sobre economia no Congresso Democrático das Alternativas. Destaco as da mesa, de João Ferreira do Amaral, de Jorge Bateira e de Ricardo Cabral, todos concordantes em que a questão do euro é técnica, no quadro muito mais importante da requalificação económica e financeira do país. Ficar ou sair? É um fator, certamente muito importante, mas um fator entre outros. E cada coisa a seu tempo, no processo da negociação. Mesmo o relator, João Rodrigues, creio que publicamente identificado com o BE, teve a posição intelectualmente correta de não considerar a questão do euro como um tabu político.

Falta então o cenário do “nim”. Infelizmente, é decisivo, porque corresponde à posição oficial do PS, afinal a força política determinante na viragem (?) da nossa política recente.

Posso estar errado, mas parece-me que a posição oficial (e porventura maioritária entre os seus membros) tem uma vertente troikiana, como já discuti: o compromisso essencial com a troika é para se cumprir (tanto mais que, contra-natura, foi o PS que o subscreveu), a ida rápida ao mercado é essencial, os mercados não se discutem, nacionalizações paciência, também fizemos muitas. 

Ao mesmo tempo, coisas meramente cosméticas. Era bom termos mais tempo, juros um pouco mais baixos, menos pressão austeritária. Já alguma vez o PS disse como faria para pressionar os senhores da troika, mais os amigos banqueiros portugueses, mais os neo-liberais da casa de quem todos são amigos, a sentarem-se à mesa e discutirem tudo isto, quando a troika tem as coisas bem escritas no memorando, pelo próprio PS, e a que propósito ia aparecer como uma espécie de Madre Teresa de Calcutá? Principalmente quando a sua linha de defesa contra o cada vez maior erro das suas medidas os está a empurrar contra a parede, em vez de uma atitude científica de auto-crítica?

Já não há pachorra para este blabla, principalmente quando protagonizado por alguém tão baço, tão banal, tão Seguro/inseguro, como António José Seguro. E com uma equipa, um governo sombra, que se desconhece.

Com tudo isto que ficou dito, qual o cenário eleitoral? Chega por hoje. Amanhã continuo.

Coelho fora, mas como votar a seguir (I)?

Finalmente, tenho tempo para escrever alguma coisa, sempre prometida e adiada, sobre o quadro político numa dimensão muito bem definida: o quadro parlamentar, eleitoral, a breve prazo, com atores que provavelmente serão só os atuais partidos. Começo por isto. Defendi, a seu tempo (?) a criação de um novo partido que desencravasse mesmo que minimamente o impasse do nosso sistema político parlamentar. Por razões que compreendo bem, e até diferentes de grupo para grupo, não me parece viável a tempo de ir às próximas eleições (2015, mas muito provavelmente antes). Não vou discutir isto, porque poderia criar tensões entre pessoas bem intencionadas mas com visões e até interesses pessoais diferentes sobre esta questão.

Ainda hoje recebi mensagens de amigos com textos excelentes sobre a necessidade de propor aos cidadãos novos modelos de sociedade, novas perspetivas de felicidade coletiva, novas regras de cidadania. Claro que alinho, mas, neste momento, e contra muita coisa que tem sido escrita, a prioridade vai para a reflexão e o discurso teórico e prático da economia política, articulada com as soluções práticas e a curto prazo da intervenção política, bem como o grande fundo de movimento social, só indiretamente e em grau menor influenciando a decisão política do calendário quadrienal.

Parece-me importante distinguir três grandes campos, político-ideológicos e com efeitos no eleitorado, com nuances que discutirei a seguir: o troikismo, a recusa, o nim.

Começou por ser o arco da troikismo, 80% do eleitorado: 1. os governos anteriores deixaram-nos cheios de dívidas; 2. não há alternativa; se não conseguirmos ir ao mercado em breve não temos dinheiro; 3. além disto somos honestos e temos de pagar as nossas dívidas; 4. a formiga não tem culpa da cigarra, etc. Falácias! Vejamos, coisa coisa, e muito mais haveria.

1. Até à grande crise de 2008, os nossos indicadores (balança de pagamentos, défice orçamental, dívida pública) eram muito satisfatórios, em alguns casos e anos, sabem?, melhores do que os da Alemanha. Porque é que hoje toda a gente “emprenha pelos ouvidos” e não vai ler as estatísticas, tão fáceis de obter na net? Não gastamos mais do que podíamos, gastamos o que o sistema do euro nos impôs.

O que se passou a seguir – e ninguém que me tenha lido suspeitará de que eu tenha simpatia pelo execrável Sócrates – é que o seu governo, seguindo uma linha geral, neo-keynesiana e fortemente inspirada por Obama, decidiu investir dinheiro público na economia, principalmente por intermédio do apoio à banca e às novas tecnologias. Foi o seu erro fatal, porque foi a banca que acabou por lhe dar o beijo de Judas. Lembram-se de quem fez a grande pressão sobre Teixeira dos Santos para a vinda da troika? Pudera, em 78 mM €, 12 eram para recapitalizar a banca!

A Alemanha, a princípio, também alinhou na política do fomento público da economia, embora não se sentisse muito pressionada, dado o enorme excedente de balança comercial de que gozava. Por isto, e porque esta política keynesiana repugnava aos seus dirigentes políticos e financeiros, fanaticamente neoliberais como fanático só pode ser um alemão, e porque entretanto a pressão dos mercados, dos ratings, dos juros, começou a pôr gravemente em risco os ativos dos bancos alemães em dívida dos países meridionais, rapidamente se virou para o modelo oposto, o do austeritarismo que estamos a viver.

2. “Não há alternativa”. Isto é o máximo da manipulação política e ideológica, impede qualquer discussão. Foi, parece-me que indiscutivelmente, a razão do quase unanimismo da votação de 2011, independentemente do resultado, coisa de menor, de cada partido do “arco”. Seria longo discutir aqui como isto já está posto em dúvida pelo homem comum. Na TV, no jornal, na net, cada vez mais ouve e lê coisas alternativas, contraditórias, que talvez não perceba mas que lhe mostram que aquele coro unânime desafinou. Afinal, Manuela Ferreira Leite e Paredes não são do PSD? E Bagão Félix não é do CDS? E o inefável perito João Duque já não começa a dar uma no cravo e outra na ferradura?

3. “Somos honestos e temos de pagar as nossas dívidas”. Sabem, vocês gente ainda com fundas raízes camponesas, que esta mentalidade indiscutivelmente honesta mas primária, foi a base da “economia moral” de Salazar? “O país governa-se como uma família”. Estupidez! Ou melhor, coisa inteligente do beirão rural que tinha uma grande intuição sobre a natureza do Zé Povinho. A economia familiar é fechada, o investimento é mínimo, não há circulação financeira de mercado, não há relações internacionais, etc. E a economia do Estado obedece a deveres essenciais, os do desenvolvimento e bem estar do seu povo. Porque não se ver isto numa família? Os pais têm o seu “povo”, os filhos; há dívidas a pagar que passem à frente do mínimo de pão para os filhos? Há pai que vendo filho à fome não diga "não pago"?

4. “A formiga alemã não tem culpa da cigarra portuguesa”. Só um bom economista, não eu, é que consegue o poder de síntese para, num parágrafo, desmentir esta falácia. Primeiro, na década de 90, a Alemanha, ainda por cima sobrecarregada com a reunificação (que os outros europeus também pagaram!), só foi formiga porque os seus trabalhadores, com sindicatos que até tinham mentalidade empresarial, com grandes empresas deles dependentes, aceitaram uma enorme degradação do seu poder de compra, da sua segurança social, sem comparação com sacrifícios dos patrões, para uma competitividade de “desvalorização interna” que permitiu um grande excedente de balança de pagamentos.

Esta liquidez bancária serviu para uma campanha agressiva de crédito barato nos países da periferia europeia. Os bancos alemães (e franceses, bem como os holandeses na Islândia, por exemplo) ganharam fortunas. Em geral, foram movimentos especulativos, relativos a finanças e a bens não transacionáveis, que não acrescentaram valor às economias periféricas. Antes as tornaram mais frágeis quando, vendo-se a crise, os capitais voltaram aos bancos alemães. Se fomos cigarras, foi porque a riqueza das formigas exigia que houvesse cigarras. Com tudo isto, os mercados predadores da dívida pública viram a sua oportunidade. Não porque ela fosse grande, não porque o défice orçamental também o fosse, mas só porque tudo isso tinha resultado numa economia fragilizada, em que muito mais grave, como problema, não é o gasto público mas sim a dívida privada.

Afinal, só em prolegómenos, isto já vai longo. Nem passei do primeiro dos tais três campos ideológicos de que falei. Vou fazer uma pausa e continuarei.

Um vigarista até me pode fazer sorrir

O caso Artur Baptista da Silva, para mim, é principalmente divertido. Confesso que com alguma simpatia infantil, para quem leu Arsène Lupin ou achava que os truques toscos dos ilusionistas dos raros circos que iam à minha terra eram uma transgressão magnífica das regras certinhas em que era educado.

O homem não é um burlão, não ganhou dinheiro com as entrevistas ou com a conferência no Grémio. Aldrabão lá isso é, e aldrabou um jornalista que eu gosto de ler, Nicolau Santos, mas também com o efeito positivo de nos fazer sermos muito críticos em relação à comunicação social, como aqui tantas vezes tenho dito. 

E convenhamos que, se Nicolau Santos se deixou levar por ele, tanto numa crónica de jornal como num programa de TV, ou se uma assistência seleta o ouviu no Grémio sem desconfiar, é porque o homem deve ter um discurso económico e político consistente. Ou julgam que Alves dos Reis não teria sido melhor banqueiro do que Inocêncio Camacho, cuja assinatura conseguiu com o truque mais incrivelmente infantil, o da última página só com data e assinatura?

Agora o mais estranho é que, nesta “estória”, ainda ninguém tenha discutido o que o homem de facto disse. Veja-se uma das suas intervenções, que por acaso gravei e fui rever agora. O essencial é que o homem diz verdades! Como escreveu um comentador do vídeo, "o mais irónico nisto tudo é que um impostor tenha mais razão e perceba melhor a situação do que os nossos governantes". Talvez seja isto, afinal, que não lhe perdoam. Será que já chegamos ao ponto – claro que eticamente inadmissível – de se forjar toda uma história para se poder exprimir as suas ideias?

É muito pior do que os poemas ridículos e lamechas, de pé quebrado, que põem na net assinados por Pessoa, ou, vindos do outro lado do oceano, também por Carlos Drummond? Ou as cartas ditas de João Ubaldo ou, em Portugal, de Eduardo Prado Coelho, como se já tivesse desaparecido a capacidade mínima de identificar estilos e arquétipos mentais? Este vigarista, ao menos, gozou – e usou bem – este meio inculto em que vivemos, crédulo e acrítico, apesar das suas certezas com pergaminhos “académicos”. “It’s the press/TV/net, stupid!”

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Ça ira!



Ça ira! Está há muito tempo como ícone na barra lateral deste blogue. Hoje tem honras de destaque na coluna central, porque um dia destes talvez estejamos todos a dizer "ça ira". Foi uma célebre canção revolucionária da Revolução francesa. Este episódio, protagonizado por Edith Piaf, é do excelente filme de Sacha Guitry, “Si Versailles m’était conté”. Não o o encontro à venda, mas tenho uma versão digitalizada que posso fornecer a amigos.

A letra é atual, se substituirmos “les aristocrates” por “les banquiers”. Também deixando alguma ambiguidade entre “on les pendra” e hoje “on les prendra”. 

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Manifesto contra o manifestismo

O título é contraditório, mas haja lugar a algum humor de escrita, mesmo que se trate de coisas sérias. A pensar em humor na escrita séria, coisa queiroziana que nos ficou de jovem, tenho logo de mandar um abraço virtual ao Marcelo. Há tempos, deixei aqui e aqui as minhas reservas em relação ao último da infinda lista de manifestos de gente que parece que não tem mais nada onde exercer a devida ação política. 

Desde já digo que me é muito reconfortante ler a lista dos subscritores. Não vou procurar quem assinou, mas antes quem NÃO assinou e nestes, felizmente, encontro os meus maiores amigos políticos. E nem preciso de lhes perguntar porque não assinaram. Simplesmente porque “há, nos olhos seus, ironias e cansaços”, porque “sabem que não vão por aí”. Mesmo que Régio não fosse o poeta de estimação da minha gente dos 60s.

Tudo isto vem a propósito de uma notícia a que talvez não devesse dar qualquer crédito, porque publicada no pasquim Sol. É jornal que prenuncia o que vai ser o domínio da nossa comunicação pelo gangue da corrupção angolana (e isto é dito por um velho simpatizante do MPLA do tempo da guerra colonial).  Leio-o na diagonal, masoquisticamente, quando distribuído gratuitamente (porquê?...) num sítio por onde passo.

Diz-se que o grupo soarista do tal manifesto prepara uma coisa à Monti (fracassada ao fim de um ano), tentando influenciar o PR para nomear um primeiro ministro aceitável por amplos quadrantes, até sindicalistas, Silva Peneda, presidente do Conselho Económico e Social, ex-ministro de um ou mais governos de Cavaco. Até vai longe a notícia, identificando como apoio, que não imagino de todo, Manuel Carvalho da Silva. É o jornal do arquiteto Saraiva, iluminado pelo sol do título, artista português, palavras para quê.

Não quero crer. Vejo na lista de subscritores muita gente que, como eu, a haver como é urgente o derrube deste governo, só aceitam uma subsequência eleitoral, que não querem abrir as portas a nenhum cesarismo, que não veem no atual PR a grandeza política para garantir que uma tal solução fosse mesmo apenas e só uma coisa muito excecional e transitória, completamente à margem da sua agenda política. 

Deve ser coisa do tal pasquim, que não passou pela cabeça de alguns subscritores do manifesto. Mas este é o perigo do manifestismo. Ou a cada especulação vai cada um dos manifestistas explicar a sua posição?

NOTA 1 – Há dias, Filomena Mónica atirou-se que nem gata a bofe a Boaventura Sousa Santos, subscritor do manifesto soarista. Lembrei-me disto porque BSS é hoje o nosso manifestista-mor. Vai a todas, como vai a todos os financiamentos para o seu centro. Eu acho que MFF é uma diletante menina-bem e que atacando BSS há nisso muito prima-donismo das “ciências” (?) sociais, muitos ressabiamentos e invejas num meio em que afinal estão todos bem para os outros. Mas também é facto que o homem expõe todo o flanco. É o nosso expoente do manifestismo. Tanto assina coisas a favor da austeridade como dá entrevistas bombásticas de extrema esquerda. 

NOTA 2 – Vendo o tal pasquim dirigido pelo inefável arquiteto autor do mais ridículo e literariamente inepto romance policial de cordel, em folhetins a cada número do jornal (inimaginavelmente abaixo de José Rodrigues dos Santos, porventura o seu émulo), reparo que muitas páginas ímpares são ocupadas com anúncios de página inteira da Boutique dos Relógios. Não é publicidade para Portugal. O pasquim é hoje muito vendido em Angola, que se sabe fornecer boa parte da clientela das lojas de luxo da Av. Liberdade. Quem é hoje o dono da loja? Ao que chegou a “grandeza lusitana”, a “ditosa pátria minha amada”...

O americano armado

As discussões sobre o massacre de Newtown têm focado muito o problema das armas. Não me parece o essencial, embora o considere muito importante. Mas, afinal, quem quiser matar em massa, pode lançar uma bomba artesanal, um Molotov, ou até esmigalhar crânios com um taco de baseball. O problema é outro. As armas são apenas o instrumento de uma cultura de violência e de des/para-socialização da construção da sociedade americana.

A América é uma realidade complexa, desafiadora de qualquer mente aberta. Foi muito fácil, na guerra fria, fazer a sua diabolização. Lembro-me de uma colega, cientista supostamente racional mas comunista ultra-sectária, ter sofrido com a necessidade de ir a um congresso aos Estados Unidos, ter um passaporte para o inferno.

Não há uma América, como é que podia haver. Há o leste gravitando em torno de Nova Iorque, das univerrsidades Ivy League, há a Califórnia; há o sul texano; há o polo dos grandes lagos; tudo o que eu conheço. E mais, há o interior, "middle west", que só conheço por uma imagem talvez estereotipada do cowboy, dos filmes com os clientes brutos dos bares e dos motéis. 

Talvez tenha sido mais importante para mim conhecer americanos antes de conhecer a América, quando tive excelentes colegas americanos no meu instituto suíço. 1973, era o Vietnam e o Watergate. Na maioria, eram liberais ou radicais, coisa difícil de definir, fora dos esquemas ideológicos e partidários europeus. Eram contra a guerra do Vietnam, eram Woodstock, interrogavam-me entusiasticamente sobre a revolução em Portugal. Muitas vezes eram mais radicais do que eu, outras vezes pareciam-me presos à "democracia americana". O que não percebiam era isso de eu então ser comunista! E eu não percebia coimo eles podiam desconhecer o simples significado da palavra "socialismo".

Mais tarde, em idas sucessivas aos EUA, quase anuais, passei por muitas conversas com amigos anti-Reagan, depois apoiantes de Clinton em plena campanha eleitoral, estive num “meeting” científico que alterou o seu programa para podermos todos assistir, pela TV, à libertação de Mandela, muito mais tarde, já reformado mas recordado e convidado pelos meus amigos, assinei manifestos promovidos por amigos americanos contra a guerra do Iraque e contra a prisão de Guantanamo. Saravá, Dick, Sue, Bob, Linda, Mark, Steve, Donald, Paula, Enzo, Daram, etc., etc. Para além do muito que desde então conheço da América, hoje cada vez mais vejo que é de lá, dos seus economistas progressistas, que nos vem alento e bons conselhos, na nossa crise económica e financeira.

Um dos livros mais importantes que li nos últimos tempos foi o “The American Future”, de Simon Schaman. A história da construção da América, da solidificação dos seus valores, depois dos conflitos entre esses valores na guerra da Secessão, da síntese entre a cultura dos pais fundadores, puritanos, "wasp" e as mais diversas culturas de imigrantres (até os meus patrícios ilhéus) é fascinante. Não é possível que um país passe facilmente de um espaço limitado na costa leste, das 13 colónias fundadoras até ao domínio do enorme território atual. 

Foi essencial um grande sentido prático de ordenação das comunidades colonizadoras, de “lei natural” da sua origem inglesa, de supremacia do direito de defesa individual, de proteção armada da família. “Wild west”. Ou o juiz Roy Bean e o seu urso. Também, mais execravelmente, “a good indian is a dead indian”. Também que, sem o poder armado do homem comum, não teria havido KKK. Mas, infelizmente, a história não é feita por madres Teresa de Calcutá. Felizmente, também não por Gaspares, que vêm e vão, a onda bate e rebate mas a praia fica e nós a nadarmos.

E os massacres loucos de “mass murders”, como este de Newtown? Não tenho competência de Psicologia e de Sociologia para os discutir. Tendo a associá-los, em termos de desumanidade, a atentados de 11 de setembro ou de Atocha, a bombistas suicidas e coisas do género, ao monstro norueguês, mas talvez haja diferença, porque os últimos invocam uma ideologia. Os “mass murders” são só psicopatas. Ou sociopatas? Caso possível de interseção é o do norueguês. Claramente um psicopata, mas também alimentado por uma ideologia sociopática, o que não vemos nos casos americanos.

Concluindo, sou absoluto adepto do controlo das armas, do controlo dessa tenebrosa instituição americana National Riffle Association, até pelo menos há algum tempo presidida por Carlton Heston, mas julgo que há muito mais de patológico por detrás de uma respeitável professora, mãe de família, ter quatro armas mortíferas em casa, nem sequer resguardadas da possibilidade de acesso por um filho jovem. Um filho jovem que ela – e mais quem? – criou como um monstro.

NOTA – Veio bem a propósito uma apresentação que me mandaram: "Supermercado como este, só nos EUA".

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Universidades privadas (I)

Quando sedimentada a poeira do caso Relvas, dentro de dias (e aqui direi do que resultar), no que respeita à universidade que lhe conferiu o grau - mal ou bem, mas estou certo de que sem dolo, a nível institucional - é altura de se refletir sobre a chamada “acreditação de aprendizagem prévia experiencial” (”Accreditation of prior experiential learning”, APEL). 

Tanto se disse que era coisa indiscutível do processo de Bolonha, quase que a sua essência, sem mais regras nem considerações de prudência, como se disse que era uma ofensa a quem cumpre o seu percurso académico padrão. Nem uma coisa nem outra. Escrevi algumas reflexões mais elaboradas e documentadas sobre isto, no meu sítio, que sinto merecer reanimação, embora com respeito pela transparência dos eventuais conflitos de interesses.

Fez-se muita asneira sobre este assunto, em públicas e em privadas. Reflexo, afinal, de que a maioria das instituições, seus responsáveis e professores, nunca estudou a sério o processo de Bolonha e por isto a sua transposição para Portugal é uma caricatura vergonhosa. Não só asneiras, também aldrabices. A Lusíada, hoje na presidência da associação das privadas, veio dizer que nunca tinha feito creditações profissionais. Mentira, como eu sei pelo estudo que tenho estado a fazer de todos os processos da Lusófona, bom número de casos transitados da Lusíada. Começo a sentir que tudo isto entre universidades é coisa demais para a minha carroça.

Este caso veio também novamente pôr em discussão, com boa dose de preconceitos, a questão das universidades privadas. Ninguém que me leia duvida da minha defesa do serviço público, na educação, na saúde, na segurança social. Mas isto não significa que não admita o privado, não por qualquer espécie de direito natural, mas como complemento obrigatoriamente de qualidade controlada quando o serviço público é insuficiente. Ou como coisa de mercado, para quem quer pagar, sem qualquer contributo público. 

Se, com tudo isto, continuo com responsabilidades numa privada, é porque ainda acredito que é esforço que vale a pena e que me poderá gratificar. Se não...

No caso das universidades privadas, a pergunta óbvia é: com propinas altas, porque é que ainda têm tantos alunos? Luxo de ricos? Não é verdade, porque têm alguma conotação pejorativa que até afastaria os ricos, ao contrário das clínicas privadas. E não é verdade porque eu, que lá ando, vejo uma pequena minoria de meninos-bem preguiçosos e ostentadores de riqueza, que passam o dia na cervejada, contrastando com uma maioria que almoça sopa e sandes e que não tem estacionamento para o Porsche que não tem.

Como é que, apesar de tudo isto, as melhores privadas - uma ou duas - conseguem sobreviver face às públicas que recebem do financiamento público e das propinas uma verba por aluno muito mais alta? Tem a ver, principalmente, com a sua natureza de “universidades de ensino”, contra a de “universidades de investigação” do setor público. E será mau ser-se “universidade de ensino”? Algumas das melhores americanas assumem este estatuto. Escreverei sobre isto, um dia destes.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

"Tem pai que é cego..."

Hoje, no Expresso, sobre o vice-reitor do Seminário do Fundão, suspeito de pedofilia: 
“Um antigo bispo da Guarda admite ter conhecimento de que o padre detido por suspeitas de pedofilia se deitava com rapazes, embora não acredite que tenha chegado a praticar ‘atos físicos’. Segundo declarações de D. António dos Santos à SIC Notícias, o vice-reitor do seminário do Fundão, padre L... M..., está a pagar o preço da sua ‘imprudência’.”
Era como o Michael Jackson! "Neverland".

NOTA – A omissão do nome do padre é minha, não do Expresso.