terça-feira, 31 de maio de 2011

"Sound bites"

1. O Finantial Times, habitualmente bem informado, noticia hoje que a Grécia se defronta com uma medida muito provável. A sua “troika” UE/BCE/FMI vai assumir o poder de cobrar os impostos e de proceder às privatizações. Estaremos defendidos de tal coisa? E têm os portugueses consciência de que a cobrança de impostos é porventura o maior sinal da soberania, depois de tempos medievais em que por vezes os reis contratavam isso com privados? Impostos e emissão de moeda, embora esta com a ressalva de aceitação de moedas estrangeiras valiosas, como a nossa do tempo do ouro brasileiro, e com ressalva oposta de agora não termos moeda soberana, só um euro que não é sinal de soberania de nenhum país federal, ao contrário do dólar.
2. Julguei que a alternativa com que nos defrontamos, a determinar, a meu ver, o essencial do sentido de voto no próximo domingo, era linearmente simples. Ou a aceitação da “ajuda externa” (ainda há quem não tenha vergonha de a chamar assim) ou a opção pela reestruturação da dívida (coisa tão assustadora para o sistema que a propaganda agora é cada vez mais identificar isto com “não pagamento”, pura e simplesmente). Não via nenhuma terceira via, até hoje. Segundo Louçã, é “recuperar o país e pagar as contas”. Alguém me explica o que ele quer dizer com isto? É que não sei!...
3. Jerónimo de Sousa parece que entendeu que não se pode defender a reestruturação sem, ao mesmo tempo, propor fontes de financiamento que garantam o pagamento da parte da dívida que, de qualquer modo, fica sempre, e até a curto/médio prazo, mesmo depois da anulação da dívida odiosa, do “haircut”, da baixa da taxa de juro, da dilação dos prazos. Sugere que procuremos esse financiamento no Brasil e nas economias ricas emergentes. Mas, espantosamente, também nos EUA. Concordo inteiramente, mas fico abismado. O PCP a defender o recurso a negócios com o diabo americano? O mundo é mesmo composto de mudança...

4. Como acontece com alguma frequência, uma bactéria normalmente inofensiva, nossa companheira a viver confortavelmente no nosso intestino grosso, a Escherichia coli, dá origem a uma variante patogénica, mesmo letal. Aconteceu agora na Alemanha, onde já morreram quase dezena e meia de pessoas. Origem indiscutível do bicho, para o governo alemão: pepinos importados de Espanha. Foi uma afirmação cientificamente infundada, já desmentida pelo próprio governo alemão, embora sem uma palavra de desculpa para a Espanha, muito menos a assunção de responsabilidades pelos enormes danos económicos causados. Será que isto não tem nada a ver com esta crónica política? Estarei a ser "antigermânico primário"? Ou tudo isto se integra num novo perigo europeu que vai desde o primarismo da sargenta ao populismo xenófobo do eleitor que não quer gastar um cêntimo a ajudar outros europeus (que os ajudaram em 1945 e em 1953, que lhes perdoaram o nazismo mais ou menos responsável de 90% deles, que permitiram a reunificação), passando pela mentalidade quadrada dos seus economistas oficiais? Esses alemães que hoje nos olham de lado porque são nossos credores, são exportadores competitivos, mas só porque amocharam com a chamada "desvalorização interna", a aceitação sem protesto da degradação real dos seus salários e benefícios sociais. Valha-nos, ao menos, que, ao contrário desta campanha eleitoral socrática, não nos bombardeiam com a desonestidade de se afirmarem defensores do estado social europeu, coisa já defunta e putrefacta.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Como vou votar? (1)

Primeiro dos primeiros, claro que vou votar. Portanto, a abstenção fica fora desta conversa. Voto nulo é coisa de anarca que escreve no voto “merda para os políticos” ou de velhinha com catarata que põe a cruz como aquele impagável zarolho no “Há festa na aldeia”. Voto de zarolho mental é qualquer voto na santíssima trindade. Voto de pateta senil que me parece que ainda não sou é no semilha folclórico, no advogado proletariamente rico e com iate, nos diversos beatos “humanistas”.
Contas feitas, ficam três: PCP (não vou nessa de CDU), BE e branco.
Nas últimas legislativas, votei branco. Nessas, noutras atrás e provavelmente nas próximas, está no seu pleno direito, direito que cá em casa se discute com prazer intelectual, mas é tudo e nada de pressionar, quem me é mais também vota branco. Ainda vem ao caso um caro amigo, mcr, que já anunciou o seu voto branco. É um voto com grande valor ético-político, de desgosto expresso com a melancolia da nossa democracia, mas a um nível de superioridade talvez incompreensível para a generalidade das pessoas.
Simplesmente, para mim que já o usei com esse intuito, embora sabendo que a opinião publica manipulada não iria perceber o significado da percentagem do voto branco, a situação é diferente nestas eleições. Haja o que houver de reservas minhas em relação a partidos como o PCP ou o BE, e há muitas, quero centrar-me no essencial. Estamos em pleno processo de resgate e de sujeição aos ditames externos. Há três partidos que se apresentam com a diferença nebulosa de como cada um vai gerir o programa que lhes foi imposto. O programa é o da austeridade, do desemprego, da espiral de afundamento de défice e de recessão, da punição em juros e condições pelos acertadinhos do norte europeu, da vassalagem, da vergonha nacional.
Neste momento, contra isto, com todo o respeito pelos meus amigos - e ela mais do que amigos - do voto em branco, acho que há coisa que sobreleva: dizer não às trindades. O voto em branco dilui-se, nestas eleições, o seu significado a prazo fica esbatido na tensão do que está em jogo. Quem vota em branco, como eu tenho votado, vota nestas eleições pelo resgate FEEF/BCE/FMI ou pela sua recusa (a reestruturação da dívida)? “That is the question!”.
Portanto, para mim, inevitavelmente, PCP ou BE. Mas que dilema! Fica para próxima escrita.

Padre Malagrida (ou "Autolimpeza da esquerda")

Hesitei em escrever esta entrada, de evidente crítica a uma pessoa. A pedagogia política e cívica que me sinto na obrigação de professor de exercer, a defesa dos meus valores com base no rigor e na análise objetiva e racional, não precisam de ataques a pessoas. No entanto, há um critério meu essencial que certamente reconhecem como norteador de muitas das minhas entradas neste blogue: só quem denuncia o que, na sua “família”, é inadmissível é que tem credibilidade para exigir dos leitores que o considerem honesto, isento, não demagogo ou manipulador, que o considerem “homem político” à maneira dos virtuosos romanos republicanos (perdoe-se-me esta manifestação de vaidade, mas é que eu sou um reformado sem dependências, como Cincinato).

Assim, vou dizer que não me sinto bem, na minha esquerda que amigos “realistas” me dizem ser uma patetice romântica minha de justificação de vida passada, em estar acompanhado por pessoas que podem protagonizar, simultaneamente, as situações que vou dar como exemplo. É que são pessoas de prestígio (?) que poluem a generosidade desinteressada, inocente, dos que não podem competir com a sua demagogia. Não vou dizer quem é, tão óbvia é a identificação. Fica como jogo de adivinha.

1) 27.4.2011. “Os portugueses deviam recusar-se a pagar a dívida do Estado, evocando o exemplo da Islândia. Nós não sabemos como chegámos a esta dívida porque ela foi feita nas nossas costas".

2) 27.5.2011. "É preciso renegociar a dívida, porque ela é impagável e parte dela não deve ser paga, nomeadamente a que respeita ao período entre 23 de Março, quando o PEC 4 foi chumbado, e o princípio de Abril, quando foi pedido o resgate e os juros dispararam acima dos 7%. (…) É preciso ter coragem de enfrentar os riscos políticos, mas esta é a única solução (…). A renegociação da dívida portuguesa tem de ser lançada antes que a economia se destrua. É uma questão de bom senso, basta ver o que se passa na Grécia e pensar que Portugal é o único país desenvolvido que em 2012 vai estar em recessão (…) os problemas económicos que Portugal atravessa têm de se resolver, e não é com eleições".

3) 27.5.2011, no Rossio, falando aos da “acampada”. “Isto é em Portugal neste momento um dos melhores exemplos da democracia que podíamos fazer, isto é, a democracia ao vivo. É extraordinário que, depois de tantas armadilhas e tantas desilusões que a democracia representativa nos tem causado, todos nós, e eu partilho isto convosco, somos realmente amantes da democracia real. O que está aqui pode ter outros caminhos, mas encorajo-vos a um movimento constitucional, mudar as nossas constituições, para que os cidadãos mais diretamente possam intervir na vida política”.

4) A seguir, falando para jornalistas. “Qual é a história recente de países como a Argentina, o Equador, a própria Alemanha de 1953, o Brasil? Países que fizeram desobediência financeira, que disseram nós não pagamos isto”.

Muito bem, mas também houve o momento 5, pouco anterior, o da sua co-assinatura, preto no branco, do manifesto dos “sensatos e bem comportados”, o que saiu no Expresso de 9 de Abril com o título “Um compromisso nacional”:
“Em primeiro lugar, um compromisso entre o Presidente da República, o Governo e os principais partidos [JVC: quais? Inclui-se o PCP e o BE?], para garantir a capacidade de execução de um plano de ação imediato, que permita assegurar a credibilidade externa e o regular financiamento da economia, evitando perturbações adicionais numa campanha eleitoral que deve contribuir para uma escolha serena, livre e informada; (…)
em segundo lugar, um compromisso entre os principais partidos, com o apoio do Presidente da República, no sentido de assegurar que o próximo Governo será suportado por uma maioria inequívoca, indispensável na construção do consenso mínimo para responder à crise sem a perturbação e incerteza de um processo de negociação permanente, como tem acontecido no passado recente; numa perspetiva de curto prazo, esse consenso mínimo deverá formar-se sobre o processo de consolidação orçamental e a trajetória de ajustamento para os próximos três anos prevista na última versão do Programa de Estabilidade e Crescimento (…)”
Em que ficamos? Repare-se que o manifesto do Expresso, assinado pelo guru coimbrão, alude inequivocamente ao PEC. O nosso demagogo pode ser ao mesmo tempo defensor do PEC e da reestruturação da dívida? Há limites para a incongruência.

E porque há, e porque sempre li com agrado Alices e outros, embora coisas ditas antes, por exemplo, pelo MDP de 87 - em afirmação de esquerda alternativa, que não vingou - quero crer que há coisas tristemente - mas mais aceitavelmente - justificativas de tais incongruências, coisas que a gerontologia hoje nos ensina. O mal é que pessoas destas, se já não estão bem, continuam a opinar, a influenciar, a prejudicar a esquerda com quem ainda são abusivamente identificados.

Não é este o único caso de incongruência senil (para ser benévolo). Podia ir de braço dado com Medina Carreira. Falo dos dois porque são casos de demagogia na zona crepuscular da transição para a tontice. E de problema de saúde pública mental. Citando um caro amigo meu, Portugal sempre teve padres Malagrida! Porque Savonarola era só louco. Nós é que conseguimos ter um Malagrida ao mesmo tempo louco e tonto.

Nota - A alocução aos acampados no Rossio só me impressionou inicialmente pelo balofo da arenga, pela sua indigência ideológica (veja-se só o “movimento constitucional” a sair dos “ó meu” acampados no Rossio…). Depois, passei pela praça. Como se diz no “18 de Brumário”, na história tudo se repete como drama e depois como farsa. Fui ver vídeos do acampamento de Madrid. Não estou certo do que aquilo significa, mas tem dimensão impressionante. Do Rossio fiquei com boa ideia. Meia dúzia de tendas, umas dezenas de jovens com ar etéreo-passado, rastas e chitas indianas, refastelados a fumar e a beber cerveja, uma espécie de mercado de venda de artesanato e de coisas que foram giras em Woodstock, coisa da minha juventude já bem passada. Parece que há coisa equivalente mas mais pequena (como é que ainda pode ser mais pequena?) em Coimbra, que “mandatou” o nosso sociólogo para ir a Lisboa mostrar solidariedade. Já não há sentido do ridículo?

(Editado)

sexta-feira, 27 de maio de 2011

A lição grega

A insensatez e a cegueira ideológica da União Europeia (UE), que se foi por “emprenhanço” no neoliberalismo, por mediocridade dos políticos, por incapacidade científica e mental dos seus conselheiros economistas, está “a dar o berro”. Como dizem e redizem os melhores economistas mundiais, o euro é uma construção tonta em que todos embarcamos, uma moeda única sem política orçamental e fiscal comum, com um orçamento comum ridículo, sem mecanismos de transferência para harmonização inter-estados (que exigem uma verdadeira união política, igual e solidária). E, como no caso português, muitas vezes com fixação de paridade sobrevalorizadora e lesiva da competitividade económica.
A crise mundial iniciada em 2008 foi principalmente uma crise financeira. Mal ou bem, os estados não-UE injetaram dinheiro no seu sistema financeiro, aplicaram medidas keynesianas de crescimento económico e saíram da crise, os EUA e os BRICS, com o resto do mundo a segui-los. Exceto a UE, que entrou numa crise só sua, a da dívida soberana. Espanta-me que todo o sistema instalado, cá e nos outros países europeus não discuta esta coisa elementar: porque é que a crise da dívida é só europeia?
A outra característica essencial da crise europeia é que a sua compreensão e resolução tem sido apenas reativa, não proativa. Novamente, acho que isto só se explica pela mediocridade que estamos a viver no sistema partidário, nos seus dirigentes, na primazia do marketing político, etc. Vendo bem, herança do homem mais nefasto das últimas décadas da política europeia, Tony Blair (mais os seus seguidores, portuguesmente falando Barroso e Sócrates).
O caso da Grécia é exemplar, e devemos tirar dele boas lições. Até porque, diferentemente da Irlanda e da Espanha, que são casos de dificuldade por crise bancária e bolhas especulativas, a Grécia, como nós, embora a nível muito mais elevado, era um caso de dívida, pública e privada, com consequente défice orçamental.
Recebeu financiamento de resgate em 2010, no valor de 110 mil milhões de euros, com meses de atraso devidos a considerações rasteiramente eleitoralistas da sargenta “össie” (coisa em que vale a pena pensar, a maior potência europeia governada por uma senhora “formatada” pela dialética antes-RDA-agora-RFA). 
Resgate como o nosso, com o mesmo tipo de condições impostas de austeridade, privatizações, desvalorização interna. Com este resgate, as “expetativas” eram de poder ir novamente financiar-se no mercado dentro de três anos. Vê-se. A taxa de juro sobre a dívida grega, no mercado secundário (a única coisa que o resgate faz é evitar ter de ir ao mercado primário) está a níveis fantásticos, na ordem dos 15%. Entretanto, não só paira a ameaça destes juros no fim do resgate como, entretanto, está já a pagar juros incomportáveis aos resgatantes, acima dos 5%, como nós. Os nossos juros no mercado secundário, depois do resgate, também andam nos 10%, o que significa, claramente, que os tais omnipotentes e omniscientes mercados não confiam em que Portugal possa ir em prazo aceitável ao mercado, mesmo com o resgate da “troika”. Bê-à-bá! Não é preciso ser-se economista para perceber isto.
A política de austeridade imposta à Grécia uma vez e mais uma vez e mais uma vez vai muito para além do que é o acordo português com a santa trindade, mas lá chegaremos. Diferentemente de nós, os gregos já estão na rua. Diferentemente de nós, em que a santa trindade interna alinha pelo ajoelhamento, a oposição grega (quero lá saber que seja a de direita, mas também apoiada pela esquerda) acabou de dizer “basta”, não há mais PEC.
Com isto, a UE ficou “à rasca”. Então esses gregos preguiçosos, incivilizados, estão a bater-nos o pé? Já não bastavam os islandeses, que ainda toleramos porque não são UE?  Mas porque ficou “à rasca” a UE? Porque, afinal, pensem bem naquilo que a gente de serviço político e económico não vos quer dizer: o incumprimento da dívida de um país (em termos mais brutais, a sua bancarrota) tem custos mas não só para esse país, também e muito para os seus credores que ficam a ver navios. E quem são esses credores? Os grandes bancos, investidores financeiros, fundos de seguros e de pensões, alemães, franceses e dos bem comportados outros países europeus AAA. Eles ameaçam, chantageiam, mas se lhes baterem bem o pé acabam por ser razoáveis, que entre perder alguma coisa e perder tudo sempre há muita diferença.
É claro que, nestas alturas, há muitas variantes de discurso. Há o discurso bruto do “jamé” tudesco (até que os bancos alemães digam à senhora saxónica que “veja lá, deixe alguma coisita para nós…”), há o do BCE de “reestruturação é uma catástrofe inimaginável”, há até, espantosamente, o da comissária europeia grega (Bruxelas tolda o patriotismo) a dizer que a recusa da Grécia de ir mais longe na austeridade e nas privatizações implicará a sua expulsão do euro (com base em que disposição dos tratados?).
Raposa velhaca, Juncker vai dando uma no cravo e outra na ferradura. Não pode esquecer o que todos os grandes economistas mundiais dizem. A Grécia precisa urgentemente de reestruturar a sua dívida. Então, diz num dia que talvez um “reprofiling”, isto é uma reestruturação muito suave, nada de não pagar ou de fazer “haircut”, só renegociar a taxa de juro com a sua “troika” e eventualmente dilatar os prazos.  Mas hoje já vem dizer que se a Grécia não ceder já, não recebe a próxima fatia do empréstimo e que se vá financiar pró maneta. Também diz que isto não será culpa das instituições europeias, mas do facto de alguns parlamentos europeus não irem nisso, pressionados pelos seus eleitores. 

A implosão da UE e desde logo do euro não vai ser coisa só de governos, economistas, burocratas da CE e do BCE. Vai ser coisa (manipulada) do proto-neo-fascismo que está a ameaçar a Europa da civilização, a bestialidade dos bons nórdicos que não toleram os selvagens do sul (que têm as praias e o sol a que eles não resistem para gastar as poupanças que os sulistas não sabem fazer, compensando a soturnez suicida dos seus invernais “sétimos selos” - os portugueses nunca foram fortes no xadrez).
Amanhã ou depois, a Grécia vai reestruturar a dívida (“renegociar”, como dizem agora as bem comportadas esquerdas nossas que não querem passar por “caloteiros reestruturadores”). Não sou eu que digo, pobre de mim que, parafraseando, “nada sei de finanças, embora tenha biblioteca”. São todos os grandes economistas mundiais que lemos diariamente, desde o “liberal” Krugman ao mais ortodoxo Roubini.
Com isto, a Grécia perdeu um ano, agravou durante este ano toda a sua situação económica e social (e com risco de uma grave crise política e de agitação social, e gente que se porta mal, parte montras e incendeia carros!). O que teria sido se tivesse ido logo para a reestruturação? 
E nós, vamos aprender com o seu exemplo? Vamos aguentar um ou dois anos de recessão (4% segundo a “troika”, de desemprego, de maior défice e dívida relativa por simples aritmética de diminuição do valor do denominador PIB, de maior dívida por juros incomportáveis que agravam o resgate da “troika”, para depois, à grega, irmos para reestruturação em piores condições do que as que podemos ter agora, quando ainda podemos olhar nos olhos os nossos credores agiotas e podemos decidir com dignidade sobre a nossa dívida odiosa?
Estou convencido de que, nas eleições que estão à porta, os campos estão definidos. Há o dos que vão gerir o acordo do resgate, manobrando à vista da costa pequenas mudanças de rumo que esse acordo, afinal o programa de governo, ainda minimamente permite. Há o campo do “não”, que para mim é o da reestruturação já. Mas sem habilidades de bem comportados, “renegociar só, só a taxa de juro, talvez o prazo, mas não ser caloteiro. Com jeito, deixemos a porta aberta à fantasia de Sócrates ganhar e vier fazer maioria connosco”.

P. S. (27.5.2011) - No Sol, hoje, escreve Inês Pedrosa: "à esquerda do PS encontra-se a radicalização do não-pagamento da dívida, que significa, diga-se o que se disser, o abandono da União Europeia". Onde é que IP já leu pretender-se o não-pagamento da dívida? E de onde lhe vem essa certeza sobre o abandono da UE? A liberdade de dizer asneiras é um direito...

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Quem bem avisa amigo é

Paul Krugman é “bête noire” para os nossos economistas de serviço. Não é cómodo lidar com tal crítico áspero do neoliberalismo e da política económica europeia, ainda por cima quando é um Nobel da Economia. “When Austerity Fails”, o seu último artigo no “The New York Times” (22.5.2011) parece-me notável, apesar de eu ser leigo. Por isto me senti na obrigação de o traduzir, para leitura de muita gente. Afinal, o jornal “i” de hoje poupou-me trabalho, publicando “Quando a austeridade falha”. Para abrir o apetite, deixo aqui uma passagem:
Na Europa, pelo contrário, são eles que mandam há mais de um ano, insistindo que a estabilidade da moeda e o equilíbrio orçamental são a resposta a todos os problemas. Por trás desta insistência estão algumas fantasias económicas, em particular a da fada da confiança - isto é, a convicção de que cortar na despesa vai de facto criar emprego, porque a austeridade vai criar confiança no sector privado. Infelizmente, a fada da confiança está a fazer-se rogada e a discussão em torno da melhor maneira de lidar com esta realidade desagradável ameaça tornar a Europa o centro de uma nova crise financeira.
(…) a fada da confiança até agora ainda não apareceu. A crise económica nos países europeus com problemas de endividamento agravou-se, como seria de esperar, e a confiança, em vez de aumentar, está em queda livre. Tornou-se evidente que a Grécia, a Irlanda e Portugal não serão capazes de pagar as suas dívidas na totalidade, embora Espanha talvez se aguente.
(…) Se quiser ser realista, a Europa tem de se preparar para aceitar uma redução da dívida (…) aos credores privados, que terão de se contentar com receber menos em troca de receber alguma coisa. Só que realismo é coisa que não parece abundar.
Por um lado, a Alemanha adoptou uma atitude dura em relação a qualquer ajuda aos vizinhos em dificuldades - isto apesar de uma das principais motivações do actual programa de resgates ser proteger os bancos alemães de perdas. (…) Por outro lado, o Banco Central Europeu está a comportar-se como se estivesse determinado a provocar uma crise financeira. 
Vale a pena também a conclusão (tradução minha, por não concordar muito com a do jornal):
Então o que está o BCE a pensar? O meu palpite é que simplesmente não está disposto a encarar a falência das suas fantasias.E se isto pode parecer incrivelmente pateta, bem, quem é que disse que o mundo é governado pela sabedoria?

segunda-feira, 23 de maio de 2011

O seu a seu dono

O Bloco de Esquerda (BE) está a apresentar-se como o campeão da reestruturação/renegociação da dívida. Vou dar de desconto a terminologia, apesar de não estar convencido de que o BE a esteja a usar com rigor. Admitamos que estamos de acordo com o que isto significa: anulação da dívida odiosa, “haircut” do valor da dívida, alteração da taxa de juro, dilação do tempo de pagamento.
Disse Louçã que “estamos a ganhar a batalha da renegociação da dívida”.  Que o BE conseguiu pôr o assunto na agenda política, que há uma semana era tabu absoluto. Disse mais, que “o ‘consenso’ da renegociação da dívida, que o Bloco de Esquerda (BE) inscreveu na agenda política, é a “maior vitória política do Bloco até hoje”.
Nada disto é verdade. Se não estou em erro, a primeira vez que ouvi ou li o BE falar em renegociação, e com ambiguidade, como direi adiante, foi no debate Sócrates-Louçã, com este a não ser capaz de responder ao que aquele dizia, que reestruturar era coisa de caloteiro e que seria dramático para Portugal. Esse debate foi no dia 11 de maio. Antes, tudo o que se podia depreender da posição do BE era o que constava da moção "A" à convenção, encabeçada por Louçã. Nem uma palavra sobre a reestruturação/renegociação. Longa caracterização da dívida e das suas origens, mas propostas limitadas à visão estreita da simples redução do défice orçamental, com significado reduzido em termos de montante de redução. No limite, recusa categórica da "resposta nacionalista de saída do euro", antes uma política de refundação da UE, sabe-se lá como na relação de forças políticas da união.
Só no dia seguinte é que o BE apresentou o seu “Compromisso eleitoral”. Agora sim, fala-se de renegociação da dívida, mas  de modo que me parece muito ambíguo: “As condições leoninas impostas à Grécia, à Irlanda e a Portugal conduzem estes países a uma bancarrota adiada. A espiral para o abismo só pode ser evitada mediante uma renegociação rigorosa.” De que renegociação está o BE a falar? Parece-me que principalmente da dívida assumida com o resgate, 78 mil milhões de euros, muito pouco comparado com os 158 da dívida pública total, e sem contar com muito mais da dívida privada. Sendo assim, claro que, face aos credores trindáticos, não há lugar para falar em dívida odiosa, em “haircut”, apenas a remota possibilidade de negociar melhores taxas de juro e dilatação do prazo de pagamento. É pouco, é a tal “reestruturação suave” que até a UE começa a admitir em relação à Grécia.
O seu a seu dono, escrevi. É que o PCP já tinha apresentado semanas antes, em 21 de abril, o seu “Compromisso eleitoral” (até no nome do documento teve primazia). “O PCP considera que o Estado português deverá assumir, em ruptura com a actual política, as seguintes posições: A renegociação imediata da dívida pública portuguesa – com a reavaliação dos prazos, das taxas de juro e dos montantes a pagar – no sentido de aliviar o Estado do peso e do esforço do serviço da dívida, canalizando recursos para a promoção do investimento produtivo, a criação de emprego e outras necessidades do país. (…)”.
Mais recentemente, Jerónimo de Sousa afirmou que “a única solução para os problemas financeiros do país passa pela imediata renegociação da dívida externa ao nível dos prazos, montantes e taxas de juro, a chamada reestruturação da dívida". Repare-se na diferença essencial para o que consegui ler no BE: montantes da dívida! A tal coisa de “caloteiros” que o BE não quer assumir claramente. Nesse dia, esclarecia melhor Jerónimo de Sousa: “renegociar também montantes, a partir de uma reavaliação do Estado português, designadamente dos valores em dívida que decorrem da actual espiral especulativa (…)”.
O BE está a portar-se bem, como gente comedida que não quer assustar os muitos flutuantes PS que em 2009 lhe deram o grande sucesso eleitoral mas que agora parecem querer votar útil no seu velho redil. Mas assim, BE, mal com a esquerda por amor desses PS, mal com esses PS por amor da esquerda. Assim não vão lá.
Declaração de interesses. Sou independente de esquerda e, a não ser que volte a votar em branco (o que me parece remoto nestas circunstâncias concretas) vou votar ou PCP ou BE. Não sei ainda em qual, não sei quando saberei e por isto vou estar muito mais atento às suas posições do que ao que se passará na santíssima trindade, que não me aquece nem me arrefece. Por isto, não me parece de estranhar que eu escreva, como aqui, a “malhar” nesses partidos de esquerda. Hoje no BE, amanhã se calhar no PCP. É a suscitar no meu círculo de amigos e leitores a discussão sobre a melhor escolha no dia 5. 

domingo, 22 de maio de 2011

Eu sou mais africano do que tu

Até em termos de campanhas eleitorais estou a ficar velho. Onde já vão os grandes comícios? Hoje vi de relance - porque TV para mim é coisa triste que só de relance - apenas um comício do PS em Évora. Ando tão longe destas coisas que fiquei embasbacado por o jornalista ter dito que hoje era desafio para os partidos fazer um comício condigno na pequena praça do Giraldo. De facto, o comício do PS não teria mais do que duas ou três centenas de pessoas.
Até aqui, nada de especial. O notável neste caso é que quase toda a assistência era de origem africana. A coisa é primária, politicamente rupestre. Passos Coelho afirmou que era o mais africano dos políticos portugueses, por ser casado com uma guineense. Coisa lamentável, usar para fins eleitorais uma situação privada, ainda por cima politicamente irrelevante. Claro que, igualmente deselegante, houve logo aproveitamento bloguístico dos escribas na net comandados pelo aparelho socrático. 
Gabe-se o sentido de dever dos manifestantes. Todos bem arregimentados, organizados por autocarros, T-shirt e boné de uniforme, saco de plástico com o lanche fornecido, mas cumprindo bem o seu dever de gritos e slogans. Gente honesta, mais cumpridora do que nossos patrícios que tenho visto igualmente mobilizados para coisas destas. 
Pior foi ter ouvido, com estes ouvidos que ainda não me falham, um manifestante, de nacionalidade moçambicana, afirmar ingenuamente que tinha sido recrutado pela sua embaixada. Quero acreditar que é engano, que o homem ao dizer embaixada está a falar em alguém que ele conhece da embaixada e que está a colaborar com o PS nesta arregimentação tropical. Mas é coisa suficientemente séria para questionar formalmente tanto o PS como a embaixada de Moçambique: está a haver alguma relação entre o PS e a embaixada de Moçambique nesta campanha?

sexta-feira, 20 de maio de 2011

"Sound bite"

Tem sido notícia hoje o caso da magistrada do Ministério Público presa por condução com alcoolemia de 3% (quase a entrar em coma!). A discussão está a centrar-se no facto de ela ter sido libertada por um colega, a pretexto de a Polícia municipal não ter competência para a prender. Provavelmente coisa de corporativismo indesculpável, mas que não me parece o essencial. O essencial é que a senhora é possivelmente uma alcoólica, a nível (3%!) que certamente afeta o seu discernimento. Estão os cidadãos defendidos de terem justiça aplicada por essa senhora?

terça-feira, 17 de maio de 2011

"Sound bite"

(Diário Económico, 17.5.2011)

E eu a pensar que o empréstimo era ajuda a Portugal!

Sobre memos (conclusão?)

Afinal, parece-me agora que não é muito difícil deslindar a confusão dos dois memos ou cartas ou documentos, para a UE, para o FMI ou para ambos, assinados ou não em conjunto com o Governo. Só o percebi hoje, numa segunda leitura do MoU e não percebo como não tinha dado antes por isso. Diga-se que estive bem acompanhado na dificuldade de perceber. Talvez fosse mais sensato deixar cair este assunto, que começa a poder ser considerado uma discussão oca, mas acho que, tendo suscitado dúvidas, é meu dever esclarecer, tanto quanto penso que o posso fazer. Com isto, creio que concluo.
Recordemos. Circulam por aí dois documentos, sem assinatura, sem indicação de autoria, um deles até sem data: 1. O “Portugal: memorandum of understanding on specific economic policy conditionality”, a que chamei e vou chamar o MoU e que foi divulgado dia de aprovação do acordo e da conferência de imprensa da “troika”. 2. Um memorando unilateral intitulado “Portugal - memorandum of economic and finantial policies”, a que vou chamar o MEFP e que, tanto quanto sei, apareceu pela primeira vez apresentado por Louçã, no debate com Sócrates, como carta posterior dirigida ao FMI. 
Confusão: para alguns, o MoU dizia respeito à UE e o MEFP ao FMI. Para outros, eu incluído, o documento de pré-acordo com a “troika” era o MoU, sendo o MEFP um documento do governo, de descrição de políticas, com objetivos mal definidos (documento de trabalho para a negociação do MoU?). Ainda para outros, o documento acordado com a “troika” era só o MEFP. Outros afirmaram que estavam no MoU coisas que só aparecem no MEFP e chamaram MoU ao MEFP. Tudo isto apontei nas entradas anteriores.
Tendo criticado esta confusão e o mau uso de termos por parte de responsáveis políticos e jornalistas, quero deixar claro que não faço processos de intenção, suspeitando de manipulação propositada.
O elemento essencial de esclarecimento em que - penitencio-me - só agora reparei, é que o MoU refere o MEFP, dá-lhe clara importância. Logo no preâmbulo, diz o MoU “release of the instalments will be based on observance of (…) a positive evaluation of progress made with respect to policy criteria in the Memorandum of Economic and Finantial Policies” (“A libertação das prestações será baseada na  condição de (…) uma avaliação positiva do progresso feito em relação aos critérios políticos do memorando … - MEFP”).
Portanto, ambos os documentos valem em conjunto e articulam-se, embora com algum afastamento da caracterização formal deste tipo de documentos. Como escrevi e é coisa bem conhecida para quem anda envolvido em negociações de qualquer tipo, um “negócio” traduz-se formalmente num contrato, num acordo, num protocolo, até num tratado. Numa fase preliminar, pode-se redigir um documento menos vinculativo, um memorando de entendimento, como é o MoU de que estamos a falar. É sempre bilateral e, por isto, referindo “as duas partes”, “as duas entidades”, “os dois governos” (ocasionalmente, mais do que dois). Ou então, despersonaliza-se e diz-se apenas “vai-se fazer…”, como é o estilo deste MoU.
Na terminologia em língua inglesa, um MoU também se chama “letter of intent”, carta de intenções, assinada por ambas as partes. No entanto, também se chama por vezes carta de intenções a uma declaração unilateral, de uma só das partes, geralmente dirigida à outra. Claro que um memorando deste tipo é só assinado por essa parte, que aparece personalizada no texto. Parece óbvio que é o caso do MEFP, em que “we”, o governo, declara a intenção de desenvolver uma determinada política. E, de facto, essa política de compromisso com as regras do resgate está mais desenvolvida e clara no MEFP, unilateral, do que no MoU bilateral. Não fosse, como disse, o MoU ficar condicionado ao cumprimento do MEFP, é possível - arrisco opinião jurídica de leigo - que se levantassem dúvidas sobre o valor contratual de cada um dos dois documentos. Mas isto é discussão para juristas, não para mim.
A expressão “policy conditionality” no título do MoU é hoje corrente neste tipo de negociações ("googlem" e apanham-na em muitos processos de "ajuda") mas não é feliz, neste caso, porque não serve para distinguir essencialmente os dois documentos. De facto, o MoU, como diz esse título, lista condições que Portugal tem de cumprir para receber o empréstimo de resgate, mas afinal aquilo que, até com maior amplitude e desenvolvimento, já figura no MEFP. O que se pode dizer é que o MoU dá mais ênfase à calendarização e ao processo de monitorização das medidas com que o MEFP compromete o governo. Ou então, para ser maldoso, a distinção entre os dois documentos serve principalmente para “vergar” Portugal com um documento, o MEFP, que não é transparentemente um acordo negociado amigavelmente entre as partes, que parece mais uma contrição de baraço ao pescoço.
Afinal, todos estes aspetos formais não deixam de ser importantes, porque em política não há formalidades insignificantes e principalmente porque podem levar a suspeitar de que os erros de domínio da terminologia e dos processos formais possam ter intenções de “agitprop”. Mas mais importante é a matéria substantiva. Ela é a política de submissão aos “resgatantes” que passa por todo o MEFP. Neste sentido, obviamente que eu ter aparentemente desvalorizado o MEFP, em termos formais e de valor contratual (que, repito, estava longe de parecer evidente), não impede que, politicamente, ele seja muito mais importante do que o MoU, que até o invoca como base, tal como disse acima. 
Finalmente, nenhuma confusão teria havido se o governo, cumprindo o seu elementar dever de transparência, tivesse publicado ambos os textos e explicado o seu valor contratual e legal. Isto faz-me lembrar o que diz um texto explicativo do que são os memos de entendimento (MoU), que muitas vezes eles são usados como subterfúgio para evitar formas de acordo ou contrato que teriam de ser tornadas públicas ou homologadas.

E acabo esta discussão, porque, infelizmente, há coisas mais importantes, desde logo muito mais o que diz o memo do que o que é um memo.
Nota - E se quisesse voltar a complicar mais a questão, chamaria a atenção para que afinal os documentos em causa não são só estes dois que temos estado a discutir, mas sim três. O MoU refere ainda um outro (anexo do MEFP?), o “Technical memorandum of understanding” (TMU), que julgo que ninguém conhece. E não é para que confundir que um MoU chame um MEFP que é uma carta de intenção e não um memorando de entendimento, mas que parece incluir um desconhecido documento que volta a ser um memorando de entendimento?

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Sobre memos (continuando a continuação)

Eu não devo estar bem. Só me vem à cabeça a mãe do recruta que no juramento de bandeira gabava que o filho era o único a marchar com o passo certo. Por acaso triste, ouvi agora Marcelo Rebelo de Sousa, naquele seu espetáculo que nunca me motiva a ligar a televisão. Não é que o homem foi capaz de, sobre a embrulhada de cartas, memos e MoU lançada à confusão no debate Louçã-Sócrates, vir hoje afirmar que o que Louçã mostrou no debate, e em que baseou o que afirmou como estando na carta para o FMI afinal era o documento assinado pelo governo e pela "troika" (isto é, o MoU)? Afinal, ainda eu não sabia, o memo assinado com o FMI ou dirigido ao FMI, segundo Louçã, é assinado segundo MRS é com toda a "troika", não se sabendo se, para MRS, há ou não o outro bem conhecido MoU entre o governo e a "troika". Desculpem lá, isto faz parecer que não estou a atinar a escrever decentemente, mas a culpa não é minha. Isto é Portugal ou Rilhafoles?

É óbvio que MRS não leu o mais importante documento político dos tempos atuais (importante para nosso mal), o MoU com a "troika". Senão, nunca o poderia estar a confundir com a "carta para o FMI" (segundo Louçã), afinal memo informativo. Não o leu mas fala como se o tivesse lido e influencia levianamente e sem seriedade dezenas ou centenas de milhares de pessoas.

E, na sua infantilidade lúdica de comportamento televisivo que lhe dá imagem de marca de brincalhão espertinho, esta leviandade não o impediu de, sobre esses "factos", discorrer longamente sobre as qualidades e defeitos manifestados pelos contendores sobre este assunto, examinando cada um com aquela brincadeira de professor-examinador de quem eu não queria ser aluno.

Porque me preocupar com isto? Porque a comunicação social é poder, é o quarto poder. Porque esse senhor é o mais influente opinador político e é bebido acriticamente por milhares de pessoas que, "emprenhadas" pelos ouvidos, vão votar como eu daqui a umas semanas. Porque em democracia é assim, vale tanto o meu voto como o de um ouvinte acrítico de MRS; mas então a democracia tem de impedir, não digo que a propaganda e até a manipulação "leal" (passe a contradição), mas sim a leviandade, a desinformação, a "autoridade" de gente como MRS. E mais os economistas de serviço, e mais os jornalistas incompetentes e incultos e mais quem dá palavra ao novo Padre Malagrida ("olha que o homem até diz umas verdades", escreveu-me uma pessoa com responsabilidade).

O que é afinal hoje a democracia? É tabu discutir isto? É tabu fascizante duvidar de que a democracia como até hoje vigora corresponda ainda, nas atuais condições de dialética em exponencial de informação/desinformação, intoxicação intectual na net, manipulação, "marketing" político, afinal alienação (ah, velho renano!), corresponda - dizia - ao princípio essencial da verdadeira, real, consciente, livre, vontade do povo? Não será necessário reinventar a democracia? Antes que ela definhe na "tristeza da democracia", que se está a viver? E, a curto prazo, se berlusconhize?

Nota 1 - Com exceção óbvia da sua epistemiologia, não vou nada por Karl Popper, mas aconselho um seu livrinho, em colaboração, "Televisão: um perigo para a democracia", com edição portuguesa da Gradiva, ISBN 972-662-407-X.

Nota 2 - Ao menos hoje tenho tranquilo o "espírito da colmeia", de família de esquerda, estou a criticar MRS e não o Louçã ;-)

sábado, 14 de maio de 2011

Sobre memos (continuando)

Não tinha intenção de escrever esta entrada, que pode parecer um pouco professoral e pretensiosa (se assim o considerarem, desde já as minhas desculpas), mas talvez se justifique tendo em conta mensagens com dúvidas que recebi e que manifestam alguma confusão ou desconhecimento de terminologia. Vou-me repetir, mas tentando ser mais esclarecedor e cingindo-me às definições consagradas. Se não nos entendemos nos nomes nunca nos entenderemos nas coisas. Norma básica de investigador, para quem a terminologia é matéria essencial.

O que é uma carta toda a gente sabe mesmo o Sr. La Palisse. Mas em que diferem um memorando tradicional (memo, para abreviar) e um memorando de entendimento (“memo of understanding”, MoU)? Por razões profissionais, memos fiz muitos e continuo a fazer. MoU faço mais recentemente, quando antes fazia ou propunha apenas acordos, convénios ou protocolos.

Um memo, tradicionalmente, é um texto unilateral em que uma pessoa expõe a outra um assunto, com fundamentos, alternativas, prós e contras, etc., para fundamentar uma decisão. Muito vulgarmente, um assessor a escrever a um administrador. Coisa velha até na nossa diplomacia, os “papeis amarelos”. Pode-se assemelhar a um relatório, a um parecer, a uma proposta, a um estudo. Pode ser solicitado ou da iniciativa do próprio. Obviamente, não tem qualquer valor legal e não compromete nem o autor nem o destinatário. Tem natureza essencialmente informativa. Relendo o tal memo para o FMI, convenço-me de que é mesmo um memo deste tipo tradicional, em que dá a saber o que são as políticas já adotadas e medidas previstas pelo governo. Não há uma única frase de compromisso e nem uma vez é mencionada a outra parte, o FMI.

Os MoU relacionam-se com os tradicionais acordos (designo assim, em geral, acordos, convénios, protocolos, etc.). São mais recentes, principalmente em Portugal e refletem a maior complexidade da elaboração dos acordos. Antes, de uma conversa entre as partes, passava-se quase diretamente à redação e assinatura de um acordo. Hoje, é frequente que o acordo tenha de passar por níveis sucessivos de decisão, mas em que cada nível quer estar seguro de bases adquiridas em níveis inferiores ou em fases anteriores. É para isto que servem os MoU, que traduzem o acordo preliminar estabelecido entre negociadores para depois ser consagrado em acordo formal. No entanto, consoante os termos concretos do MoU, ele pode já ter caráter vinculativo e legal, podendo ser um subterfúgio para evitar formalidades, como a aprovação por parlamentos ou por órgãos com competência exclusiva.

Portanto, não é um simples documento informativo, traduz já um grau maior ou menor de compromisso. No entanto, em princípio, mas com exceções, não é ainda o compromisso final. Por exemplo, no caso presente, o MoU negociado com a “troika” servirá de base para a decisão final, que compete à Comissão europeia ou ao Ecofin, ao governo do BCE e à direção do FMI. Por isto é que o acordo final até pode vir a ter algumas diferenças, como se está a ver pelas notícias de condições adicionais exigidas pela Alemanha e pela Finlândia.

Em conclusão, para quem conhece minimamente estas coisas - e devia conhecer se responsável por qualquer instituição com práticas de negociação, seja uma empresa seja um partido - o texto divulgado por Louçã, no debate, é um memo tradicional, informativo, como imagino que deve ter havido dezenas na fase de negociação. Tanto quanto consigo perceber, o único MoU, envolvendo o governo e os três componentes da “troika” é, como o próprio nome indica claramente, o “Portugal: memorandum of understanding on specific economic policy conditionality” (reproduzido na figura).

Nota 1 - um pequeno pormenor que devia ter saltado à vista. Em todo o texto do tal memorando, enumeram-se as medidas já tomadas ou a tomar com frases de tipo “our program…”, “we will…”, “we have taken care…”. É óbvio que este plural não pode ser de governo + FMI, que não teve nenhum programa nem tomou nenhuma decisão. “We” é o governo, que obviamente não escreve “I”. Portanto, é um documento unilateral, de forma alguma um MoU entre duas partes. Em parte nenhuma se usa esta fraseologia no verdadeiro MoU.

Nota 2 - Espanta-me que nenhum jornalista tivesse dado por isto, tanto mais que as afirmações de Fazenda tiveram destaque de conferência de imprensa. Mas mais me espanta que ninguém do aparelho propagandístico de Sócrates tivesse usado isto para descredibilizar tecnicamente Louçã. Devem estar bons para o chefe, sabem imenso de matreirices mas nada de coisas sérias.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Que confusão!

Não quero crer que o BE tenha tais infantilidades técnicas como essa da tal carta ou memorando ao FMI sobre a taxa social única, esgrimida no debate com Sócrates. Devo ser eu que estou enganado. Não é possível que Louçã, Fazenda e outros não conheçam a diferença entre um tradicional memorando informativo e os hoje muito na moda memorandos de entendimento (“memorandum of understanding”, MoU), com natureza, objetivos e valor jurídico completamente diferentes. Vou fazer o jogo do adversário, com este comentário? Pelo contrário, a esquerda só se credibiliza quando a sua gente mostra sentido crítico, principalmente em relação aos mais próximos.
Recordemos. No debate com Sócrates, Louçã baseou-se numa "carta oficial para o FMI", com um compromisso do governo, e sem dizer qual a sua data. Bastante trabalho me deu encontrar essa “carta”. Afinal, não é nenhuma carta de compromisso. Espanta é que o governo, desmentindo que tenha havido uma carta, não tenha explicado o que é o documento mostrado por Louçã. Incompetência parece que há em muitos lados. É um memorando de tipo tradicional, sem data (presumivelmente da altura das negociações ou até do pedido de resgate), meramente informativo e que pouco diz a mais do que o PEC 4 e mesmo o OE de 2011. O texto está sempre no passado ou no presente, é uma descrição de medidas já tomadas ou programadas e não um plano a propor ao FMI.
Pior foi a explicação de Luís Fazenda. “Louçã confrontou isso sim o secretário-geral do PS com o que está escrito no ponto 39, página 12, do memorando económico e financeiro subscrito pelo Governo (e pelo PSD e CDS) no acordo de assistência financeira a Portugal e que, segundo o Bloco de Esquerda, constitui “uma carta de garantia” ao FMI.” 
Prosseguindo na mesma linha, Fazenda “acentuou por várias vezes que a recente negociação internacional envolveu dois documentos (sublinhado meu, JVC). Um memorando feito com as instituições da União Europeia e um segundo memorando feito com o FMI, sendo ambos dirigidos às instituições para homologação. “Esses memorandos são convergentes e o memorando com o FMI é bastante mais explícito em relação à TSU do que o que consta no da União Europeia. Neste último ponto, está bem escrito que está prevista uma redução substancial da TSU, ao contrário do que tem dito o primeiro-ministro”.
Há dois memorandos de entendimento (MoU)? Só se conhece um, em inglês, que, ao que toda a gente julga saber menos o BE, é a base negociada com toda a “troika”, FMI incluído, para servir de base às respetivas três decisões articuladas e concertadas  de concessão do resgate. A "troika" externa atuou sempre em conjunto, concluindo com um conjunto de medidas e condições compiladas no MoU, conforme é evidente na sua conferência de imprensa conjunta. O resgate é um processo integrado, mesmo que decidido por acordo mas separadamente pelo FEEF/BCE e pelo FMI.

O BE conhece dois MoU, um com a Comissão Europeia e outro com o FMI? E porque não há com o BCE, que não é um mero departamento da CE? Se conhece um MoU com o FMI, que mais ninguém conhece, deve divulgá-lo. Ou então está a confundir incrivelmente a tal “carta”, de facto um memorando informativo, com um MoU, até assinado também pelo resto da santíssima trindade interna.
Seja como for, e mesmo atendendo, à portuguesa, que “se calhar nada disto aquece ou arrefece” para o eleitor, há certamente muita gente que dá pela asneira (ou então, admito no meu caso, está a dizer asneira), a credibilidade do BE, em coisa tão importante, está em jogo. Pessoalmente, eu não posso dizer que apoio um manifesto que exige um entendimento à esquerda porque os dois partidos dessa área representam o “não”, por isto merecedores, um ou outro, do voto “não” e ao mesmo tempo calar-me perante asneiras descredibilizadoras.
E até penso que não estou a dizer asneira. Esta dos dois acordos, dos dois memorandos, só pode ser a única justificação para coisa dita e repetida por Louçã, na apresentação do programa: que o resgate vai ser um empréstimo de 110 mil milhões de euros. Procurei por toda a parte e não consegui perceber, até me lembrar dessa dos dois acordos. Claro, sabe-se que a regra dos resgates é 2/3 do FEEF/BCE e 1/3 do FMI. Portanto, como o empréstimo dos bem divulgados 78 mM €, referente ao MoU que por aí anda publicado (52+26), se calhar é só do FEEF/BCE (?!), porque, segundo Louçã e Fazenda, há um segundo acordo com o FMI, então este vai entrar com metade daquilo, logo 39 mM €, logo o total arredondado (mal) de 110 mM €. Não consigo ver outra explicação, embora os valores não batam certo: não seriam 110 mas sim 117. Ou o BE sabe coisas que nós não conhecemos? Então, faça o favor de nos esclarecer.

Concluindo, uma dúvida legítima: Louçã aldrabou ou errou? Qualquer das coisas é má. Já dizia Talleyrand que, em política, pior do que um crime é um erro.

Jogos de palavras (II)

Vou continuar a entrada anterior, agora em notas soltas.
1. Disse que a argumentação do tal comentador foi logo seguida por ouvintes. Não quero fazer processos de intenção, mas achei estranho, duvidando da argúcia de quem em casa tão facilmente se apercebeu daquela minúcia terminológica. Será que vai aparecer cada vez mais na propaganda eleitoral da máquina socrática e que foi hoje ensaiada por ouvintes que sabemos serem agentes nesse tipo de programas? Será que, quando Sócrates tiver de renegociar, obrigado pelos factos, pelos receios de "default" por parte dos credores ou até pelos seus parceiros/chefes europeus, vai dizer que não está a reestruturar, está é a renegociar? Habilidades destas da sua parte bem as conhecemos. A única coisa que me impede de aderir a esta tese é custar-me muito pensar que o tal comentador tenha feito este frete.
2. Mas também porque é que, a partir de certo ponto do debate e hoje todo o dia, na apresentação do programa do BE, Louçã só usa o termo renegociar? Já vimos que são totalmente equivalentes. Mas porquê começar a usar agora este termo, que, tendo eu “googlado”, não encontrei na discussão política e económica em Portugal e em português, até hoje? Também o BE com habilidades de esconder o gato com o rabo de fora, tapando-o com palavras? Ou por pensar que é melhor compreendido pelo homem comum? Veja-se abaixo o ponto 4.
3. Até porque estas coisas acabam por falhar. Por coincidência, ouço agora no noticiário dizer-se “o resgate”. Parece que já não pega “a ajuda externa”.
4. Ou está a tentar insinuar-se na cabeça das pessoas menos informadas que os dois termos apontam para as duas modalidades ou visões da reestruturação, “conduzida pelos devedores” e “conduzida pelos credores”? Não me custa nada a crer que seja esta a ideia ainda reservada do gabinete de manipulação socrático, mas então o BE corre riscos em insistir, como hoje, na designação de “renegociação”.
5. Será tudo isto bizantinice minha, preocupação formalista com palavras? Lembrem-se, a política sempre foi feita com palavras!
6. Coisa à margem, mas notável. Louçã apontou para uma coisa bizarra. Não fosse o esforço de um blogue, ainda hoje só quem sabe inglês é que podia conhecer o MoU (para usar a sigla inglesa!) mais conhecido como acordo com a troika. É vergonhoso, indigno, mas também revelador do desprezo pelos cidadãos, que o governo não tivesse feito uma versão oficial em português - aliás, contra todas as normas das relações diplomáticas. Mas também isto leva a dar algum desconto a Sócrates. Coitado, as suas contradições devem-se apenas à incapacidade de ler o memorando com a sua habilitação de inglês técnico da defunta Independente.

Jogos de palavras (I)

Este blogue renascido começou com uma entrada em que escrevi o seguinte: “um enorme desafio à esquerda, que entre nós - veja-se o tom do debate presidencial - continua a ter um discurso tradicional. Veja-se a quantidade de gente do meu tempo que anda a escrever posts em blogues no mais velho estilo de política retórica. Ainda não perceberam que hoje o discurso político domina bem a economia política ou não tem credibilidade contra esse horroroso emprenhamento pelos ouvidos que os "economistas" de serviço estão a fazer?”. 
Faz-me impressão ler nestes dias autores políticos que muito considero, com quem muitas vezes tenho velhas afinidades e solidariedades, mas que se deixaram ficar para trás, no disse-que-disse, mentiu ou não mentiu, na análise exaustiva dos truques partidários, das tricas entre produtos da mediocridade partidária. Tendo a chamar a isso “política impressionista”, dominada por uma visão de ideologia abstrata. É jogar no sistema, mesmo que criticamente. E é esquecer que hoje, “it is the economy, stupid!”.
Mas isto tem riscos, porque a economia é “ciência” (agora não tenho tempo para justificar as aspas, com a minha visão de cientista de toda a vida) complexa e difícil de dominar. Sapateiro a subir acima da chinela é coisa horrorosa, mas quem, como eu, quer olhar para a política como cidadão tem de se arriscar a juízos de amador sobre a economia. Mas é no fio da navalha e com sentido de modéstia, como não é o caso que hoje me impressionou. Mais uma vez, a incapacidade de resistir a um convite televisivo, de dizer como muitas vezes digo, “obrigado mas não vou, não é a minha área de conhecimento”. Sobre gripe ou BSE, por exemplo, falei frequentemente na TV, sim!
O debate entre Louçã e Sócrates foi hoje longamente comentado por um jornalista veterano, muito respeitável, generalista mas com maior interesse no jornalismo cultural. José Carlos de Vasconcelos, homem da minha geração, com formação jurídica tradicional. Disse coisas espantosas, depois glosadas por telespetadores que usaram ipsis verbis o seu discurso.
Para o comentador, uma diferença radical vista ontem entre Louçã e Sócrates é que o primeiro defende a reestruturação da dívida e o segundo defende a renegociação da dita. Espantoso, repito. Desde logo, nem sendo essencial, não é verdade que tenha havido essa diferença de terminologia. Cada um usou indiferentemente os dois termos. Se o comentador, antes de ir ao estúdio tivesse feito algum trabalho de casa (coisa de que pouco se cuida entre nós, porque ninguém precisa de refrescar a sua enorme cultura), teria dado logo, por exemplo e para me ficar pela imprensa, que não por tratados de economia, com uma passagem do glossário uma vez publicado pelo Jornal de Negócios, com total equivalência dos termos: 
Reescalonamento, reestruturação, renegociação de dívida: É um processo com consequências semelhantes aos descritos no ponto anterior, mas ocorre ainda antes de os Estados chegarem ao "fim da linha". Os governos tomam a iniciativa de se sentarem à mesa com os credores, antes de entrarem em incumprimento. A História mostra que esta antecipação costuma ser premiada pelos investidores.”
Sócrates tinha dito que “reestruturar a dívida seria absolutamente trágico”. Que significava um calote aos credores, chamando a atenção para a vergonha que isto é para qualquer pessoa (esta de comparar economia do Estado com economia das famílias é velha lição salazarista…). O comentarista vai mais longe, apoiando Sócrates. Segundo ele pensa que Sócrates pensa, renegociar não é calote, reestruturar é que sim. Renegociar até se calhar vai ter de se fazer, mas reestruturar nunca, que teria alto preço e seria uma desonestidade, o tal calote. O nome da rosa! Isto é, sujar as calças com fezes evacuadas não é mau, feio é borrar-me nas calças.
“Até quando, TV, vais abusar da nossa paciência?”. Entre a unanimidade dos economistas de serviço à hegemonia neoliberal e a ignorância desinformadora de comentadores, venha o diabo e escolha.

domingo, 8 de maio de 2011

O Bloco e o governo de esquerda

O Bloco de Esquerda (BE) tem coisas simpáticas mas ainda não passou da fase de acne juvenil. Muitas vezes é volúvel, inconsequente, imcompreensível. A confusão deste fim de semana, das suas mensagens contraditórias, em relação ao que entende ser o "governo de esquerda” deixa um comentador como eu em maus lençóis. Admito que por erro de informação, porque só me baseio no que transcrevi no meu canhenho do que os dirigentes iam dizendo.
Louçã falou num governo de esquerda. É coisa complexa e certamente Louçã assim a considera. Todavia, não teve em conta uma coisa elementar: a nossa comunicação social boçal não é capaz de entender subtilezas, centrou-se logo na questão “vai o BE estar aberto a coligação com o PS depois das próximas eleições?”. Com isto, nada mais da convenção passou para a opinião pública e foi ver a “troika” tradicional do BE à rasca sem saber como desfazer esta parvoíce de que eram culpados.
É claro que ninguém pensa que pode haver a curto prazo alguma proposta do BE, do PCP, dos movimentos e independentes que os estão a questionar, no sentido de um entendimento de esquerda com o PS com tradução parlamentar, muito menos governativa. A história não se esgota no próximo mês e uma grande virtude dos revolucionários é a paciência. Foi isto que Portas e Fazenda tiveram de enfatizar hoje, a corrigir a tontice de Louçã, cada vez mais auto-embrulhado na sua auto-satisfação. E tanto é verdade que Louçã, inabilmente, foi ao encontro da incultura política dos jornalistas que lhes deu azo à conversa de “com Sócrates ou sem Sócrates”. 

Receio que, tantos anos depois da diluição no BE dos seus fundadores partidos minúsculos, ainda a sua lógica continue a imperar. Mantêm tiques antigos e isto prejudica a renovação da esquerda.
Isto não é para ir buscar coisas velhas que já não dizem nada a ninguém. Mas isto é para dizer que, a meu ver, e para quem tem memória, os dirigentes do BE têm muito a explicar e a limpar-se face aos seus companheiros, aos seus eleitores e a todo o povo português. Principalmente, têm de explicar muito bem se e porquê não conseguem um entendimento com o PCP. Claro que o PCP não é pera doce, que não é fácil dialogar com os amigos da Coreia do Norte e das FARC. Mas é isto o essencial da dificuldade de diálogo ou ainda coisas já historicamente ridículas, de grandes oposições ideológicas, entre leninistas, trotskistas e maoistas? Quem é que hoje dá um cêntimo para esta discussão?
Voltando ao que verdadeiramente interessa, o “governo de esquerda” incluindo o PS, é óbvio que não pode ser um objetivo a curto prazo, muito menos com qualquer significado para as próximas eleições. O PS vai-se apresentar a eleições com Sócrates para disputar ao PSD a execução do programa “de unidade” imposto pela santíssima trindade. Tout court! Não há outro PS, este que vai a eleições é um partido que não pode entrar em qualquer imaginação de cenários de esquerda fantasista.
Há um setor de esquerda do PS com quem contar? Admito que sim, mas só depois de um infelizmente longo processo de debate e de tempo para essa gente cair em si. Sócrates acabou de ser eleito com mais de 90% de votos. Onde é que estão esses tais militantes de esquerda do PS? E onde estão os líderes alternativos que os podem galvanizar, é Seguro sempre seguro? Diferente é pensar nos eleitores, os muitos mais que não foram chamados a aclamar o querido líder. Mas estes só lentamente virão ao campo da luta alternativa ao consenso do carneirismo trindático - externo e também interno.
Não há mais pachorra para os “PS bons” do aparelho. Assumam-se. Claro que há milhares e milhares de “PS bons”, mas não os que fazem o jogo do “partido democrático” e de liberdade interna, para grande risada do patrão, dos seus meninos, dos seus mercenários de fazer imagem. “PS bons”, muitos e muitos, felizmente, são os eleitores que, votando até agora no PS, começam a dizer “basta”. É preciso que este grito vá com oferta de alternativa. Será a nova esquerda, não em 5 de Junho, mas depois cada dia e cada dia. 
Voltando à convenção do BE, ou este partido e o PCP percebem que vai ter de haver uma nova esquerda e se posicionam nela com inflexão dos seus paradigmas partidários mesquinhos, ou passam à triste memória, engolidos pela rua e pela net. Lembram-se do panorama partidário italiano dos anos 80, aparentemente indestrutível? Oxalá pensem bem, para não repetirmos a farsa, depois do drama, de virmos a ter um Berlusconi.

António Ferro deixou herdeiros

Em época de crise depressiva, mesmo as maiores patetices podem servir de consolo. Anda aí por toda a parte um vídeo de recado de portugueses a finlandeses. Já o recebi em dezenas de mensagens - o que significa que há uma rede de cadeias de dezenas ou centenas de milhares de mensagens. Já foi visto no YouTube por 15000 pessoas. Está em destaque nos sítios do Público e do Expresso. Também em blogues respeitáveis. 
É pena que o vídeo esteja falado em inglês. Assim, para nossa vergonha, poderá ser visto por muitos estrangeiros, a rirem-se de tão tonta patrioteirice.
A coisa é tão primária que muitos dos amigos que mo mandaram se sentiram na obrigação de escrever “não concordo muito com o tom e acho que até há imprecisões, mas vale a pena ver”. Desculpem, mas não acho que valha a pena ver. Vi-o e fiquei confrangido. 
Começa logo pela invocação forte, motivo permanente de fundo, de uma bandeira inventada pelo salazarismo nas festas dos centenários. Lá está ela na capa do meu livro de instrução primária. Não se fica por aqui, para a minha memória evocada, a relação com o salazarismo. Muita e muita coisa neste vídeo me faz logo lembrar-me da propaganda do SNI. Pelo menos, dos 3 F, não falta futebol neste vídeo, podiam ter acrescentado Fátima e fado.
Mais, os erros - pior, mitos - são muitos, até aquelas coisas ridículas já mais do que desmontadas mas que continuam a confortar este povo pequenino, como se pensar que os japoneses, com toda a sua etiqueta e costumes refinados, precisaram que os portugueses lhes fossem ensinar a dizer “obrigado”, no século XVI.
Pior é que a maioria das comparações ou alusões às lusas virtudes são de um primarismo confrangedor, misturando coisas importantes da nossa história com mitos popularuchos, enaltecendo o rapazinho Ronaldo que os pobres finlandeses não têm, comparando Magalhães e Mourinho, envaidecendo-se com a miséria de a década de 60 ter gerado a emigração que justifica 20% de portugueses na população luxemburguesa (em que é que isto é motivo de orgulho, sem desprimor para os emigrantes que não tiveram culpa de o ser?). Fico por aqui, mas, repito, lamentando que a tristeza em que estamos leve gente de nível a rever-se em tão medíocre coisa.
Muito teria de concreto a desmontar neste vídeo, mas é melhor remeter para um excelente comentário de “catinga” a um “post” no “Duas ou três coisas”, muito bom blogue que devia estar acima deste patrioteirismo rasteiro e não lhe dar eco. Mas, afinal, também eu não estou a dar eco? Com uma diferença, estou a criticar, enquanto que todas as referências que vi são do tal tipo “há coisas menos corretas, mas vale a pena ver”. Não, não vale. Estamos em época em que é vital manter a lucidez, o sentido crítico e a superioridade intelectual.

Eu, que sou muito mais anteriano (açorianidade obriga) e cesariano do que pessoano, nestas alturas vou com Álvaro de Campos.

Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

Claro que não é bem assim. Tenho opiniões sociais e defendo-me com elas. E a minha lucidez faz-se em compromisso epicurista com a estética de coração (ou melhor, de consciência moral, embora a lucidez não se construa sobre “raciocínios morais”). Mas o essencial é que "merda, sou lúcido".