quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Novos partidos e partido novo

Cara Joana,
Perguntaste-me (creio que a camaradagem nos permite este tratamento) em comentário na minha página do facebook: “Não precisamos de “novos partidos”. Precisamos de um “partido novo”.» E isto significa…?”
É um trocadilho que muitas vezes uso, quando toda a gente se agita e pia para fundar partidos, mas quando vemos que essas iniciativas são coisas oportunistas e cosméticas, para ganhar um lugarzinho à sombra do grande patrão que só se ri destas habilidades.
Partido novo é, por contraponto a novo partido, uma metáfora para outro termo que eu e muitos amigos usámos no fim dos 80: partido alternativo. Também já escrevi muito sobre isso, por exemplo aqui:
“(…) Abordei a dinâmica e consequências sociais, económicas e culturais das mutações sofridas pelas sociedades industriais. Seria estranho que essas mutações não tivessem tido também efeitos sobre o quadro político e as suas formações tradicionais, sobre as ideologias, os programas, a organização e funcionamento dos partidos.”
“A noção de partido alternativo é todavia ainda ambígua e imprecisa. Esses partidos definem-se ainda principalmente pela negativa, em oposição aos partidos tradicionais. Podemos tentar alinhar algumas possíveis caracterizações parcelares da “alternatividade”: a) ênfase na democracia participada, na vida comunitária, na discussão e tratamento dos problemas locais; b) empenho nos movimentos sociais; c) privilégio a um largo e difuso campo de acções de resposta a “novos problemas” (releve-se a imprecisão do termo), tais como a defesa de minorias, do ambiente, a luta anti-militarista, ou algumas formas de lutas feministas; d) maior flexibilidade na abordagem dos problemas políticos, mais liberta de rigidez e preconceitos ideológicos; e) características organizativas de flexibilidade, com recusa de demasiada hierarquização. Algumas destas caracterizações só valem se entendidas por um prisma diferente do habitual, o que introduz um ou- tro factor de imprecisão.”
“A alternatividade não tem em si própria um objectivo histórico. É mais uma atitude ou forma de estar na política, que só faz sentido se ao serviço de um projecto político global. Sem considerar a ideologia como enquistadora e divisionista, mas sem negar o valor teórico, agregado e mobiliador das contribuições ideológicas. Mas, em síntese, só uma ideologia “aberta”, fundamentalmente um esqueleto central de ideias e valores a preencher permanentemente com as mais variadas contribuições, é que poderá corresponder à actual fluidez histórica.
“Neste sentido, consideramos como partido alternativo não apenas um partido com as características fraternas de organização e praxis acima referidas, mas também, e obrigatoriamente, um partido que seja portador de um projecto global e coerente de transformação social e de rotura com o modelo social e económico dominante.”
“Um partido alternativo não se situa facilmente em relação aos outros porque o seu nível, o seu plano, é diferente. Isto não significa, porém, que não tenha que se situar em relação à grande fronteira que continua a separar o que, por comodidade de expressão, continuamos a designar como esquerda e direita. Não interessa agora, nem sempre é fácil (veja-se a actual terminologia a leste) identificar no concreto, em relação a cada partido, o que é esquerda.”
“Na vastidão do horizonte da mudança, as ideias e aspirações que darão corpo teórico a um novo projecto de Esquerda, a um projecto de novo socialismo, não virão apenas das formações políticas . Virão também, e cada vez mais, dos mais variados campos de análise da sociedade actual, com realce para as ciências sociais, e da convergência das múltiplas lutas e intervenções sectoriais que questionam a sociedade actual, no domínio cultural, dos direitos humanos, da defesa do ambiente, da defesa da paz, do património, da luta por interesses comunitários e regionais, etc.
Em coerência com a actual situação histórica, a renovação da Esquerda, com a criação de novos “partidos alternativos”, deve caracterizar–se fundamentalmente por:
a) uma atitude de abertura ao recolocar de todas as grandes questões, como por exemplo a análise crítica do industrialismo (independentemente do sistema socio-económico), a compatibilização das aspirações individuais e do progresso social, as relações entre riqueza material e qualidade de vida, o conceito de igualdade individual na actual complexidade social, a própria noção de progresso;
b) uma maior dimensão sociológica e psicológica na abordagem dos problemas políticos, um discurso centrado no quotidiano e na sociedade civil e menos na gestão do Estado, uma atitude mais isenta de rigidez e preconceitos ideológicos;
c) a redefinição das prioridades na acção política – ataque ao modelo de sociedade e de desenvolvimento, mais que ao sistema económico-social; defesa de uma solidariedade social mais ampla que o tradicional confronto de classes; limitação do peso do Estado, mas sem excessos liberalistas, perversores da igualdade de oportunidades e da solidariedade; maior ênfase em tudo o que respeita à concretização dos direitos de cidadania e à efectivação de uma verdadeira democracia participada.”
Este artigo está datado e postula que é ainda possível congregar forças de esquerda (como se considerava à data, para acções transversais transformadoras). Em 25 anos, mudou muito, mas, sendo optimista, creio que se manteve ou reforçou o sentido de cidadania das pessoas e a rejeição da podridão dos partidos tradicionais, o privilégio aos movimentos sociais. Por outro lado, as pessoas estão cada vez mais indignadas com a corrupção, com a porta giratória, com o engano do que tinham por esquerda, a social-democracia aliada ao neo-liberalismo.
Desconfiam de novos partidos encabeçados por jovens aprendizes da mesma escola. Falo por isso de “partido novo”. Faz sentido? Honestamente, não sei.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Os equívocos do populismo

Tinha-me comprometido a escrever sobre o Podemos, um fenómeno político que me deixa perplexo, por vezes desagradado e ao mesmo tempo me suscita reflexões interessantes e instrutivas. Foi o que se passou, por exemplo, na última sexta feira, na sessão organizada pelo BE.
No entanto, antes de escrever sobre o Podemos, parece-me útil limpar algum mato que tem contaminado a discussão, misturando, a propósito e a despropósito, um termo muito ambíguo, o populismo. Não gosto dele. Ao longo de dezenas de anos, vi usá-lo com significados diferentes, que confundem. E, agora, até o vejo referido, bipolarmente, a uma situação particular, a da União Europeia. É difícil entendermo-nos.
Passando rapidamente, ao longo da história, pelos poíticos que governaram, com respeito pelas regras dos seus sistemas, mas a favor do povo, contra a aristocracia, como os romanos Públio, Druso, Rufo, Catilina, Mário, César, chegamos aos que, o fizeram com base em poder pessoal e ditatorial. Na Europa, um exemplo é o reformismo napoleónico ou bismarkiano, mas mais frequentemente intitulado (leia-se Marx) de bonapartismo. O poder legislativo perde poder para o executivo, mas este procura construir uma imagem carismática de um representante popular.
Próximo desta concepção – e era o exemplo que tínhamos em mente na minha juventude – foi o populismo latino-americano, fundamentalmente o Estado Novo de Getúlio e o peronismo. O elemento central da sua definição é uma relação indissociável de autoritarismo demagógico e carismático (e francas simpatias com os fascismos europeus) com um suporte de progressismo e de medidas sociais de cariz popular – mas também não foi o que fizeram os fascismo europeus?. Quem lê Graciliano Ramos horroriza-se com o “Tarrafal” getuliano onde estavam os presos comunistas do Getúlio. Também nos lembramos da entrega aos nazis, para ser morta, da mulher do secretário geral comunista, Luís Carlos Prestes.
No entanto, restaurada a democracia depois da guerra, Getulio foi eleito esmagadoramente, promoveu reformas sociais importantes (férias pagas, salário mínimo) e nacionalizações e, com isto, foi impiedosamente perseguido pelos interesses oligárquicos e pela imprensa, que o acossaram até ao suicídio.
(Tenho um estimado amigo brasileiro com quem partilho grandes afinidades da nossa juventude coetânea. Na universidade, andou, com responsabilidades, pelos meios comunistas. Andou na resistência ao golpe militar de 64. Depois.muito próximo de Brizola, foi cofundador do PDT, mas de que já é crítico pela esquerda. Tem grande admiração pelo Getúlio do pós-guerra. Mas nunca me conseguiu explicar como situa o Estado Novo. Será com a provocação deste “post”?) 
Nesta confusão, eram os próprios populistas que se apresentavam como desafiadoras da democracia clássica, com uma representividade fundamentadada diferentemente: a democracia encarna-se num movimento político que demonstre representar os interesses das classes populares – e por elas seja reconhecido como tal na rua e na movimentação social –, sem as limitações formais clássicas e poliárquicas da democracia liberal, afinal sujeita, de uma forma ou outra, à imposição de uma minoria económica à “classe política”.
Os governos e movimentos progressistas actuais (a Venezuela, o Equador, a Bolívia, o Uruguai, menos o Brasil, no futuro talvez a Argentina e o Chile) são herdeiros directos desse populismo? Creio que só vestigialmente. Em primeiro lugar, são governos legalistas que, apesar do que diz a imprensa, só reprimem uma oposição muito forte por medidas estritamente legais. Em segundo lugar, porque têm de lutar com aspectos novos do imperialismo – globalização, predação, dívida. Em terceiro lugar, porque ainda é frágil a teorização que dê coerência a essa acção políica progressista e anti-imperialista. O chamado “Socialismo de século XXI" está cheio de contradições e o seu ideólogo, o alemão Heinz Dieterich, marxista e estudioso crítico do fim da União Soviética, acabou por cortar as relações de colaboração com Hugo Chávez.
No entanto, sendo progressistas, não os podemos considera ainda como socialistas. As suas políicas sociais avançadas não têm posto em causa a estratificação social, a enorme disparidade da distribuição da riqueza, a não apropriação estatal da propriedade de sectores estratégicos. O caso exemplar é o do Brasil, em que o inegável progresso do nível de vida das classes populares mais desfavorecidas não foi acompanhado por uma revolução do sistema económico.
Como se classificam estes países? Ditaduras populistas, como são apodados por toda a máquina comunicacional ao serviço dos interesses dos poderosos? Ou novas construções de poder popular? Não sendo socialistas, prefiro chamar-lhe “países progressistas anti-imperialistas” ou regimes anti-oligárquicos.
Isto também marca outra diferença, também terminológica. Na Europa. o termo populista está associado a governos que não estão no poder, que não mostraram ainda esse eventual carácter ”populista”, sem medidas a favor do povo já concretizadas. Casos exemplares são o 5 estralas italiano e, com mais ênfase na denúncia demagógica de podridão do Estado,mas sem alternativas, como tudo o que venha a ser, em Portugal, a corte de Marinho (e) Pinto. Não têm um programa coerente, não se lhes vê facilmente o posicionamento em relação às questões económicas e sociais, usam os aspectos mais epidérmicos do descontentamento (corrupção, escândalos, benefícios) para ganhar votos. A isto, em vez de populismo, prefiro chamar demagogismo.
Aliás, não faz sentido falar em populismo, ou melhor demagogismo, de esquerda e de direita. O demagogismo é um método poliico de manipulação, por natureza avesso ao debate que caracteriza as ideologias e assenta fundamentalmente no carisma e na capacidade oratória e persuasiva dos líderes. Nos tempos modernos, só dispensa as camisas castanhas ou pretas.
O populismo apresenta obras que lhe ganham apoio real. O demagogismo faz discursos, que lhe ganham votos iliusórios.
Mais desrazoável é outra atribuição do termo populismo, em termos de oposição à União europeia e ao euro. Não consigo descortinar a razão. A consequência, a acrescentar a confusão, é ter de se distinguir o “populismo” de esquerda do grupo parlamentar GUE/NGL, a que pertencem os eurodeputados do PCP, do BE, do Syriza, do Podemos; e os “populistas” de direita, fascisantes e xenófobos, como a Frente Nacional francesa e o UKIP inglês.
Continuemos na Europa. A crise que atravessa o sistema político tradicional de democracia parlamentar representativa já vem detrás. No fim dos anos 80, apareceram os partidos alternativos, entre os quais, em Portugal, o renascido MDP, de que já bastante tenho falado. No entanto, a crise ainda era larvar, escrevia que “a alternatividade partidária ainda ainda se define principalmente pela negativa, em oposição aos partidos tradicionais. Podemos tentar alinhar algumas possíveis caracterizações parcelares da “alternatividade”: a) ênfase na democracia participada, na vida comunitária, na discussão e tratamento dos problemas locais; b) empenho nos movimentos sociais; c) privilégio a um largo e difuso campo de acções de resposta a “novos problemas” (releve-se a imprecisão do termo), tais como a defesa de minorias, do ambiente, a luta anti-militarista, ou algumas formas de lutas feministas; d) maior flexibilidade na abordagem dos problemas políticos, mais liberta de rigidez e preconceitos ideológicos; e) características organizativas de flexibilidade, com recusa de demasiada hierarquização.”
Ainda hoje, com base nisto, costumo dizer que, mais do que ”um novo partido”, precisamos de “um partido novo”.
Hoje, já estamos perante uma crise da representação política, de uma crise do sistema democrático parlamentar. 
As pessoas não se sentem representadas, têm vergonha de quem elegeram mas não puderam fazer outra coisa, vêem as maioria dos políticos afogados num pântano de incompetência da formação nas jotas, de carreirismo, de paralelismo e clientelismo no partido, de falta de ética, de promiscuidade com os negócios.
Vêem que os milhões de pessoas simples, honestas, trabalhadoras, estão dominadas por uma oligarquia que se autoprotege, que dirige a vida pública e governa os bens nacionais, que vão todos aos clubes internacionais mais ou menos secretos que governam o mundo, que uma vez um outra vez outro vão deixar a mão de Merkel e outros que tal. É a oligarquia, que Podemos popularizou agora com o nome de “casta”.
É sintomática a preocupação de muitos políticos, a cada escândalo, em afirmar “que os políticos não são todos iguais”. Também eu o disse muitas vezes, por considerar que essa afirmação contra a “classe política” era típica do demagogismo antidemocrático, com o qual não alinho. Penando melhor, não devo ter tantos escrúpulos. Em vez dessa proclamação, os deputados honestos têm o dever é de corrigir o sistema, a começar pelos vícios do seu próprio partido, a falta de elaboração ideológica, de reflexão.
A democracia representativa está em crise, mas devo admitir que não vislumbro bem o que poderão ser, no concreto, as suas alternativas – democracia participativa, democracia com forte componente de democracia directa, democracia assente nos corpos intermédios? Sei que todas têm vantagens e também inconvenientes, até grandes limitações práticas. 
Essencial é que o poder seja devolvido ao povo e que a oligarquia deixe de sequestrar a democracia.
E dito tudo isto, e vindo tudo a propósito do Podemos, o que é o Podemos? Populista? Demagogista? Progressista? Neo-socialista? Alternativo?
Fica para a próxima.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O que é a esquerda?

Como disse no último texto, toda o rigor intelectual e histórico da nossa discussão política actual esbarra numa pergunta difícil: o que é a esquerda? 
Para uns, é uma categoria política estável, que enquadra a priori formações políticas, sem olhar para a evolução político-social e que as fixa nessa classificação. Para outros, é uma metáfora, um conjunto de indicadores que, a cada momento, e em tensão dialéctica, ajudam a localizar e a definir na prática formações políticas e sociais, bem como mentalidades e expressões culturais.
E até pode acontecer que, em certas circunstâncias, o purismo louvável dos que querem ser intelectualmente honestos e que se referem à esquerda se choque com o pragmatismo de a melhor defesa dessa esquerda seja, em certas condições de combate ideológico, ajustar ao sentido comum o uso do termo esquerda. Lembrando o gato de Deng Xiaoping.
Como é bem sabido, o termo esquerda vem da Revolução francesa, dos lugares ocupados na assembleia pela ala radical, do terceiro estado. Tão forte é a metáfora que muito depois, na nossa constituinte, foi fácil colocar no plenário os partidos, por essa convenção.
Na essência da metáfora, está o respeito escrupuloso pelos três princípios, igualdade, liberdade, fraternidade. Mas também as suas consequências políticas práticas, na altura: a destituição do rei, a abolição dos direitos senhoriais, o livre-pensamento.
A seguir, a dicotomia esquerda-direita evolui sempre em relação à situação histórica concreta: emergência dos movimentos de trabalhadores nas revoluções de 1848, comuna de Paris, social-democracia alemã e francesa e bolcheviques do início do século XX, movimento comunista, social-democracia norte-europeia do pós-guerra, guerrilha latino-americana, movimentos anticoloniais.
Mas não se esqueça que a esta esquerda convencionalmente política se ligaram sempre movimentos menos convencionais, como os de defesa do ambiente, os de defesa dos direitos das minorias sexuais, os pacifistas, os de mobilização comunitária. No conjunto, parece-me que se reúnem num paradigma actual de esquerda, o de transformação social, de um novo humanismo, de protesto anti-sistema, de luta contra a desigualdade e a marginalização.
Por isto, não reconheço proprietários da esquerda, se vista como uma esquerda que, como disse atrás, é uma categoria política estável, que enquadra a priori formações políticas, sem olhar para a evolução político-social e que as fixa nessa classificação.
Depois, há a própria evolução de formações que muitos continuam a aceitar, mesmo que criticamente, como de esquerda. Como é que se pode considerar de esquerda, e com isto elaborar construções mentais que caem pela base, pela sua falsidade, partidos que renegaram completamente essa sua qualidade? Como pensar que eles, mesmo em coligação mas com forças de peso negligível, vão corrigir essa inflexão que fizeram em direcção ao inimigo principal?
Repetindo, é erro grave considerar a dicotomia esquerda-direita como estática. Alguns aspectos sobressaem numa fase, outros noutra. Como exemplo flagrante, há vinte anos, o conflito militar. Hoje, a luta contra o neoliberalismo. O PS foi de esquerda há 40 anos? O PS é de esquerda hoje?
Isto também se articula com o uso de outras categorias. Como e quando usamos hoje os termos trabalhadores, povo, cidadãos, pessoas, gente? Não são cientificamente equivalentes, mas a política, a mobilização das pessoas, o leva.las à conquista do poder, é uma ciência de académicos ou uma arte que aproveita dessa ciência o que interessa para iluminar a acção?
É preciso chegarmos ao povo de esquerda. Quem são?Talvez muitos que nem gostem que lhes chamem assim, que votam centrão, enganados, e estão fartos, mas que sabem o que perderam desde que, há vinte anos, lhes criaram uma ilusão de pote de ouro, que descrêem do sistema, que continuam a ter uma miragem de um utópico PS mas já não acreditam em Seguros e Costas.
Mas que também, indignados, se revoltam só a dialogar com a televisão, que não sabem ler os textos da esquerda intelectual, que nem fazem ideia do que é isso de primárias abertas.
É preciso chegar às pessoas, àquelas que não sabem que são de esquerda e que até nem querem que lhes digam que são.
Era bom que relêssemos alguma coisa sobre o conflito entre mencheviques e bolcheviques, entre Fevereiro e Outubro. E também as teses de Abril. Não é para copiar, mas para reflectir. Como, por exemplo, numa entrevista recente, Pablo Iglesias, do Podemos, ter dito que uma das coisas mais geniais em política tinha sido a síntese de Lénine, “paz, terra, pão”.

Vendo as coisas hoje, e não subestimando a análise estrutural, eu diria que as grandes bandeiras mobilizadoras passam pela compreensão de que toda a miséria política, social e económica passa por duas coisas que não precisam de grandes análises teóricas. 1. O capitalismo devorou a democracia, instalou a corrupção, destruiu a cidadania, construiu um sistema partidário que deixou de representar os cidadãos. 2. O capitalismo instaurou uma ordem económica baseada no garrote económico, na destruição do estado de bem-estar duramente conquistado, o que não se muda sem alívio da dívida e, eventualmente, saída do euro.

A esquerda, hoje, é essencialmente a luta contra estes dois vectores.

Namoro ao PS

Um “post” meu anterior questiona a mais recente iniciativa “convergencista”. Não me daria ao trabalho de continuar em guerras que já não são minhas se não lesse, por exemplo na minha página do Facebook, comentários de amigos que, com generosidade, vão por ondas que, salvo o meu devido respeito, me parecem utópicas ou mesmo oportunistas.
Boa parte das movimentações políticas durante este tempo de troika e de governo obediente têm girado em torno da convergência da esquerda. Fora algumas propostas minoritárias de favorecimento de uma aliança inicial de um núcleo duro de esquerda, como tenho proposto (inicial mas para fortalecimento de um interlocutor táctico com o PS, em fase seguinte), acaba tudo por cair no buraco negro da aliança com o PS.
“Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto”.
1. Algumas notas históricas
Se, com facilitismo, datarmos do verão quente de 1975 as dificuldades de relacionamento entre o PCP e o PS, muito dificilmente poderemos atribuir culpas preferenciais. Acusa-se o PCP de sectarismo e triunfalismo, de tentativa de manipulação do MFA em seu favor. Admitamos que sim. Mas então, os que o dizem devem lembrar-se de que o PS inventou o caso República, não era menos dependente dos dinheiros alemães do que o PCP das ajudas de leste, que conspirou com Carlucci, que dividiu o movimento sindical, criando a UGT. Que, depois do 25 de Novembro, destruiu a reforma agrária e a democracia participativa do poder popular. Que, na revisão constitucional juntamente com o PSD, devolveu os monopólios aos anteriores sustentáculos do fascismo.
Por essa época de refluxo, o PCP bateu sempre na tecla do verdadeiro partido socialista e na falta de representação partidária de um largo sector de verdadeiros eleitores socialistas. A meu ver, foi um erro. O PS foi-se afastando cada vez mais dessa imagem de interlocutor idealizada (sinceramente?) pelo PCP e nunca o eleitorado ou os militantes do PS puderam fazer inflectir a política partidária de cedência, aliás na onda de toda a social-democracia europeia. Esperar uma transformação significativa do conjunto da esquerda por essa via é uma ilusão perigosa.
2. O que é a esquerda?
As recentes movimentações político-partidárias têm uma dificuldade evidente, ao procurarem escamotear uma contradição insanável: parte-se do princípio que é inevitável na prática garantir um governo centrado no PS e, para justificar o apoio das “esquerdas amigas”, defende-se, a priori, que esse governo seria de esquerda; mas, face a tantos e tantos desvios e cedências do PS no caminho do neoliberalismo, omite-se essa crítica. Ou então (estão a gozar comigo?) essa tendência natural do PS para o bloco central (veja-se o artigo lamentável de Francisco Assis, hoje, no Público) pode ser facilmente revertida (!!!) pela acção politicamente diletante de quem se oferece antecipadamente ao PS como seu enfeite.
Isto do que é ser esquerda tem muito que se lhe diga. Fica para “post” seguinte.
3. Sentido prático de uma aliança
Desejava poder analisar a atitude política da Candidatura cidadã tendo em conta duas coisas, articuladamente: as suas propostas programáticas e as suas propostas instrumentais. Em relação ao que temos estado a discutir, a política de alianças, a convocatória é deslealmente omissa, mas isto é preenchido pelas várias declarações dos membros destacados: pretende-se constituir uma plataforma que “não tenha medo de governar”, que considere o PS como o irmão mais velho da mesma família e que o traga para posições de esquerda.
Não vou insistir na desmontagem de tão pueril argumentação. E custa-me, porque acredito que estou a ouvir pessoas inteligentes. Mas vejamos. Aceito que os 70000 votos do Livre, concentrados em Lisboa, dêem 2 deputados. Acrescento mais um, generosamente, do 3D, do Manifesto e da Renovação. Só faz sentido esperar alguma coisa disto na base de uma lotaria de ser o que falta para maioria e o PS não ter outra alternativa (Marinho e Pinto, acordos pontuais, etc.).
As posições da convocatória da Convenção para uma candidatura cidadã são quase consensuais, descontando, como vimos, a sua viabilidade em termos de condições políticas e de poder. Quase que se pode ler isto na convocatória.
“Não basta mudar o governo para haver a mudança necessária. As próximas eleições têm de corresponder à vitória de um programa de defesa do Estado Social e do Estado de Direito e de aprofundamento da democracia em Portugal e na Europa. Sabemos em que país queremos viver. Num país que proteja o trabalho com direitos e valorize o conhecimento. Que ajude a economia a ser mais inovadora e mais solidária. Que proteja o ambiente e o território. Que se orgulhe do Estado Social e melhore a sua Escola Pública, o seu Serviço Nacional de Saúde e a sua Segurança Social. Que combata a precariedade, redistribua o rendimento e erradique a pobreza infantil. Onde a igualdade seja o eixo central de um novo contrato social e a alavanca para um novo modelo de desenvolvimento.”
Muito bem, estamos todos de acordo. Mas não basta mudar o governo para que governo? O PS só não basta? Vai ser preciso o PS mais os seus novos amigos? Parece um exercício impossível, ou à gato de Schrödinger, de namorar o PS mas manter a virgindade.
No fim do texto, chegamos ao que parece a chave. Não se trata de programa, de firmeza política, de compromissos de alianças, mas do novo método, pós-moderno, de preparar uma candidatura, num processo às avessas: “elaboração de um programa auscultando os cidadãos, num processo de debate e deliberação público, transparente e informado; uma convocatória a uma candidatura cidadã às próximas eleições legislativas, através de um processo de construção de listas aberto, em eleições primárias.” 
Sempre a forma sempre antes do conteúdo!
NOTA 1 – Isto das primárias, para mais se abertas, é uma burla, coisa de tempos de midiatização da política. Resulta sempre na candidatura privilegiada das figuras conhecidas, independentemente das suas ideias e propostas. Veja-se o destaque de Rui Tavares na lista do Livre às europeias. Para 2015, aposto que, à cabeça, vêm Tavares, Daniel Oliveira e Ana Drago. E que Cipriano Justo, mais ingénuo, fica para trás. Já não tenho idade para estas brincadeiras e a memória dos meus tempos de luta e de tantos camaradas não é compatível com oportunismos.
NOTA 2 – Dedico este texto ao António Martins Coelho, pela seriedade e rigor intelectual como que comentou o meu texto anterior no Facebook, apesar de eu não concordar.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A candidatura cidadã

Em dois dias, 1700 pessoas subscreveram a iniciativa Livre/Manifesto/3D/Renovação Comunista. Pode-lhes ser animador, mas muito pouco pensando só nos 71000 votos do Livre nas últimas europeias.
Por mim, penso que a grande maioria das pessoas está presa pelos estereotipos políticos e não percebe os modismos. Muito menos as piruetas.
A convocatória da convenção para uma candidatura cidadã é um texto redondo e ambíguo. É mais um exemplo do movimento browniano da nossa política actual, de formiguinhas desnorteadas. É mais um exemplo da manifesta falta de quadros poliicos que temos, com profunda formação teórica e com experiência da prática política, quando os que temos já estão na terceira idade (mas isto dará uma próxima entrada). Também é um texto pobre, de gato escondido de rabo de fora, a desprezar a inteligência das pessoas. Deve ser coisa de desconhecimento, de quem pensa que a maioria da “gente” consegue ao menos ler a gramática arrevesada da convocatória.
A convocatória nunca refere o PS, mas sabe-se bem, pelas múltiplas declarações dos seus promotores, que essa candidatura só lhes faz sentido se para entendimento com o PS e com a intenção de trazer o PS para a esquerda (estão a gozar comigo?). Assim.não se pode desligar disto o que diz a convocatória.
Diz a convocatória: “As próximas eleições têm de corresponder à vitória de um programa de defesa do Estado Social e do Estado de Direito e de aprofundamento da democracia em Portugal e na Europa. [blá-blá] (…) Queremos um governo progressista que recuse a austeridade como forma de sair da crise e a passividade como forma de estar na Europa. Que construa um poder democrático que governe para o povo e não seja refém de interesses privados.”
Como escrevi na entrada anterior, “vamos crer, generosamente, que toda a esquerda (à esquerda do PSD) se entende miraculosamente sobre a necessidade e propostas práticas para uma política de emprego, de reposição das perdas salariais e d reformas, de ressustentação do estado de bem-estar, de investimento, de aumento da procura interna, de substituição de importações. A pergunta inevitável (que a direita faz, atrapalhando o PS) é “onde se vai buscar o dinheiro?”. A resposta passa obrigatoriamente pelo serviço da dívida, logo pela reestruturação, pelo tratado orçamental, pelo controlo da banca, eventualmente – pelo que isso não pode ser tabu – pela saída do euro.”
O outro lado da convocatória é cosmético, é um modismo sobre a pós-democracia, um desvario de jovens políticos intelectuais pequeno-burgueses. É a chamada revolução pós-moderna, cibernética, pós-classista, da democracia. É experimentalista, como se fôssemos todos ratos de laboratório. É elitista e tonta, porque pressupõe que todos os cidadãos – e o cidadão é a célula básica da democracia desde a Grécia – tem computador, sabe usar os programas e domina as redes sociais.
Propõem um programa cujo esboço é preparado pela elite (quem?), é sujeito a emendas e propostas na net, que são finalmente discutidas e incorporadas na versão final pela tal elite. Curioso! Fora a net, era exactamente o processo de elaboração das teses para os congressos do PCP!…
Também não podiam deixar de vir as primárias abertas. Não sei quem as inventou, mas são a maior aldrabice da moderna experimentação política. Alguém tinha dúvidas de que, por exemplo, Rui Tavares ia ser, destacadamente, o primeiro candidato do Livre, em primárias abertas?
NOTA – Claro que sei que não devo fazer favores ao inimigo comum atacando os que estão do meu lado da barricada. No entanto, não vejo a acção política na sua dimensão diária, muitas vezes mesquinha, e considero que esta pode ser inimiga da política revolucionária, consequente, transformadora, imbuída de humanismo ético, que ainda hoje me move. Assim, combaterei sempre os oportunistas tanto quanto combato os principais adversários. São farinha do mesmo saco. Tenho pena é dos que são enganados. farei sempre o que puder para os ajudar. Não tomem isto como paternalismo.

Olhar diferente para o mesmo alvo

O artigo que José Vítor Malheiros (JVM) escreve hoje no Público, “Pela convergência de uma esquerda plural”, é, como sempre, articulado e intelectualmente honesto. As minhas discordâncias são, principalmente, por a minha perspectiva geral ser diferente. Os eixos de visão são dois: o do sistema partidário e da política no plano convencional, com rearranjos do sistema; o de uma superação radical desse sistema, esgotado, que eu perfilho e que, como já escrevi aqui em muitas entradas, significa a diferença entre criar um “novo partido” e um “partido novo”. Fica isto para uma entrada a seguir.
Isto está bem expresso no que se passa em Espanha com o Podemos. Numa entrevista que merece atenção, diz Pablo Iglesias que o essencial para a esquerda é atingir as pessoas e que isto ultrapassa a simples constituição de frentes, que se limitam a reuniões convencionais de organizações de esquerda.
Eu próprio, que não sou burro e só uso como definição para isso a incapacidade de reflectir e avançar nas minhas ideias, defendi até há pouco tempo – e até me mexi para isso na net – uma táctica centrada na conjugação de forças partidárias e sociais, sem perda de coesão e consequência.
O pequeno manifesto dessa página recolheu, modestamente, 125 apoios. Não é isto que me faz desistir. Como combinado com os apoiantes, vai ser enviado aos partidos de esquerda à esquerda do PS e a movimentos sociais.
No entanto, reflectindo muito, atormentadamente em fim de vida útil, ou vencido da vida, não me parece que essa seja a via para o êxito. É preciso estar sempre a aquecer a caldeira das ideias novas. Para quem viu um filme que aí passa, vai ser preciso um buraco de minhoca a abrir um caminho para nova dimensão espaço-tempo da políica.
JVM começa por discutir a fragmentação da esquerda (ou à esquerda), com o que estou inteiramente de acordo. Nada tenho contra o aparecimento de novas formações, que podem enriquecer o debate, desde que, pelas regras do sistema, não enfraqueçam o poder eleitoral do conjunto.
Também vejo com simpatia a visão generosa do desejo de convergência de toda esta diversidade de movimentos e grupos de esquerda. Sou é mais cínico e penso sempre no namoro mais ou menos encapotado ao PS, afinal a atração do poder, nem que seja de uma pequena sinecura à mesa do orçamento de Estado.
Escreve JVM que “A convergência, o compromisso, a criação de uma plataforma comum ou de uma frente comum são acções que não exigem identidade entre as organizações mas apenas a partilha de alguns princípios essenciais. O entendimento é possível e necessário entre o que é diferente, com a manutenção de identidades diferentes entre organizações que cooperam, desde que possuam um entendimento estratégico e táctico compatível.” (itálico meu)
Este é o nó górdio de toda a discussão emaranhada que tem havido sobre a unidade de “esquerda”. Vamos crer, generosamente, que toda a esquerda (à esquerda do PSD) se entende miraculosamente sobre a necessidade e propostas práticas para uma política de emprego, de reposição das perdas salariais e d reformas, de ressustentação do estado de bem-estar, de investimento, de aumento da procura interna, de substituição de importações. A pergunta inevitável (que a direita faz, atrapalhando o PS) é “onde se vai buscar o dinheiro?”. A resposta passa obrigatoriamente pelo serviço da dívida, logo pela reestruturação, pelo tratado orçamental, pelo controlo da banca, eventualmente – pelo que isso não pode ser tabu – pela saída do euro.
Este movimento que apareceu agora, mas que se adivinhava, aponta claramente para um entendimento governativo com o PS (e em relação de forças muito desfavorável, quase de enfeite). Subscreveste-o. Muito amigavelmente, e como diria o Mário de Carvalho, “Era Bom que Trocássemos Umas Ideias Sobre o Assunto”.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O muro de Berlim

A comunicação social celebrou estridentemente a derrota do campo soviético na guerra fria, iniciada, simbolicamente, com a queda do muro de Berlim. Começando por declarar interesses, não sou simpatizante da forma burocratizada de socialismo que se vivia, negando o humanismo marxista que continua a guiar-me. Também que, apesar disso, me desgosta ainda mais o mundo unipolar que os EUA, a NATO e o capitalismo neoliberal conseguiram impor. Que, hoje, alguma resistência contra o imperialismo seja protagonizada por políticos, como Putin, distantes dos valores que perfilho (mas é a política!).
Nestes dias, tem sido difundida uma posição oficial do PCP, publicada no Avante. Creio que, historicamente, e principalmente em relação à vitória “ocidental” na guerra fria, está correcta. No entanto, principalmente pelo estilo, dá azo a muitas críticas. A linguagem é velha e saudosista e recorre a alguns chavões que, mesmo que eventualmente correctos, não pegam em relação a tanta gente matraqueada em sentido oposto. O PCP continua fechado numa linguagem de “langue de bois”.
Veja-se só um exemplo, sempre antes repetido à exaustão: o muro foi erguido para defender Berlim/RDA das provocações e acções de espionagem por parte dos aliados ocidentais. Claro que a resposta de contrapropaganda foi óbvia e conquistou as pessoas: o muro foi erguido para impedir os milhares de alemães de leste "amantes da liberdade" de fugirem para o ocidente (como se não houvesse milhares de quilómetros de fronteira menos defendida, fora de Berlim).
Para mim, tenho como mais provável que o muro foi só uma jogada menor, de disposição de peças, num jogo de xadrez de que Berlim era o tabuleiro (até para conversações secretas e troca de espiões).
Outra passagem notável do artigo do Avante afirma que “manifestações, nomeadamente em Leipzig, que na sua essência reclamavam o aperfeiçoamento do socialismo e não a sua destruição, ganhassem a dinâmica contra-revolucionária que conduziu à precipitação dos acontecimentos e à anexação forçada da RDA pelo governo de Helmut Kohl.” Para mim, é talvez a mais discutível das afirmações deste texto do PCP. Nada a sustenta. Aceitemos, mas com muitas dúvidas minhas, que os levantamentos populares (mas com infiltração CIA/fascismo local) da RDA em 1953, da Hungria em 1956 e da Polónia  de 1981 (o da Checoslováquia de 68 é radicalmente diferente, impulsionado pelo partido) defendem o aperfeiçoamento do socialismo tal como estava estabelecido segundo o modelo soviético.
Em 1989 nada indica um desejo de aperfeiçoamento, mas sim de rotura. Quem andou por esses países, quem encontrava por cá muitos dos seus cidadãos, sentia uma descrença profunda e, pior, o domínio ideológico do adversário em relação aos valores de vida e ao formato da democracia, para além do que agora é tão sentido entre nós, o domínio e o privilégio de uma burocracia dominadora do estado (se fosse militante do Podemos escreveria “a casta”).
É verdade que Cunhal, num congresso do PCP, fez uma análise brilhante da crise final do sistema soviético (mas sem aprofundar as suas raízes no estalinismo). Mas, depois disso, o PCP voltou a embrulhar-se ideologicamente, a ponto de tolerar expressões de neoestalinismo.
O PCP diz também que “não esquece que o povo português encontrou sempre na RDA e no Partido Socialista Unificado da Alemanha (PSUA) solidariedade para com a sua luta contra o fascismo e para com a Revolução de Abril”. Quanto a isto, estou plenamente de acordo. A gratidão ainda é parte do carácter.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A reforma eleitoral é a panaceia?

Dia sim dia não, volta a discussão sobre as alterações democratizantes do sistema eleitoral, ou no que respeita à generalização, eventualmente contra a vontade dos partidos, de directas, primárias ou aparentadas; ou no que respeita ao voto preferencial, a pretexto da proximidade entre eleitores e eleitos e do combate ao domínio aparelhístico do partido sobre os candidatos e eleitos. Fico hoje pelo segundo problema.
A minha posição é pragmática. Dou de barato que os defensores dessas teses apresentam argumentos consistentes, mas o problema está em saber se a sua consistência vence debilidades evidentes ou muito prováveis. De fundo, e sem pragmatismo, defendo sempre a proporcionalidade, aliás só vigente nos países anglo-saxónicos. Qualquer entorse à proporcionalidade é um atentado grave à liberdade de escolha dos cidadãos, confinando os eleitores a um sistema bipartidário. Pior ainda, muitas vezes, ele tende para unipartidário e “consensual” quando um dos polos se rende a ideologias dominantes, como foi no fim do confronto entre liberais e conservadores ingleses, ou entre democratas e republicanos americanos na luta pela integração (os democratas sulistas eram mais racistas do que os republicanos nortenhos).
A tão apregoada proximidade é coisa de sistemas uninominais maioritários, “quem chega primeiro apanha tudo”. E tem muito de demagógico, isso de o gabinete de o representante em Washington estar sempre aberto aos eleitores ou de o deputado rural inglês ir ouvir os eleitores ao fim de semana.
Nada impede isto no nosso sistema, nos círculos já pequenos. Quantas vezes viajei de avião com um querido amigo desaparecido, José Medeiros Ferreira, que ia semanalmente aos Açores. Mas também ele me dizia que, ao fim do dia, lhe apareciam três ou quatro pessoas a colocarem-lhe problemas.
Pior ainda é o caso de círculos maiores. Por exemplo, nas listas de Lisboa e Porto, figuram principalmente personalidades notáveis dos partidos, em número considerável. A sua competência é provavelmente equivalente. Tenho o palpite de que uma escolha preferencial do eleitoral seria subordinada principalmente a factores de imagem e mediáticos. Ou seria por verdadeiras razões políticas, de afirmação própria, de rebeldia contra o aparelhismo?
E, na tecnicidade actual da intervenção parlamentar, com assuntos diversos a necessitarem de tratamento por especialistas, é aceitável que um mirífico e não provado princípio da proximidade eleitor-eleito prejudique a coerência final de um grupo parlamentar entretanto sujeito a remanejamentos pelos eleitores? E, mais importante, qual é a evidência mínima de que este problema seja algum dos factores importantes da degradação da democracia parlamentar, comparado, por exemplo, com os atropelos à ética, a corrupção, a promiscuidade e a porta giratória?
Finalmente, uma nota prática. Admitamos que esse sistema se aplica a círculos de dimensão mais reduzida, por exemplo de 12 deputados, e que concorrem 10 listas. O eleitor vai ter de assinalar o partido em que vota e, nesse, uns tantos eleitores preferidos (mesmo que seja só um). para salvaguarda do segredo de voto, tem de levar para a cabina todos os boletins10 boletins partidários ou um nominal com 120 nomes. Admitamos que ele não se perca nesse confusão, mesmo que seja uma velhota semianalfabeta. Regressa à mesa com um monte de papéis. Como garantir a destruição dos sobrantes?. Quantas mesas de voto para dar vazão a toto este tempo individual de votação? Já viram um boletim de voto italiano? Parece um lençol.
Como disse, prós e contras. Há vantagens essenciais que sobrelevam esses problemas? Muito bem. Senão, é tolice,
Claro que tudo se resolve com a ciberdemocracia, dizem, como nas novidades políticas partirárias. Mas esta gente tão podemos, tão democratas, tão novas comunicações em rede de cidadãos, esquece-se que os seus recursos e capacidades de pequeno-burgueses intelectuais são desconhecidas para milhares e milhares de cidadãos tão dignos como eles.
(Imagem: Condorcet, pioneiro da teoria do voto)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

As minhas desilusões com a universidade

Só recentemente é que voltei a escrever sobre a educação superior. Afinal, foi área que me deu grande reputação, por reflexão sobre experiência bem vivida, mas que abafei por não querer entrar em incompatibilidade com o meu trabalho na Lusófona, uma tentativa inglória de fazer, na prática, o que defendia nos escritos.
Agora, que me criaram habilidosamente uma situação em que não foram eles a despedir-me e se basearam na minha inevitável resposta de rescisão do contrato (“uma proposta que eu não podia deixar de recusar”), fico livre para voltar a este domínio, que tanto me interessa.
Vou começar por tratar de dois assuntos em que me desiludi, honestamente convencido, ao princípio, que seriam um grande progresso: o novo regime jurídico das instituições de ensino superior (RJIES) e o processo de Bolonha. Hoje fico pelo RJIES.
A tradição portuguesa de sistema de poderes universitários era excessivamente corporativa e colegial, autárquica, afogada em procedimentos complicados de interação de diversos órgãos académico, muitas vezes envolvendo procedimentos administrativos que não estavam na sua vocação. Pecavam fortemente por um espírito corporativo resiliente a influências dos “stakeholders” (os corpos sociais interessados na universidade).
O RJIES criou um novo órgão, o conselho geral, constituído por membros internos e também por personalidades externas, tanto a nível da universidade como dos seus estabelecimentos. Conheço bem essa solução porque já tinha sido adoptada no Instituto de Higiene e Medicina Tropical, de que fui director.
Que papel desempenham os externos? Quase nulo, porque frequentemente seguem orientações mais ou menos subtis do reitor ou ouvem as opiniões do director de faculdade ou instituto.
Que força têm os membros dos conselhos gerais eleitos em representação de professores e investigadores? Quase nula, quando estão dependentes do poder arbitrário dos directores sobre as suas carreiras, nomeadamente a abertura de concursos de promoção.
A cada nível, os poderes dos reitores e dos diretores de faculdade ou institutos são abusivos, na prática incontroláveis, incompatíveis com o necessário diálogo entre órgãos administrativos e académicos que está na base da cultura universitária. E quando, por mecanismos conhecidos de cumplicidades, relações políticas e de irmandades, isto põe em lugares decisivos gente desonesta, autoritária, quase psicopatas, a situação é explosiva.

Universidades privadas

Sempre que se fala nas universidades privadas, surgem dois argumentos: o da liberdade de aprender e ensinar, e o da alta qualidade da educação superior privada nos EUA. O primeiro argumento é falacioso, se defendido em abstracto. Também há liberdade de criar bancos, mas isso não legitima as falcatruas do BPN e do BES.
Igualmente desonesto é o segundo argumento, que se refere a um caso único. Na Europa, há uma minoria de universidades privadas (das quais um bom número são concordatárias ou confessionais), nenhuma das quais aparecendo em destaque nos “rankings”. Na América latina, destacam-se pelo seu número, num sistema em que a expansão e diversificação do sistema superior público foram tardias e não correspondendo a uma grande procura.
Num sistema desses, muito desregulado, as instituições privadas são de níveis e natureza muito diversos, mas sendo consensual que muito atrás, em qualidade, das universidades públicas e dirigidas segundo uma lógica predominantemente empresarial, em desfavor da qualidade académica. O melhor exemplo é o do Brasil, em que principalmente as federais, mas também as estatais e até algumas municipais, têm dado saltos de qualidade consideráveis.O cerne da qualidade universitária moderna, em todos os modelos estabelecidos (newmaniano, humboldtiano, mesmo o napoleónico) é o da simbiose entre ensino e investigação. É a grande carência do ensino privado
É certo que há, nos EUA, um modelo bem sucedido, mas muito limitado, o das universidades de ensino (“teaching universities”), que prescindem da investigação para concentrarem todos os recursos na qualidade de ensino. Simplesmente, reconhecendo que um ensino de qualidade só pode ser ministrado por cientistas actualizados, com mentalidade crítica, estas universidades estabelecem acordos com institutos de investigação para recrutamento dos seus docentes.
Da mesma forma, as privadas aplicaram mecanicamente e só nos aspectos formais o que, embora com muitas limitações, foi o processo recente mais marcante de reforma universitária, o de Bolonha. E de nada valem as parangonas sobre a excelência (deixou de haver medianos e medíocres neste país) e a inovação e qualidade dos projectos educativos, em geral (mas também nas públicas) uma cópia das atribuições estipuladas na lei. Conhecem-se alguma verdadeira declaração de missão (“mission statement”)? 
Sujeitas a interesses exclusivamente empresariais, incapazes de obterem financiamento para projectos de qualidade geradores de receitas, sem cultura de angariação de fundos (“fund raising”), apertadas pelos efeitos da crise, com considerável diminuição da procura e das receitas de propinas, as privadas incorrem em três falhas essenciais:
1. Não dispõem de unidades de investigação com qualidade. Custa-me a perceber alguma complacência do sistema nacional de avaliação, agora agravada pela alteração legislativa do ministro Crato, o exigente, que aceita os indicadores de investigação dos docentes fora da universidade, não só os intramuros. Tudo isto é particularmente grave a nível de mestrado e muito mais de doutoramento. Se os orientadores trabalham fora, que investigação de tese, e onde, fazem os doutorandos? Os pais não percebem o logro, não têm informação fidedigna nem a noção da importância disto e lá continuam a inscrever os filhos (até a universidade pública conseguir absorver todos, o que não vem longe).
2. Não há carreiras docentes, nem a lei o impõe. Não há provas de progressão, os docentes são admitidos e promovidos a bel-prazer das administrações (não dos órgãos académicos), muitas vezes por razões políticas, de fraternidades ou de influência financeira. Muitos são convidados, sem qualificações académicas. A Autónoma lá tinha lugar reservado para um recente político em queda. Entre tarefas que me foram cometidas, figurou a elaboração de um projecto de estatuto de carreira. Passou pelos órgãos académicos, com grande apoio, mas ficou-se pela administração.
3. A percentagem de docentes em tempo inteiro é mínima. Não se confunda com os que são declarados como tal só para cumprir rácios. A grande maioria entra e sai para dar aulas, não se interessa pelos alunos, não os conhece, não os acompanha, não faz sessões tutoriais. Entretanto, numa situação geral de precariedade, os docentes (com a excepção de uma ou duas universidades) ganham à hora, por tabelas vergonhosas e estão sujeitos a rescisões de contrato a qualquer hora. Os vencimentos dos proprietários nunca são divulgados, mesmo quando os dos docentes e funcionários sofrem cortes.
Voltemos à questão da propriedade, que julgo estar na base de muito disto. A propriedade das instituições de educação superior, que não têm personalidade jurídica própria, pode competir a empresas, fundações e cooperativas. Em todos os casos, tanto quanto julgo saber, há domínio e apropriação de lucros por um número limitado de pessoas, muitas vezes sem cultura académica, sem qualificações ou tendo-as obtido na sua própria universidade, imagina-se com que rigor e isenção de avaliação.
É aqui que se distingue radicalmente o sistema americano. É certo que há muitas universidades privadas, no sentido de instituições com fins lucrativos. Mas aquelas que prestigiam o sistema “privado” estão longe de ser privadas, com lógica de lucro.
As velhas universidades americanas – Harvard, Princeton, Yale, Cornell, etc. – não são propriamente privadas, antes comunitárias. Foram criadas ainda no séc. XVII pelas primeiras comunidades de colonos, com grande autonomia. Em Harvard, um “President” era contratado pelo conselho da comunidade para dirigir a corporação (o governo da universidade), que se mantinha por renovação da sua composição, por meio de cooptação. O conselho de Massachusetts nomeava também um órgão de supervisão, os “overseers”.
Com adaptações, ainda hoje é assim. Passou a haver foi uma outra divisão de poderes, com as atribuições académicas entregues fundamentalmente aos directores ("head") de escola (mestrado e doutoramento) e do colégio (licenciaturas) e o presidente e a corporação dedicados principalmente às relações institucionais e à angariação de fundos. Mas, crucialmente, todas as receitas são reinvestidas e não há distribuição de lucros.
Isto nada tem a ver com a nossa situação. As universidades privadas (e algumas públicas, bem como muitos politécnicos) são fábricas de canudos. A lógica empresarial sobrepõe-se a tudo e os reitores, que deviam ser os defensores da cultura e do rigor académico) são muitas vezes figuras menores, condicionados por falta de alternativas de carreira e ao serviço “de quem manda”.
Julgo que não devia ser permitida a propriedade de universidades por empresas e, no caso de fundações e cooperativas, só com rigoroso escrutínio. Recomendo a leitura do que é um caso diferente e interessante de uma universidade cooperativa aberta, a Universidade de Mondragon, no País Basco, em que a cooperativa é composta por todos os membros da universidade, com igualdade de direitos.
Declaração de interesses – Nestes últimos anos pertenci a uma universidade privada e cheguei a ser pró-reitor. Em todos os cargos que tive sempre pugnei para que estes princípios fossem implementados, e sempre sem sucesso. Tomaram finalmente uma decisão que sabiam ser inaceitável para a minha dignidade. Não tenho mais obrigações de reserva para com a universidade, estou livre para escrever o que penso e julgo ser de interesse público.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

O país entrou “primariamente” em desvario

Acabou-se a saga das primárias do PS que, durante semanas, transformou a vida política num combate fratricida, sem substância, reduzido à política-espectáculo que cada vez mais envolve em jogo medíocre, políticos, comentadores e jornalistas. E que pretendeu transformar as primárias numa indiscutível inovação, um contributo para uma nova democracia.
Não quis falar muito sobre isso. Não me interessava por aí além nem era assunto que dissesse respeito à “minha” esquerda. No entanto, não o considerei irrelevante. Não sei se foram publicados os números de simpatizantes ou se há alguma ideia do seu posicionamento político. Também importante seria saber qual a percentagem de simpatizantes votantes em Costa. Isto porque casos desses que conheço (aceito que sem valor estatístico) indicam uma atitude menos partidária e mais táctica, querendo essas pessoas reforçar, por via de Costa, as possibilidades de vitória do PS nas próximas legislativas. Outros também afirmam terem usado estas primárias para facilitar, novamente por via de Costa, a unidade de esquerda, obviamente a mirífica unidade defendida pelos “convergencistas”. Pelo menos por uma vez puderam satisfazer o seu eterno desejo de votar num PS limpo e verdadeiramente socialista…
Não é que as pessoas tenham esquecido as cumplicidades do PS com a direita. E também os votantes em Costa sabem que ele não se comprometeu com nada, que não disse uma palavra que garanta uma governação radicalmente diferente. A questão está nisto, “radicalmente”. As pessoas estão descrentes que uma vaga esperança, nada de radical, já é alguma coisa. E também tão desesperadas que não podem esperar pela demora de uma verdadeira mudança de esquerda, neste momento limitada por uma votação ainda reduzida a cerca de 20%. Claro que não contam só os votos, numa perspectiva dinâmica da democracia.
Como bem escreveu Joana Lopes no seu blogue, “há só uma coisa que me entristece: ver tantos amigos cujos velhos ideais parecem estar reduzidos ao entusiasmo pelo mal menor. Não deve ser gente feliz.”.
Dito isto, há aspectos das primárias que merecem discussão. Note-se que não discuto a eleição do líder em directas, como fazem o PS, o PSD e o CDS, ou em eleição em congresso, como faziam antes esses partidos e julgo que ainda faz o BE, ou a eleição do secretário geral pelo comité central eleito em congresso, como faz o PCP. Ninguém tem questionado o grau de democraticidade destes processos. O que se discute agora é a inovação das primárias abertas, em que podem ser eleitores não militantes do partido. Teoricamente, até os candidatos podem não ser militantes.
Prós e contras?
Os apologistas das primárias e que as apregoam como grande inovação democrática, defendem que elas aproximam os eleitores e os eleitos; que quebram as relações de poder dos directórios partidários em relação aos candidatos; que já são prática corrente em outros países. Os opositores Lembram que as primárias pressupõem condições diferentes das nossas, nomeadamente círculos uninominais; que favorecem a personalização e o debate programático e de ideias; que dão azo a coisas de bastidores, nomeadamente no que toca a financiamento.
1. As primárias aproximam os eleitos dos eleitores? Não vejo qualquer prova. Só vejo um pouco isto nos sistemas anglo-saxónicos, mas por outras razões mais importantes: os deputados são eleitos em círculos uninominais (e eu, pessoalmente, não quero qualquer redução da proporcionalidade) e dispõem de um apoio técnico importante (gabinete, assessores, secretariado, orçamento). Por outro lado, estou a lembrar-me de um saudoso amigo, José Medeiros Ferreira que, no nosso sistema, enquanto deputado, passava um dia por semana nos Açores a receber quem o quisesse procurar.
2. As primárias favorecem a personalização e o populismo? Sem dúvida, como vimos nestas do PS. Personalização levada ao máximo, à luta de galos, ao escamoteamento de ideias programáticas, à demagogia populista de propostas desonestas. No entanto, isso é alguma coisa de novo? Nos partidos do centrão, há quanto tempo a política não se faz por programas, antes por técnica de agências de imagem e comunicação?
Há quantos anos que a política é um espectáculo? Não me aquece nem arrefece que as primárias venham ainda mais contribuir para isto. É há uma via de sentido obrigatório, na degradação da política, da democracia e do valor dos ideais de esquerda (no sentido lato em que muitos ainda acreditam).
E isto passou-se só agora no PS? Não é verdade que ninguém imaginasse que nas primárias directas do muito neo-democrático Livre, Rui Tavares não ficasse destacadamente em primeiro lugar, sem qualquer moção ou posição política, com legitimidade reforçada? E não será certamente o mesmo com o novo partido de Marinho (e) Pinto?
3. As primárias fora do sistema americano são incongruentes? Estou convencido de que sim. Ao contrário da realidade e tradição europeia, os partidos americanos não têm militantes com obrigações e direitos e a posição política do partido é pragmática, definida pela interacção entre as posições dos candidatos e o apoio dos seus eleitores. Não há um programa democrático ou republicano, mas sim aquilo que, em cada momento, o grupo de senadores ou representantes defende, atendendo aos seus interesses eleitorais e sentido de voto dos eleitores. Veja-se, notoriamente, que não há um líder de cada partido.
No entanto, há grande identificação entre eleitores e partido, nas primárias. Os candidatos, apresentados livremente (mas com necessidade de enormes financiamento!), são obrigatoriamente de um dos partidos e os eleitores, excepto em alguns estados que permitem o voto livre, só podem votar num dos partidos principais.
Note-se também, do que disse, que este modelo só funciona bem num sistema bipartidário. É o que queremos, com prática extinção dos partidos minoritários?
4. Ao que as primárias reduzem os militantes? Há pessoas que pagam quotas, que participam em reuniões, que trabalham nas campanhas. Nos momentos decisivos, são equiparados em direito de voto a inscritos de última hora, muitos por razões que ultrapassam o âmbito estritamente partidário, porque querem influir na escolha partidária em termos de efeitos na política geral. É correcto? Não me pronuncio, cabe a esses militantes.
NOTA 1 – Desculpem uma brejeirice. Eu detesto ver expressões de sobrancelhas em acento circunflexo. Dá-me a impressão de pessoas a fazer um grande esforço para controlar os esfíncteres. Vou deixar de ver assim o líder do PS.
NOTA 2 – Rui Tavares foi sempre um estrénuo defensor das primárias e quase fez disso bandeira nas entrevistas em que apresentou o Livre. Publica hoje no Público uma crónica serena sobre este processo. E ninguém lhe pode levar a mal que puxe pelos galres, lembrando que o primeiro caso foi o do Livre, não o do PS.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Populismo e degenerescência partidária

Tenho alguma dificuldade em entender-me no largo uso que se está a fazer do termo populismo. Comecei por o conhecer principalmente em relação ao peronismo, significando um movimento caudilhismo, com alguma ultrapassagem do sistema institucional e com ligação próxima do líder e do povo com base em propostas de cativação dos “descamisados”. Por tudo isto, algum proto-fascismo, como as boas relações de Peron com o nazi-fascismo.
O termo entra na literatura teórica socialista e comunista como referindo-se a movimentos e políticas progresistas, favorecendo as camadas populares, mas sem terem como objectivo final o derrube do capitalismo. Os movimentos populismos, como hoje os regimes progressistas da América latina, reivindicam uma legitimidade “de facto”, de representação das classes populares, sem as limitações de uma democracia formal dominada pela minoria económica da classe política oligárquica.
Reaparece-nos agora o termo na Europa, em duas acepções: a rejeição da UE com fundamentos nacionalistas, xenófobos e anti-imigração; e políticas internas com base na crítica generalizada aos sistemas político-partidários e aos que deles beneficiam.
Para combatermos adequadamente essas perversões políticas, é bom que nos entendamos e distingamos coisas diferentes.
Não vou discutir o termo populista em termos europeus, que me parece uma mistificação misturando no mesmo saco Le Pen, Farage, os eurocríticos de esquerda, tais como os partidos representados no grupo europarlamentar Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde. Só não seriam populistas os respeitadores da cartilha ideológica, económica e imperialista da UE.
A marca mais significativa do populismo europeu (fora o “europopulismo”) é o desvio do discurso político de um discurso de classe, com forte centragem nas questões económicas e sociais, para um novo discurso não classista, dirigido a um “povo” amorfo e indefinido e centrado na decadência da democracia, na corrupção generalizada de todos os partidos, considerados como que de uma nova classe social (?), a “casta”. Também, muito caracteristicamente, grande dependência de um líder carismático e autoritário. Os dois casos mais manifestos são o 5 Estrelas, de Beppe Grillo, em Itália, e o Podemos, de Pablo Iglesias, na Espanha.
Esta concepção populista tem uma extensão mais primária, justicialista e trauliteira, à Marinho (e) Pinto, e uma de “nova democracia”, elaborada e pretendo fundamentação de filosofia política moderna e cosmopolita, à Rui Tavares (e, vamos a ver, Ana Drago e Daniel Oliveira). São as primárias directas que servem para eleger o líder que toda a gente já sabia que ia ser, a ciberdemocracia, as “novidades” dos amigos estrangeiros que já conheço há anos, agora apresentadas como inovações, etc. Estes casos são os de populismo à europeia. Não concordo com que, como se tem escrito, a actuação de Seguro e Costa nesta sua campanha seja populista. A meu ver, é um exemplo, como muitos antes, de há muito, de uma degradação da vida democrática institucional, a que tenho chamado a “melancolia da democracia”.
O que está em causa é a captação da cidadania, da democracia participativa, pela democracia formal. É o aparelhismo partidário, feito de carreirismo, de “jotismo”, de profissionalização precoce na política, com desconhecimento de outras actividades sociais e profissionais. É a desvalorização, nessas lutas aparelhísticas, do debate ideológico e da oferta programática aos eleitores. São os truques demagógicos, o desviar a conversa, o não se comprometer ou fazer promessas fáceis de esquecer..
Todo o populismo é demagógico, mas nem toda a demagogia é populista. Na prática, acho que, como ameaça ao regime e, mais especificamente, como ameaça de esvaziamento da esquerda, o populismo deve ser combatido. O aparelhismo partidocrático há-de apodrecer por si.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O 25 de Abril e as ilhas

O que escrevi sobre o independismo e a FLA açoriana lembra-me velhas memórias. Np verão de 1975, os comunistas açorianos, com destaque para o Carlos Fraião, tiveram de passar à clandestidade, numa casa do meu ex-cunhado, joia de homem e generoso, o Zé Toste Rego. Não se sabia como tirá-los de lá mas a 2ª divisão soube que eu ia de férias e que, depois de alguns anos de ausência, já não era conhecido.
Falei com o Cmt Contreiras e estabeleceu-se um contacto formal com o Major (?) Cassorino Dias e, mais amigável, com o imediato da corveta que lá estava (não me lembro do nome). Tive logo uma péssima impressão de Cassorino Dias, creio que spinolista, arrogante, até malcriado. O comandante militar, julgo que Altino de Magalhães, não conheci, mas soube dele que era um viscoso, a fazer o frete aos senhores locais e ajudando à demissão de governador do irrepreensível democrata, meu caro amigo, António Borges Coutinho Foi, em 6 de Junho, a primeiro manifestação reaccionária do verão quente. O MFA tinha a traseira desguarnecida.
Consegui a protecção do exército para a evacuação dos meus camaradas, mas sob insultos. Do jovem tenente da Armada, hoje esquecido, fiquei amigo até ao fim das férias, um drink todas as noites em casa dos meus sogros. Se ele está a ler isto, agradeço o contacto.
Mas tudo isto vem a propósito do que julgo ter sido alguma falta de cuidado do MFA com a colocação de militares nas ilhas, nomeadamente nos Açores. Era um terreno estratégico e facilmente utilizado pelos EUA e pela NATO para combater a revolução.
O meu grupo de liceu foi fortemente influenciado pelo Melo Antunes. Reuníamos sob evidente tutela dele e do António Borges Coutinho, no grupe do Gil. Mais tarde, já universitários e com ligações partidárias feitas na universidade, as discussões eram mais sérias mais vivas, mas com grande cordialidade. E a traduzirem-se na acção, nas semanas de estudos açorianos e depois na CDE de 1969, em que não participei por ter sido chamada para o Alfeite, para a Reserva Naval.
Entre 70 e 73, o Chile era conversa permanente e nela a comparação com a situação geoestratégica de Portugal, nomeadamente o seu papel de peão mas também com o seu porta-aviões atlântico. Será que o MFA cuidou bem disto?

Outra vez Jardim e a independência

O Público traz hoje uma notícia dizendo que o referendo escocês vinha despertar o independentismo ilhéu, coisa de que duvido. Conheço bem ambos os arquipélagos e não noto por lá qualquer sentimento independentista, excepto entre um pequeno grupo madeirense – fortemente ligado ao governo – que o usa instrumentalmente, para chantagem política.
O independentismo dos Açores e da Madeira foi gigante com pés de barro e sempre coisa artificial e instrumental em relação à política nacional. Nos Açores, durou até ao 25 de Novembro, como expressão local do anticomunismo do verão quente e do receio americano de perderem a base das Lajes. Na Madeira, existe apenas no discurso de Jardim e dos seus rapazes, quando querem chantagear o governo central.
Um dos argumentos mais usados é de natureza orçamental e fiscal, mas não tem qualquer fundamento. As regiões autónomas retêm todos os impostos devidos pelos seus residentes e beneficiam de IVA com taxas mais baixas. Também recebem avultadas transferências do orçamento de Estado e não contribuem pra as despesas gerais da soberania (despesas dos órgãos de estado, forças armadas, diplomacia). Eu entendo que isto é correcto, como forma de compensação pelos acréscimos de custo de vida devidos às telecomunicações e aos transportes, mas nada mais oposto do que Jardim e outros virem falar de colonialismo.
Sou favorável ao direito à autodeterminação das nações, mas nada na filosofia ou na ciência política identifica os Açores ou a Madeira como nações. Falamos a mesma língua, partilhamos a história, inclusive os seus “mitos”, temos grandes raízes identitárias e de cultura popular e tradicional comum, embora com diferenças, mas não mais do que entre Minho e Alentejo. Aliás, este pequeno país está marcado por regionalismos vincados. Leia-se, por exemplo, a magnífica comparação que Aquilino faz no Guia de Portugal, entre minhotos e transmontanos.
Açorianos, temos orgulho em terem sido açorianos os dois primeiros presidentes e não nos passa pela cabeça que os Corte-Reais, Gaspar Frutuoso, Antero (este até internacionalista), Nemésio, Natália, não fossem genuinamente portugueses.
E obviamente que a batalha da Salga e o apoio ao Prior não foram uma luta anticolonial contra Portugal…
Outra coisa é defender a autonomia. Durante três séculos, vigoraram os direitos senhoriais, com um estado arcaico, sem verdadeira administração pública. Pombal, com os capitães-generais, avança um pouco, mas os Açores só se modernizam administrativamente primeiro com a extinção dos direitos senhoriais por Mouzinho e depois com o decreto da autonomia e dos distritos autónomos, de 2 de Março de 1895. Óbvio para quem comparar as leis, essa autonomia é de grau reduzidíssimo comparada com a autonomia conferida pelo 25 de Abril.
Desculpe-se uma nota pessoal, coisa que gosto muito de dizer: eu sou muito açoriano porque sou muito português e sou muito português porque sou muito açoriano.