terça-feira, 30 de outubro de 2012

Nada do que é Esquerda me é alheio

Estou distante, não diria que equidistante, dos três partidos da esquerda convencional, seja lá o que for o que eu entenda por verdadeira esquerda. No entanto, distante não é desinteressado. O meu principal lema, que parafraseei como título desta entrada, é o célebre verso de Terêncio, “Humani nihil a me alienum puto” (nada do que é humano me é alheio).

Com o PCP tenho uma relação muito extremada, ambivalente. Durante alguns anos, meus tempos de estudante universitário, foi a minha referência, a minha casa ideológica, o meu lugar de me sentir lutador. Até que a Checoslováquia me deu volta à cabeça. Depois, o 25 de abril, a revolução, fizeram-me pactuar com o compromisso prático. Até já não ser possível, até à saída silenciosa e precoce, em nenhuma cisão grupal. 

Conheço muitos comunistas. Posso considerar que muitos estão presos por um esquema dogmático, que estão acossados, à defesa. Mas são gente da melhor qualidade, generosos, solidários, com sentido social, íntegros, não aceitando que o seu partido, apesar de muitos erros, entre em joguinhos do parlamentarismo eleitoral mesquinho. O problema é que o PCP, para a opinião do eleitorado, é um fóssil. 

E cada vez mais se não rediscutir de cima a baixo a sua base matricial de “partido da classe operária”, uma classe hoje claramente em regressão e sem o papel económico e social que tinha nos tempos leninistas (embora não, à época, no império russo). Também fazer uma grande ação de esclarecimento sobre todas as calúnias de que foi vítima, mas o que implica reconhecer erros que foram eficazmente usados para essas calúnias.

Com a osmose social, com o “aburguesamento” dos padrões de vida e de ambições sociais dos  proletários de hoje, com a hegemonia da democracia formal, com a falta de bases teóricas e de experiências bem sucedidas (vamos ver a América latina) de uma revolução dos tempos de hoje, com a redução objetiva dos setores primário e secundário da economia, as análises e as formulações de Marx (não gosto de chamar marxismo, acho que Marx também não gostaria) ainda me influenciam muito, mas acho Lénine totalmente ultrapassado. Mesmo aquilo que teve de inovador, a sua análise do imperialismo, não se ajusta à globalização e às “hegemonias benévolas” de hoje.

O BE também merece todo o meu interesse, como observador independente. Aproximando-se a sua convenção (ai, o tique de se diferenciar pela linguagem!), até penso escrever alguns comentários sobre o que nela me parece, de fora, estar em jogo. Aprecio a evolução do BE, certamente por hoje ter muitos mais militantes pós-fundação do que os herdados dos minúsculos partidos fundadores. Talvez haja desses partidecos vestígios no funcionamento interno, em algum espírito de fração, mas isto não me diz respeito. 

O que é verdade é que, concorde-se com o que propõe o BE – e eu discordo frequentemente – o BE não aparece ao eleitorado como uma espécie de seita presa a um esquema ideológico rígido, como o PCP. Posso até criticar o BE, muitas vezes, é pelo contrário, por uma certa tendência para o oportunismo, para sobrepor coisas na moda a políticas essenciais, por ser propositadamente ambíguo, depois flutuante em relação a propostas que devem ser absolutamente claras, como aconteceu, desde 2011, com o percurso do BE na questão da reestruturação da dívida. Para Louçã, “renegociação”, o que, como aqui escrevi, me pareceu bem diferente, coisa ambígua e habilidosa para eleitor do centrão.

 O PS é o caso mais complicado. Em relação ao magno problema político de hoje, o acordo com a troika, a submissão a maior velocidade ainda do governo, à austeridade, apesar das críticas palavrosas mas sem consequências. Pode-se admitir que o PS oficial tem evoluído, mas a ritmo lento e sem uma imagem clara de decisão. De qualquer forma, rejeita a denúncia do memorando com a troika, rejeita a possibilidade de suspensão do serviço da dívida, então a hipótese sequer de saída do euro é um tabu. E estas são as posições firmes dos outros partidos e de largos setores independentes, como se viu no Congresso Democrático das Alternativas. Mesmo socialistas marginais, como Ana Gomes, João Galamba ou Paulo Pedroso, se têm manifestado em discordância com o congresso.

Repare-se que disse “PS oficial”. Este é o problema desde há muito. Eu conheci vários PS, convém recordar. Lidei, no movimento associativo, em Medicina e não só, com os entusiastas da então Ação Socialista Portuguesa. A meu ver, eram anti-unitários, era difícil debater com eles, só queriam era ganhar influência. 

As eleições de 1969 cavaram uma grande divisão, com a candidatura soarista da CEUD, embrulhada em negociações com a “ala renovadora” (?) do regime, e comprometeram o enorme impacto do movimento unitário das CDE.

Depois do Congresso de Aveiro de 1973, chegamos à unidade, com o MDP-CDE. Coabitavam, fraternalmente, comunistas e socialistas, muitos outros sem partido. Tudo se destruiu depois do 25 de abril com a vontade de ambos os partidos, PCP e PS, de se afirmarem, empurrando o MDP-CDE para um pequeno canto, de partido para que não tinha vocação. A chamada aliança povo-MFA teria sido outra coisa se, em termos de superestrutura política, tivesse sido a aliança MFA-MDP (claro que estou a falar do MDP de 1973). Depois, em relação ao verão quente, nem vale a pena falar, todos sabem como esta clivagem brutal na unidade se acentuou, sem remédio.

Lembremos também que foram importantes os vira-casaca. O PCP também os teve nos seus milhares de inscritos pós-revolução, mas sei, por experiência própria, que se tentou controlar isso, identificar declarações curriculares fraudulentas. O PS não quis ou não pôde controlar isso. No meu local de trabalho, uma grande organização, a Gulbenkian, a sofreguidão do PS (só não gritava “assim se vê a força do PS”) fez entrar no partido a maior canalha oportunista, até – garanto – legionários e homens de mão da administração.

Tudo isto, mais as boas relações com Carlucci, mais o jogo duplo entre a reação dos nove (discutível mas honesta) e a gente do norte, na Corteçaça, com Pires Veloso e oficiais da Força Aérea, apoiada por serviços secretos estrangeiros; depois a coligação espúria do 2º governo, com o CDS; mais o “socialismo na gaveta”; mais o FMI, desgastaram a imagem do PS junto de um grande setor social, eleitoralmente minoritário porque vencido no 25 de novembro, mas ainda com grande convicção ideológica e presença na rua, nos movimentos sociais, nos sindicatos, na reforma agrária em fim de vida. 

Talvez mais importante foi o alinhamento do PS com a terceira via da social-democracia europeia, que evoluiu tanto que de terceira via já não tem nada, é neo-liberalismo com uns pozinhos de açúcar. “That a… Spoonful of sugar helps the medicine go down”.

Há muitos socialistas, muitos dos quais meu bons amigos, que estão contra o PS oficial. Também a JS parece promissora como geradora de quadros com outra visão. Infelizmente, a meu ver, todos esses contam pouco. Muitos estarão disponíveis para uma alternativa partidária, a criar, mas não lhe trazem nada a não ser o seu prestígio pessoal. É difícil, organizativamente e financeiramente, criar um partido. O caso recente melhor conseguido foi o do Parti de Gauche em França, mas feito de uma dissidência de socialistas que nunca tinham desistido da luta interna, que tinham boas posições no aparelho e no quadro dos apoios oficiais a deputados (como cá), que as usaram para lançar o novo partido. Nada disto acontece no PS. Também não com eurodeputados, com boa base financeira e estrutural para lançamento de um novo partido.

Veja-se também o caso grego. A cisão que gerou um novo partido foi ao contrário, uma cisão de direita da Syriza, a dar a Esquerda democrática, que acabou por se coligar com o PASOK e a ND. Do lado do PASOK, nada, só o apodrecimento consentido pelos seus militantes, sem uma revolta, sem uma iniciativa alternativa.

Como já escrevi aqui, tenho bem o palpite de que vamos para semi-Grécia. O BE não vai ser a Syriza (escreverei depois sobre isto). Mas o PS vai-se PASOKizar. O que ficará por meio, o que resultará de ambas as coisas, não sei, mas temo que seja um reforço do arco troikiano, PS-PSD-CDS, a atrair um PS diminuído, embora, paradoxalmente, com um bom resultado eleitoral contra PSD-CDS, mas insuficiente para uma solução própria. Só em eleições seguintes é que o PS aparecerá tão castigado que então pode haver uma alternativa de esquerda, a oferecer urgentemente.

E como veem os eleitores o PS? Palpita-me que a ideia geral dos eleitores é que o PS é hoje um partido incoerente, que quando muito só os pode atrair como castigo ao atual governo. A liderança de António José Seguro é fraca, porque ele próprio é um homem com uma imagem (até fisionómica – e como isto conta, em tempos de TV!) de inseguro, contra o seu nome. Ganhou a liderança contra Assis, mas toda a gente sabe que quem espreita é homem muito mais capaz, António Costa. O PS está naquilo que se chama, medicamente, estado de estupor, uma espécie de zombie, vagueia mas sem capacidade de decisão. Os eleitores têm intuição para saberem reconhecer isto e não perdoam. O último exemplo foi o do governo Santana Lopes.

Tudo isto dito, é preciso ter-se em conta que os partidos, isto é, o seu aparelho, estão blindados em relação à mudança. O que talvez signifique pensar numa alternativa à democracia representativa – essencial – até agora baseado no sistema partidário.

No caso do PCP, é principalmente uma blindagem ideológica, da psicologia do militante muito dedicado, humanamente de grande qualidade, que necessita de um suporte ético que o partido lhe dá e a que ele se devota sem discussão. No PS é muito mais complicado, é muito a rede de favores, influências, nomeações para cargos públicos, etc. No BE? Não sei, mas direi a seguir alguma coisa que me palpita – estando de fora, não tenho certezas – a propósito da sua próxima convenção.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Os multiplicadores

A economia não é tão difícil como parece. Muitas vezes, até em coisas decisivas, é uma mistura de aritmética simples e de bom senso. Caso destes é o dos multiplicadores, agora em foco. Alguns amigos meus dizem-me não compreender o que é isto. É muito simples, mesmo para quem como eu é leigo em economia.

Por cada euro conseguido de ganho no défice orçamental, o PIB varia x. É isto o multiplicador. Claro que tem consequências muito diferentes se x, o multiplicador, for igual, menor ou maior do que 1.

Se for 1, elas por elas. A  austeridade não agrava o PIB mas não serve para nada, não propicia crescimento, eterniza a situação económica, não gera crescimento. Entretanto, todos sofremos com essa austeridade, para nada.

Pode ser menor do que 1? Seria bom. Gaspar começou por introduzir na sua folha de Excel um multiplicador de 0,5, sei lá onde o foi buscar. Depois 0,8, valor muito usado pelas agências internacionais e pelos dogmáticos do neo-liberalismo, sabe-se lá com que bases científicas. Até agora e ao documento do FMI. O resultado seria positivo. Por cada euro de corte na balança orçamental, a economia cresceria 1,25 euros (1:0,8). Não se percebe é como. Está-se a ver, só o nosso "nerd" é que não vê. Baixa acentuada de rendimentos do trabalho, aumento de impostos, desemprego, perda de poder de compra, baixa da procura interna, como é que cresce o PIB?

Agora vem o FMI, pela pena do seu economista chefe, dizer que estes multiplicadores são desajustados, devem ser calculados entre 0,9 e 1,7. Depois, um estudo de Barry Eichengreen, de Berkeley, e Kevin O'Rourke, da Universidade de Oxford, centra mais o multiplicador, à volta de 1,6

Passamos portanto para a terceira hipótese, multiplicador maior do que 1, aquilo que o bom senso comum está a ver. Quer dizer que, por exemplo, 1 euro de diminuição do défice orçamental faz o PIB diminuir 1,6 euros. Isto significa logo uma coisa simplesmente aritmética. Para muitos efeitos, as metas e os indicadores são de relação percentual entre défice e PIB. Imaginemos um défice de D e um PIB de P. Se diminuirmos o défice em 10% – coisa brutal para o contribuinte – e isto resultar, por efeito do multiplicador, numa descida do PIB de 16%, o défice em relação ao PIB que era de D passa a ser [0,9 x D / (P x 0,84)]. Sem mais nada, o défice passa de (D/P) para 1,07 x (D/P), aumenta 7%, só por simples matemática.

Mas não é só isto. Para diminuir o tal euro no défice orçamental, ou se vai pelo aumento da receita ou pela diminuição da despesa. Ambas resultam em diminuição do poder de compra e da procura interna. Desemprego e maior despesa social, menor coleta de IRS. Retração do consumo, menor coleta de IVA. Etc. Daí o tal multiplicador, mas também a necessidade de cada vez maior austeridade. Já não basta cortar um euro, perdendo 1,6 euros no PIB. Vai ser preciso 1,5 ou 2 euros, logo perda de riqueza nacional de 2,4 ou 3,2%, e por aí fora. É isto a espiral recessionista!

Isto é economia de leigo para leigos. Não nos deixemos enganar, lá porque não somos economistas.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

A ciência em tribunal

Desde a inquisição que não se condenava cientistas por crimes de opinião científica. Foram agora condenados a penas pesadas seis sismólogos italianos que não previram adequadamente o terramoto de Aquila, em 2009, que matou cerca de três centenas de pessoas. Foram condenados por homicídio por negligência. É um precedente perigosíssimo, que fará com que muitos cientistas não arrisquem opinião, quando a sua opinião pode ser decisiva.

É de conhecimento geral que as grandes catástrofes não são previsíveis. Até os que só têm informação sobre isto pela leitura do célebre livro sobre a teoria do caos, de Gleick, conhecem o efeito borboleta. O que se faz normalmente como previsões (até na meteorologia) são principalmente extrapolações a partir de dados estatísticos. O que os geofísicos italianos fizeram foi isto mesmo: os dados dos dias anteriores, mesmo com muitos pequenos sismos, o que se chama um enxame, não indicavam a probabilidade de terminarem num grande sismo. Probabilidade, nunca certeza.

Não deixa de estar aqui em causa o peso da opinião pública, da comunicação social, de um justicialismo primário e populista, típico de sociedades – também a nossa – que, paradoxalmente, não acreditam nos seus sistemas judiciais e que os veem como peneiras por onde passam os corruptos e poderosos.

Este caso faz-me lembrar o da gripe de 2009, em que estive muito envolvido. A probabilidade de uma pandemia era alta, em termos científicos e tendo também em conta dados reais, da altura. A Direção Geral da Saúde, muito bem, encomendou grande número de doses – até insuficiente para um pior cenário – de vacinas e de medicamentos (Tamiflu). Felizmente, a situação evoluiu muito favoravelmente. Por isto, todos, oficiais e privados, fomos acusados de alarmismo e de gastos inúteis de dinheiros públicos.

Mas se tivesse havido a provável pandemia e não estivéssemos preparados? Se fosse como agora em Itália, o meu caro amigo Francisco George, D. G. S., e até eu próprio estaríamos hoje na prisão.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Contra o OE2013

De uma mensagem recebida da Comissão Organizadora do Congresso Democrático das Alternativas:
“(…) não há verdadeira alternativa à proposta de OE que não passe pela redução da única despesa que pode ser cortada sem efeitos recessivos e com benefício na libertação de recursos para o investimento e a criação de emprego: os juros da dívida pública. É, pois, pela denúncia e renegociação dos termos do Memorando que passa qualquer verdadeira alternativa à proposta de OE para 2013. É nisto que consistem as razões do Congresso Democrática das Alternativas, expressas na Declaração aprovada em 5 de outubro. 

(...) Assim, a Comissão Organizadora do Congresso Democrático das Alternativas decidiu lançar uma iniciativa cidadã de rejeição da proposta de Orçamento de Estado para 2013, sob a forma de uma petição pública. A recolha de assinaturas irá decorrer durante todo o processo de discussão da proposta de OE na Assembleia da República, o qual, de acordo com os calendários previstos, terá a sua conclusão no final do mês de Novembro (depois de votada a proposta na generalidade e na especialidade).”
Petição:

Exmo. Senhor Presidente da República 
Exmos. Senhores Deputados da Assembleia da República

Os signatários apelam à vossa responsabilidade política e institucional perante o país e perante todos os cidadãos, para que seja rejeitada a proposta de Orçamento de Estado para 2013 apresentada pelo Governo. A sua aprovação constituiria certamente um mal maior para o país e os portugueses comparativamente com as consequências da sua rejeição.

Esta proposta de OE, já contestada pela opinião pública e pela grande maioria dos especialistas, significa o prosseguimento e agravamento do caminho para uma austeridade ainda mais recessiva, com mais desemprego, mais destruição da economia, mais empobrecimento, mais desigualdade social e menos justiça fiscal. Em nome dos credores, rouba o futuro e a esperança ao país e aos portugueses. Ofende princípios constitucionais relevantes, designadamente o princípio da confiança (dimensão importante do princípio democrático), os direitos do trabalho, os direitos sociais e a progressividade e equidade fiscais.

Aos Deputados, apelamos para que rejeitem esta proposta governamental de Orçamento de Estado, assumindo plenamente a vossa condição de representantes eleitos do povo e de todo o País, que é superior a quaisquer outras fidelidades ou compromissos;

Ao Presidente da República, na qualidade de supremo representante da República, garante da independência nacional, da unidade do Estado e do regular funcionamento das instituições democráticas, obrigado a respeitar e a fazer cumprir a Constituição, apelamos a que exerça o seu direito de veto sobre este Orçamento de Estado, no caso de ele ter aprovação parlamentar ou, no mínimo, que o submeta, no exercício das suas competências, à fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional.

Lisboa, 22 de Outubro de 2012.

Assine aqui

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Transcrição

Jorge Bateira, no I, “Sem margem de manobra”:

(Texto integral, com a devida vénia):

A proposta de Orçamento do Estado para 2013 foi apresentada ao país pelo ministro das Finanças acompanhada de um comentário dirigido aos seus críticos: “Portugal não tem margem de manobra.” Ou seja, apesar do evidente fracasso da política de austeridade na Grécia, em Portugal e na Irlanda (neste caso, menos comentado), ainda assim temos de executar uma política que provou ser ineficaz. Dizem-nos que não há qualquer margem de manobra, mesmo que um dos membros da troika, o FMI, já tenha reconhecido que a política económica imposta a estes países é errada. O discurso do bom aluno acaba de ser enterrado, mas é espantoso que a política se mantenha.

Estamos pois num beco (aparentemente) sem saída. Entrámos numa espiral de desastre para a qual um núcleo restrito de economistas portugueses desde o início alertou, em flagrante contraste com o comentário entusiasta de muitos outros a quem foi dado grande protagonismo mediático, tendo como pano de fundo o silêncio das nossas faculdades de economia que, salvo honrosas excepções a título pessoal, guardaram um silêncio bem revelador da hegemonia do pensamento neoliberal na formação dos nossos doutorados. Vendo o barco a afundar, um ou outro vêm agora admitir que a austeridade deveria ter sido mais suave, em linha com o discurso do Partido Socialista. A mudança vem tarde e com pés de barro porque, ainda assim, persistem no paradigma teórico que gerou este desastre. Primeiro, porque continuam a admitir que o equilíbrio das contas públicas é, em si mesmo, virtuoso. Segundo, porque entendem que o relançamento da economia só pode fazer-se com medidas de apoio à oferta. Terceiro, porque, para eles, a UE acabará por salvar o euro e libertar-nos (a tempo) da austeridade. Tendo banido Keynes dos seus programas de doutoramento, é natural que o quadro conceptual destes académicos se sinta ameaçado e, na defensiva, se adapte apenas marginalmente perante a imensa crise da procura que apadrinharam.

Em 2011, os portugueses deram a este governo o benefício da dúvida. No fundo, os portugueses precisavam de tempo para perceber os contornos do problema em que estavam metidos. Hoje, é com profunda apreensão, mesmo com alguma raiva, que estão a deixar cair uma ilusão, a de que a moeda única nos traria uma integração europeia feliz, prosperidade para todos e alargamento dos direitos sociais. Para muitos cidadãos, talvez mesmo para a maioria, hoje é evidente que a saída para esta dramática crise só pode ser política e passa pela denúncia de um contrato que, segundo uma das partes contratantes, consagra um grave erro de política económica.

À medida que a denúncia do Memorando vai sendo percebida como a única saída que nos resta, o debate público sobre as implicações de tal decisão tornar-se-á incontrolável. Mais tarde ou mais cedo, as televisões vão ser obrigadas a levantar a censura a que têm sujeitado esta opção. As redes sociais estão a minar-lhes o terreno e a descredibilizar o seu comentário económico, pelo que o recuo acabará por acontecer. A partir daí, vamos ver a histeria dos apóstolos do euro, de direita ou de esquerda, para quem o desastre em que estamos lançados será sempre preferível ao abandono da moeda única. Veremos então que, apenas por razões ideológicas, os arautos de um imaginário “euro bom” preferem o desemprego de massa, por tempo indefinido, a uma inflação transitória causada pela desvalorização de uma nova moeda. Veremos então quem prefere manter o país no desespero e esperar por uma UE com orçamento federal, mesmo sabendo que a Alemanha nunca estará disponível para partilhar dívidas ou submeter o seu sistema bancário e o seu orçamento a uma tutela federal. E, veremos também, como evitam discutir o nosso endividamento externo porque sabem que tal desequilíbrio não pode ser resolvido sem recurso à política cambial, além de outras. Nesse dia, tornar-se-á visível a grande margem de manobra de que dispõem os países com moeda própria e banco central.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

O Congresso Democrático das Alternativas (XI)

“Em quem vou votar desta vez?”, pergunta-se o Zé.

Como escrevi em entrada anterior, reproduzindo uma intervenção minha no CDA, estamos confrontados com um problema político de contradição de dinâmicas e de tempo: o do movimento social e o da política convencional, eleitoral. Claro que se influenciam mutuamente mas a uma escala de tempo – embora a história seja uma  brincalhona que gosta de surpresas – que não é adequada à resolução atempada da referida contradição.

Quanto ao primeiro termo, o da movimentação social, da informação, da conquista das consciências, enfim da hegemonia, já muito se disse, já muito se viu na rua. A evolução da crise pode augurar uma situação pelo menos pré-revolucionária. Podem aparecer propostas até de mudança significativa do sistema político, pelo menos de pressão determinante para correção dos seus maiores vícios, quando até os seus próprios agentes compreenderem o risco que correm com o exponencialmente crescente descrédito da “classe política” (o pior é que a democracia também pode correr riscos).

Mas também me preocupa o curto prazo, até porque a falta de soluções a essa escala pode enfraquecer o movimento estratégico, causando desânimo, remetendo para casa e para defesa imediata dos legítimos interesses tão violentados, muitos dos que estão a engrossar o “povo na rua”. Há casos em que a pressão popular mudou revolucionariamente o sistema “de dentro para fora”, como Praga-1948 (que muitos consideram, contra minha opinião, apenas um golpe de estado por um partido), mas não são a regra. Não perfilhando o leninismo, não quero as consequências de uma revolução feita por uma vanguarda, salvo exceções como o 25 de abril, em que o povo rapidamente enquadrou a vanguarda, nesse caso militar.

A curto prazo, digamos que até ao fim desta legislatura, se não antes,  há vetores objetivos a considerar. Degradação crescente da base de apoio do governo, contradições na coligação, conflitos entre poderes formais e fáticos, propostas para alternativas “vindas de dentro” do sistema, etc. Interessam-me mais agora as subjetivas, essencialmente tudo o que tem a ver com o sentimento do eleitorado, muitos mais milhões do que o milhão que sai à rua.

Não é garantido que dessas tensões resulte que a necessária queda do governo conduza a eleições antecipadas. Mas é a solução democrática e que evita coisas perigosas, como reforços de poder de quem não tem confiança popular indiscutível, ou predomínio da tecnocracia sobre a política. Por isto, vou basear-me, confiando, na previsão de eleições antecipadas.

Os que saem à rua, os que assumem militância política, os responsáveis por organizações e movimentos políticos, têm de dar resposta urgente a esta pergunta básica do Zé eleitor: “votei contra o Sócrates por ser aldrabão, não quero votar outra vez neste gatuno Coelho. Em quem vou votar?”.

Antes do mais, prevenção contra algumas ilusões. Uma, que parece influenciar em particular o BE oficial, é o mimetismo com a Syriza. As situações são muito diferentes, até na rua. Na Grécia, o PASOK foi cilindrado, ultrapassado pela Syriza. Em Portugal está longe de se passar isto com o PS, que beneficia de, apesar de ter assinado o compromisso com a troika, não o ter executado e sofrido as consequências, ao contrário do PASOK. A Syriza competia eleitoralmente era com a Nova Democracia, taco a taco (2% de diferença, contra 23% cá entre PS e BE) e beneficiando o vencedor do bónus de 50 deputados. Ora o BE está em recuo – vejam-se as eleições nos Açores – e muito longe de, só por si, ao contrário da Syriza, poder ser o eixo de uma alternativa de governo.

Segunda ilusão, a da conquista fácil de parte significativa dos tais 80% de apoio à troika. Na Grécia, muito eleitoradonão estou a falar só de manifestantes – já diz não aos dogmas que lhes têm impingido e que as pessoas compreendem já que são a causa da sua desgraça. Não é assim em Portugal

Muita gente com quem falo e que não sabe nada de finanças nem tem biblioteca está zangada, queixa-se (diante da televisão), mas continua a pensar em termos morais provincianos – que temos de pagar as dívidas porque somos honrados, que reestruturá-la era ficar sem financiamento para pagar salários e pensões, que mesmo tentar mudar prazos e taxas é perigoso. Muito mais, claro, pensar sequer em coisas mais radicais. Estão é perplexos. Sabem que não querem mais este governo e o que lhes roubam, mas não veem alternativa à política de austeridade e ao cumprimento rigoroso dos compromissos.

Não nos iludamos, porque no momento do voto próximo, os tais 80%, talvez reduzidos a 70%, talvez até 60%, mas sempre maioria, continuarão a oscilar de voto mas sempre no âmbito do “grupo respeitável”. O beneficiário desta situação, obviamente, é o PS, que até poderá ter maioria absoluta em próximas eleições.

Também poderá beneficiar do efeito de subjetividade que se viu nas últimas eleições. É certo que Passos Coelho não parecia ir fazer o que tem feito, mas certamente toda a gente sabia, pelo menos, é que era mais à direita, mais conservador (ou as pessoas do centrão não ligam a isto) do que Sócrates. O que derrotou Sócrates não foi a sua política (até nem má de todo) mas o caráter vicioso, a aldrabice, a mentira. No caso atual, para além do descontentamento com a política, também jogará a rejeição do extremismo sectário, do fanatismo gaspariano, de que o Zé não gosta.

O voto no PS será portanto de alternância, mas por razões não totalmente políticas e programáticas, e por isto não um voto de alternativa. Como estou a referir-me ao CDA e a toda muita gente que  tem uma posição radicalmente oposta ao “grupo respeitável”, é errado traduzir como alternativa de esquerda, em termos de curto prazo, uma alternância personificada pelo PS. Não faço a injustiça de pensar que o PS oficial governaria sem diferenças em relação a este governo de fanáticos ultra-neoliberais, mas, em menor grau, o PS adota a perspetiva austeritarista e os pressupostos básicos da escola de economia dominante.

Obviamente que isto não quer dizer que, como consensual no CDA, um objetivo imediato essencial, a par da movimentação social e da pedagogia política, não seja o de tentar ajudar a uma plataforma comum eleitoral PS-PCP-BE. No entanto, como se viu no congresso, posições consensuais dos participantes, nomeadamente a denúncia do memorando e a reestruturação da dívida, vão obviamente contra a posição do PS oficial e até de socialistas participantes do congresso.

O que me parece mais provável – e não creio ser preciso ter muitos dotes divinatórios – é uma evolução em dois ciclos, à grega. O PS (e não só o PS) não corresponderá ao esforço de convergência em que o CDA se empenhará, ganhará as eleições ou com maioria absoluta ou coligado com o CDS ou eventualmente com o BE (se este tiver vocação suicida). Como na Grécia, haverá a seguir um ciclo eleitoral de implosão do PS, com uma desejável diferença importante: na Grécia não houve evolução ou cisão dentro do PASOK, o que pode acontecer com um PS em frangalhos por uma próxima governação mais ou menos obediente à troika e ao “establishment” europeu.

Por isto, estou certo de que a sabedoria do CDA e da sua comissão vai privilegiar, desde já, é o diálogo e a convergência com as margens do PS. É preciso é que elas também se afirmem.

Também a questão de um novo partido. Por tudo o que já aqui tanto escrevi, creio que é indispensável, mas não me parece hipótese de trabalho para próximas eleições. Para as seguintes, já entramos em zona crepuscular, de incerteza. Muita água passará entretanto debaixo da ponte, talvez em inundação. 

O que me parece fácil de entender é que a atual movimentação social, com destaque particular para um CDA que, entretanto, certamente crescerá e se afirmará - mais tarde direi porque estou convencido - é um novo enquadramento facilitador, até em termos de condições estruturais, financeiras, etc., da criação de um novo partido.

A ideia não foi aprovada pelo congresso, mas porque apresentada em termos de vinculação imediata. Eu próprio também votei contra isso, mas com a certeza de que uma coisa não significa outra, que o CDA nunca se comprometa com isso. Hoje é hoje, amanhã é amanhã.

E seria curiosa a inversão do que é vulgar, um partido criar uma frente ou movimento. Aqui seria uma frente a criar um partido. Mas não é caso único. Lembremo-nos da Índia ou da África do Sul.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Unidade possível?

Vale a pena - tristemente - ler o artigo de Ângelo Alves, dirigente do PCP (Comissão política), sobre o Congresso Democrático das Alternativas. Vem no Avante da última semana. Não são opiniões políticas, a que cada um tem direito. São incríveis falsidades sobre o congresso. Assim não vamos a parte nenhuma!

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Wanted!


Este homem é perigoso. Só não é mais porque a sua enorme vaidade lhe dá para ser desbocado, não medir o que diz, expor-se. Em contrapartida,  não temos jornalistas como esse. Mas, com toda a sua sobranceria, Borges é medíocre, como são os seus companheiros de seita portugueses, como Gaspar ao ser tratado com sobranceria “patronizing”, como uma criança, pelo ministro alemão das finanças, num vídeo que todos viram.

Não tenho muito medo de Passos Coelho, Relvas e quejandos. Estão ao nível da maior mediocridade portuguesa, provinciana, ridícula. Tenho mais medo é de Borges, Gaspar, Álvaros, cheios de “credenciais” curriculares e académicas, porta-vozes da ideologia mundialmente dominante na economia política. 

Há tempos, perguntou-me candidamente um jovem amigo, economista: "Vai dizer-me que todos esses meus professores, doutorados, cientistas, estão errados?" Ele falhou num termo: cientistas. Não são, são ideólogos e quase sempre com enormes interesses pessoais investidos na defesa do sistema. E como é que esse meu amigo e muitos jovens se sentirão quando compreenderem que foram traídos e manipulados pelas nossas escolas de economia?

Estou correto ao falar de seita, como se fossem aquelas coisas evangélicas brasileiras que pululam por aí, IURD e outras?  Acho que sim. Os fanáticos do neoliberalismo partilham tudo com elas. Uma visão esquizoide do mundo e da vida. O fanatismo, a incapacidade de analisar racionalmente a realidade e de com ela confrontar os seus dogmas. A crença absoluta nos milagres. O desprezo pelo povo, para eles reduzido aos irmãos, aos fiéis, aos que os seguem e os admiram.

Tentando reduzir ao mínimo a sua caracterização psicológica, diria que são uma classe de psicopatas, os de um umbigo do tamanho do sistema solar.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O Congresso Democrático das Alternativas (X)

Sugestão à comissão de redação do CDA, sabendo que é coisa muito difícil: resumo da declaração num manifesto de duas páginas, no máximo. E centrado no essencial: política austeritarista à seita gaspariana ou política alternativa?

Afinal, são as ideias demarcantes: denúncia do acordo com a troika, reestruturação da dívida, preparação de uma alternativa, confronto dos partidos de esquerda com as suas responsabilidades na falta de uma alternativa eleitoral.

O resto, a definição de uma democracia alternativa e participativa, a política social, a política de inclusão, o lugar de Portugal, está tudo dito e redito. A agenda de hoje é "it's the ecomomy, stupid!"

Mais um que me faz falta

Recebi agora a notícia do falecimento de Nuno Grande. Foi, a todos os títulos, uma personagem  marcante na minha vida, profissional e pessoal. Conheci-o em 1970, acabado eu de chegar a Angola para serviço militar na Marinha. Alguém me tinha recomendado como seu possível colaborador na universidade, tivemos uma conversa, criamos empatia. Vi nele, naquela época, um homem com uma visão universitária que correspondia àquela que eu, nos anos imediatamente anteriores, como dirigente associativo, me tinha esforçado por promover. 

Fui seu assistente, com a responsabilidade da Biologia médica. Como, no ano anterior, tinha tido um papel muito ativo na introdução em Portugal, por via dos Estudos Avançados de Oeiras, da biologia molecular, creio que a U. Luanda foi pioneira na introdução desta disciplina moderna no plano de estudos médicos. Ele não estava muito familiarizado com isso, mas a sua cultura permitia-lhe perceber o que aquela novidade significava.

Era um grande pedagogo, um entusiasta pela educação. Anatomia tinha sido para mim a mais chata das disciplinas. Foi ele que me fez ver como podia ser intelectualmente muito bonito pensarmos na estrutura ligada à função. Hoje é banal, na altura era revolucionário. Fez de facto a Faculdade de Medicina de Luanda, depois o ICBAS, com o apoio de um homem genial, Corino de Andrade, outra grande recordação na minha influência da vida.

NG era um homem bom. Transmontano a trasbordar de alma, era referência para os muitos seus patrícios em Luanda, com uma clínica de 50% de borlas. Inteligentíssimo, os nossos domingos de praia, na sua enorme tenda, eram um desafio à conversa culta, inteligente, não convencional, sempre problematizante.

Era um fazedor de amigos. Creio que muitas vezes conscientemente do que era pôr pessoas em contato, como fez comigo e com o Percy Freudenthal (nos anos da resistência antifascista e anticolonial!), cujas afinidades ele intuia muito bem. Ou com académicos que ele prezava muito, como a Zenaide e o Manuel Américo. 

Também com amigos visceralmente angolanos, de gerações, como o Valério e a Irene, percebendo ele como eu queria sentir aquela terra, as suas "gloriosas famílias". Aquela Irene, Martins há muitos (até irmã de um que lá vimos há pouco no painel do Tarrafal, o Antoninho), mãe da "Escrarinha" hoje dinamizadora da moderna/tradicional dança em Angola. De quem um dia a empregada nos veio mostrar à mesa o bacio, "Patrão Valério, Escrarinha já estás cagar duro". 

Irene Martins, minha saudosa amiga, prima da minha hoje mais que tudo, então miudinha muito gira, treze anitos morenos, gaiatos e espertíssimos a prometer futuro lindo. Longe estava eu de pensar…

Os meus últimos contatos com NG foram quando o convidei, era eu diretor do Instituto de Higiene e Medina Tropical, para presidente da Comissão de Acompanhamento e Avalição do instituto. Já ele estava reformado, mas ainda totalmente lúcido, apesar de uns pequenos problemas neurológicos ou otorrino. O seu contributo para experiência invulgar na época, envolvendo estrangeiros, foi notável.

Um grande abraço, muito sentido, à minha velha amiga Ana Maria. Os “miúdos”, que brincavam na praia com os meus, é que já não se devem lembrar de mim.

O Congresso Democrático das Alternativas (IX)

Propostas polémicas

A proposta de declaração do CDA refletia os apoios ao texto inicial da convocatória, aos textos mais ou menos desenvolvidos enviados antes do congresso, à convergência verificada nas reuniões preparatórias. No entanto, é óbvio que qualquer congressista tinha o direito de apresentar propostas que se afastavam desse consenso. 

Não me refiro a centenas de propostas de emenda formais ou de aperfeiçoamento do texto, que foram aceites e incluídas no texto final, mas sim a propostas que rompiam a opinião largamente maioritária. Viu-se, pela sua rejeição, com muito poucos votos contra a posição da comissão de redação (que fez um ótimo trabalho, contra-relógio).

Vou tentar lembrar-me das principais e explicar porque, em todos os casos, votei contra elas. A razão geral foi a de não querer prejudicar, com radicalizações e acusações, um esforço visível de unidade ou convergência. Creio que foi a razão dos que votaram contra essas propostas respeitáveis mas marginais, não por comodismo ou seguidismo em relação à organização do congresso.

Por comodidade, sem lhes querer chamar de mais à esquerda ou mais à direita, vou separar entre propostas mais conservadoras e propostas mais radicais.

De entre as primeiras, quase só consigo identificar a de Ana Gomes, que já aqui discuti. Ao recusar a denúncia do memorando da troika, ao insistir no cumprimento dos “nossos” compromissos, ao pôr todas as expetativas numa esperançada solução europeia, estava claramente fora daquele baralho.

Só foi aplaudida por um setor da assistência bem localizado, e só aquando da sua acalorada recusa de saída do euro. Este foi outro tema polémico. Apesar de eu ter falado sobre ele na sessão paralela, votei contra a sua inclusão na declaração, porque já lá vinha quanto baste e não valia a pena abrir fraturas. Gostava que a declaração fosse um pouco mais longe e comprometesse o CDA com um estudo sério das vantagens e desvantagens da saída do euro. É um dos principais temas de aterrorização das pessoas pela seita neoliberal e exige resposta.

Mas ficaria por aqui, agendar a discussão. Não votei propostas mais radicais de compromisso do CDA com esta possibilidade, afinal ainda uma possibilidade entre outras, por mais que eu a ache muito provável.

Outras propostas polémicas diziam respeito à suspensão imediata da dívida (não percebi se do pagamento da dívida se do seu serviço). Novamente, é mais do que provável que, no processo que todos defendemos no congresso, a denúncia do acordo com a troika e a reestruturação da dívida, a questão se vai pôr inevitavelmente. Neste momento, até já temos resultado positivo do saldo orçamental primário, estamos é afogados pela perspetiva ordoliberal, neoliberal e quejandas no que entra em conta com o serviço da dívida, agora agravado pelo pagamento de juros agiotas da “ajuda” do resgate troikiano.

Compreendo a posição dos que defenderam que a denúncia do pacto com a troika só é eficaz se acompanhada de medidas firmes e simbólicas, como a suspensão dos compromissos da dívida (afinal, sejamos claros, declararmos incumprimento, falência, bancarrota, “default”, o que se quiser chamar). Mas vou pela muito mais subtil e inteligente estratégia gradualista, dialética, bem exposta, com grande sintonia, pelos intervenientes da sessão específica, João Ferreira do Amaral, Ricardo Cabral e Jorge Bateira, infelizmente não relatada adequadamente na sessão plenária. Negociar sempre com coragem; ter sempre previsto o passo seguinte, de aprofundamento da conquista anterior ou de nova exigência; esclarecer sempre e mobilizar a opinião pública sobre as consequências das propostas, ganhar o seu apoio. Conquistar a hegemonia!

Também afloraram algumas posições de defesa da suspensão da dívida, mas só da dívida ilegítima. Coisa típica das auditorias da dívida, inconsequentes, como aqui preveni, na altura. O que é dívida ilegítima? A política faz-se com juízos morais? Por exemplo, e para fazer de advogado do diabo, a dívida com os submarinos é ilegítima? É preciso demonstrar primeiro que a decisão foi politicamente errada, com intenção dolosa (e vamos começar a julgar moralmente as decisões políticas? Esperem pela nossa vez). Mais, que houve corrupção.

A outra grande polémica foi a da passagem imediata do CDA a associação política e desde logo com a perspetiva de formação de um novo partido. Sabem todos os meus leitores habituais que muito tenho defendido a criação de um novo partido. Mas vou propor isto a uma enorme assembleia cheia de gente militante nos atuais partidos? O caminho faz-se caminhando, escreveu António Machado. E os primeiros passos são forçosamente de criança, passos pequenos, inseguros, cuidadosos.

Finalmente, o que não foi dito. Não foi dito, a não ser quanto referi, que devemos respeitar os compromissos, sujeitarmo-nos à troika, apenas minorar (como, nessa lógica?) o austeritarismo deste governo. Não estava no CDA ninguém com essa opinião. No entanto, é a base da política do PS, partido sem o qual cai pela base a esperança de alternativa eleitoral a curto prazo do CDA. O que não quer dizer que eu defenda, nisto, abater bandeiras. Sempre na vida lutei por coisas inglórias. E algumas vezes até ganhei!

Mas também falei há pouco de um setor bem definido e organizado dos congressistas que nem quer ouvir falar em roturas no projeto europeu, em implosão do sistema do euro. Velhas doenças de internacionalismo, histórias a terminar em picador de gelo, mas eram jovens, vão ter tempo de pensar. No entanto, não houve uma única proposta, sequer uma intervenção, a discutir o que, apesar de tudo, podem ser “propostas modestas”. Nenhum eurofilico se apresentou a discutir os “eurobonds”, o “novo” papel do BCE, a "regra de ouro" constitucionalizada, o pacto orçamental, a proposta bruxelense de sistema bancário europeu. Fica aberto para isto este blogue. Vou gostar da discussão.

Vai ser curioso, intelectualmente, assistir à evolução ideológica, programática - e aos golpes de rins - dos partidos de esquerda. O PCP se calhar não precisa, limita-se a pôr na mesa, com alguma "brutalidade" política, o que vale em gente, organização, militância. Do PS não espero qualquer reflexão, a não ser em pequenos círculos marginais e irrelevantes, por muito que me agrade receber notícia dos seus "arroubos de alma". Quanto ao BE, principalmente nesta fase próxima de substituição da direção, tenho muita curiosidade.

Mas, se vamos para eleições, o que fazer com esta gente? Continua...

O Congresso Democrático das Alternativas (VIII)

Falta de informação, imaginação ou coisa intencional? Pedro Tadeu refere hoje, no DN, "o domínio da reunião por personalidades do PS, um partido que defende o memorando da troika." Há limites para a asneira!

domingo, 7 de outubro de 2012

O Congresso Democrático das Alternativas (VII)

Os contestatários no PS 

O que se pode esperar da sua ação? Não vou citar nomes, até porque quase todos são meus amigos pessoais, mas é coisa essencial no contexto destas conversas sobre o CDA. Desde logo, começo por dizer que tive pena de não os ver lá.

Em relação ao PS, é claro que o CDA foi uma comédia de enganos. O congresso apelou à unidade de esquerda. O congresso proclamou a urgência de eleições antecipadas. O congresso teve como posição firme que a alternativa de esquerda a sair dessas eleições devia comprometer-se com a denúncia do acordo com a troika e com a renegociação imediata da dívida.

Entretanto, na véspera, Seguro tinha afirmado perentoriamente que o PS nunca poria em causa os compromissos com a troika, nem a permanência no euro, nem o compromisso da dívida. E o PS não apoiou as moções de censura.

Então qual é a alternativa eleitoral, dentro de um ano ou dois? 

Claro que há uma resposta ambígua, incerta, mas verdadeira para quem perfilha um sentido dialético da história. Estamos a viver um processo muito acelerado de mudança das relações políticas, do confronto entre política convencional e política de massas. A própria hegemonia, até há pouco dominante da direita, está a abrir brechas, até por personalidades eminentes de direita. Quem sabe se disto tudo nascerá em breve coisa nova? Se da convergência da rua e de iniciativas como o CDA não emergerá qualquer coisa?

Até pode acontecer que as coisas evolvam faseadamente. Um dos cenários que me parece provável é que, em próximas eleições provavelmente antecipadas, ganhe o PS. Como provavelmente será sem maioria absoluta, fará compromissos com a direita e irá alegremente pelo caminho do PASOK. Então, serão as eleições seguintes, também provavelmente antecipadas, à grega, a dizer alguma coisa, depois de toda uma grande agitação social por o nosso PASOK só ter agravado a crise, por cobardia genética.

Alternativa? Um novo partido? Aqui é que penso nos nossos marginais do PS. Com características diferentes, houve duas grandes surpresas no quadro recente europeu dos partidos: a Esquerda Democrática grega e o Partido de Esquerda francês. Característica comum é terem sido feitos a partir de dissidências de gente com posições importantes, influência, meios financeiros e técnicos, de deputados.

Em Portugal, os meus amigos PS contestatários remeteram-se ao papel de figuras intelectuais, simbólicas, respeitadas, mas sem meios. O aparelho ri-se deles. Mesmo Manuel Alegre não conseguiu mobilizar forças organizadas e eficazes no PS, caindo na dependência do BE.

No entanto, este CDA trouxe-me uma surpresa. Uma excelente intervenção de Pedro Delgado Alves, socialista, deputado. Atenção, não é qualquer um, é o dirigente máximo da JS! Vamos ficar atentos. Seguro que se cuide.

O Congresso Democrático das Alternativas (VI)

Das sessões paralelas do CDA, escolhi para participar a que me pareceu mais fértil em polémica e também a de maior importância no quadro político atual: “Desafios da denúncia do memorando da troika”. Para além de João Rodrigues, de que falarei depois, intervieram como convidados João Ferreira do Amaral, Jorge Bateira e Ricardo Cabral. Depois, embora com tempo muito limitado, um bom número de participantes, eu incluído.

O ponto de partida já era importante, as propostas da declaração, que tinham reunido amplo consenso em muitas reuniões de preparação do congresso. Tão importantes que, provavelmente para muita gente, como eu, foram fator decisivo de apoio ao CDA e que afinal, de forma mais elaborada, dão eco ao grito de 15 de setembro, “fora com a troika, queremos a nossa vida”.
Denúncia do Memorando e abertura de um processo negocial com a UE, o BCE e o FMI a partir de uma posição determinada, ancorada no reconhecimento de que os pressupostos do memorando estão errados; 
Reestruturação da dívida colocada no topo da agenda das negociações; 
Preparação para os cenários adversos que podem resultar de uma atitude negativa da troika, traduzida numa suspensão do financiamento internacional (incluindo a necessidade de declarar uma moratória ao serviço da dívida);
Como bem explicado pelos conferencistas, isto é tudo viável, não viola nenhum dogma dos proclamados pelos apóstolos tipo Gaspar e seus amigos da seita ultra-neo-liberal. E nem é nada de radical, pode ser faseado, envolvendo sempre um processo negocial mas corajoso, em que, a cada passo, já está preparado o segundo, os adversários sabem que há coragem de avançar para ele e o povo está bem elucidado sobre as consequências. É tudo uma questão de coluna vertebral!

Nem toda a gente concordou com todas as propostas concretas. Alguns manifestaram dúvidas. Outros queriam ir mais longe. Muito bem, é natural, mostra que há muito trabalho de estudo e debate pela frente. Mas numa coisa estavam todos de acordo: não à intoxicação dos “economistas iluminados” de que não há alternativas à política austeritária e neoliberal, fase suprema atual do capitalismo.

A única voz discordante foi da eurodeputada Ana Gomes, numa intervenção histriónica e desequilibrada, berradamente oposta a tudo o que fosse violação “jurídica” (palavra dela) dos nossos compromissos, e com fé - tanta como a de Gaspar mas sobre outra coisa - de que tudo se resolverá no quadro europeu, aquele em que ela se move e é justificação da sua vida. 

Não foi bonito que tivesse sido apupada, mas mereceu. Só uma tonta é que, sem prejuízo do seu direito de expressão, vai dizer ali coisas tão opostas ao que qualquer pessoa politicamente responsável percebia que era o sentimento comum que ali tinha congregado tanta gente. No entanto, quando ela disse explicitamente que nem podia pensar na saída do euro, foi muito aplaudida por um setor da sala, maioritariamente jovem, que identifico facilmente - sei alguma coisas de política. E não eram PS!

Ficaram em aberto duas questões, a meu ver bem porque seriam fraturantes e há tempo na evolução do CDA para as discutir. Em primeiro lugar, a proposta de suspensão imediata do pagamento da dívida (não percebi bem se quem o propunha estava a falar da dívida ou do serviço da dívida). Mais importante é a eventualidade da saída do euro

Para quem acha que o CDA foi uma espécie de estados gerais do BE, este último ponto é pedra de toque. Como se sabe, a questão do euro é tabu para o BE, pelo menos para a sua linha louçã-dominante, aliás como defende a sua inspiradora Syriza. Pelo contrário, o debate dessa sessão do CDA, a começar pelas intervenções da mesa, admitiu perfeitamente a saída do euro, obviamente não como tese à cabeça, mas como uma possibilidade como outras, a estudar no momento, no decurso do nosso processo de libertação da política troikiana, externa e interna.

Isto já vinha na proposta de declaração do congresso, de forma para mim talvez fracamente assertiva, mas há que fazer compromissos unitários:
 “A saída do euro é a ameaça sempre exibida logo que a denúncia do memorando é sugerida. O objetivo é assustar, paralisar, bloquear a necessária discussão acerca do conjunto de alternativas em presença. Na realidade, uma saída unilateral do euro teria certamente consequências pesadas, mas ninguém sabe, ou pode, calcular com rigor os custos e benefícios de uma tal opção face a outras alternativas.”
Eu propus que figurasse explicitamente na declaração que era urgente estudar as consequências de tal medida, mandatando para isto a comissão organizadora do CDA. Por razões de ocupação profissional, não tinha feito regulamentarmente a proposta, a seu tempo. Não importa, estou convencido de que ela se vai impor na prática, a curto prazo.

À margem - na sessão da tarde, fiquei surpreendido por ouvir uma intervenção de João Rodrigues, “relator” do tema, completamente ao arrepio do que se tinha discutido. Devo confessar que, para dentro de mim, o acusei de manipulação partidária. Afinal, só depois percebi que o seu papel era o de apresentar um texto preparado anteriormente e que eu não conhecia, que não foi referido, muito menos discutido. Se isto se passou com os outros “relatores” na sessão plenária (como o aplaudidíssimo José Manuel Pureza, com o seu texto muito bonito mas panfletário), se eram intervenções antecipadamente preparadas, como me disseram, lamento, porque não ficou conhecido o teor das discussões setoriais da manhã, certamente tão ricas como foi na minha. Foi decisão um pouco "à antiga sovieto ou trotsquista" da organização. Curiosamente, Pureza e Rodrigues, etc... Meu caro Marcelo, vou estar atento.

O Congresso Democrático das Alternativas (V)

Ontem e hoje, alguns jornais só noticiam o que disseram "ao congresso" Manuel Alegre, Francisco Louçã, outros notáveis. O que esses jornais dizem foi aquilo que eu vi, esses políticos a falarem para as câmaras, fora dos trabalhos do congresso.

E até acho bem que não tenham falado no congresso. Simplesmente, os jornalistas não conseguem perceber como um congresso daqueles é diferente da vida política "normal", só de personalidades mediáticas. Eles querem lá saber quem eram aqueles quase dois milhares de pessoas a debaterem, a lançarem ideias ou apenas, mas muito bem, a manifestarem os seus desabafos.

É o "quarto poder", talvez ainda mais medíocre do que os outros poderes convencionais.

sábado, 6 de outubro de 2012

O Congresso Democrático das Alternativas (IV)

Notas soltas.

1. Excelente trabalho da mesa da sessão final, dirigida por Manuela Mendonça, com firmeza simpática. Não a conhecia. Dizem-me que é dirigente sindical, dos professores. Vê-se que tem muito traquejo, coisa de que falo frequentemente a propósito de iniciativas muito bem intencionadas mas fracassadas por falta de experiência.

2. Ótimo serviço técnico de sala e de receção aos participantes.

3. Bagunça na ordenação das inscrições para intervenção na sessão plenária. Fui dos primeiros a inscreverem-se, fui dos últimos a falarem e só porque reclamei.

4. Nenhum dos muitos restaurantes ou snacks à volta esperava esta afluência. A organização devia tê-los prevenido.

5. A merecer entrada especial, a questão do horário e da pontualidade. É cultural. Na Inglaterra ou nos EUA, é questão de civismo elementar, de respeito para com os outros. Quando, na minha universidade, ouço invocar o "quarto de hora académico", fico horrorizado. Tenho no meu currículo dezenas de reuniões, organizadas por mim ou por outros. Começam à hora, esteja quem estiver. Quem se atrasar, não fala e diz-se porquê. Quem intervem, treina bem o tempo da sua intervenção, para o que hoje até há bons utensílios técnicos (mas tudo se faz à ligeira, ninguém faz trabalho de casa, muito menos os notáveis). Não mete "buchas" que gastam muito tempo. Não tem a arrogância de quem pode dizer tudo o que quer como se a sessão fosse propriedade privada. A falta de pontualidade, neste sentido alargado, é uma alarvice intelectual e é um desrespeito por toda a gente. Pode ser uma pessoa muito "respeitável", mas para mim fica desqualificada.

6. Na sessão de encerramento, uma intervenção destacada de Pilar del Rio. A que propósito? É pessoa que alguma vez tenha tido posição na discussão da política portuguesa ou europeia? Nem sequer é promotora da iniciativa do CDA. Será porque a Fundação Saramago deu dinheiro para o congresso? Mau sinal.

O Congresso Democrático das Alternativas (III)


Um pouco à margem da série anterior de entradas, e não relacionado diretamente com o que se passou no CDA, vou para uma de carácter mais geral, mas relacionada com o que escrevi sobre a dificuldade de importantes iniciativas, como o CDA, em vencer os bloqueios à unidade de esquerda.

Para muitos dos meus leitores, da minha geração, o que vou escrever são banalidades. Mas lembro-me daqueles que, como disseram no CDA, já são filhos de abril, como os meus filhos.

A análise das divergências profundas entre os partidos de esquerda, sendo eles três, PCP, BE e PS, não é integralizável. É forçosamente parcelar, dois a dois, embora a divergência PS-BE, moderna e conjuntural, me pareça difícil de analisar e não o vou fazer, porque me parece limitar-se ao quadro imediatamente tático da política partidária.

A mais antiga e profunda é a enorme divergência, com efeitos psicológicos, entre PCP e PS. Tem raízes muito fundas e antigas. Não se esqueça que Mário Soares foi comunista e que muitos dos seus companheiros andaram na órbita do PCP ou em movimentos por ele muito influenciados (ou controlados), como o MUD juvenil. Aceitando que me acusem de esquematismo, mas para não me alongar, direi que o conflito vem principalmente de uma grande tensão, no PCP, entre uma visão leninista de partido da classe operária (a que o próprio Cunhal, intelectual, se mimetizou) e a dificuldade de lidar com uma burguesia intelectual, “sem espírito de classe”, na fase das frentes de esquerda e populares. O caso Fogaça é sintomático.

Depois, a guerra fria veio romper a aliança antifascista e de frente popular, à francesa, da década anterior. O titismo, os processos de repressão na Hungria e na Checoslováquia, abriram brechas nunca mais reparadas na frente democrática de esquerda portuguesa. A campanha de Delgado foi um cessar fogo, mas que acabou por ser gravemente perturbado pela ilusão socialista com Marcelo, de que resultou a triste divisão de candidaturas em 1969. O Congresso de Aveiro e algumas iniciativas unitárias posteriores uniram outra vez a esquerda, bem como o envolvimento comum, que conheço bem, de gente de ambos os lados, a nível individual, na ajuda aos militares de abril.

Depois do 25 de abril, a princípio tudo bem, mas depois foi tal luta, tal antagonismo até pessoal e entre amigos, tantos insultos, que demorarão gerações a serem esquecidos. Também a noção de traição à revolução de abril, uns a verem-na como traição ao processo socializante em claro andamento vitorioso, outros a verem-na como traição às regras da democracia formal com que fizeram a sua cultura política. Pior, os compromissos assumidos, por uma e outra parte, com poderes estrangeiros, mesmo com serviços secretos execráveis e amorais. Pior também, a divisão do movimento sindical. E, conclusão ainda hoje nas bocas do mundo, “eles nunca se entenderão”. Mais, “são todos políticos, só querem saber dos partidos e dos seus interesses, das suas guerras, estão-se nas tintas para o país”. E muito mais.

Diferente é o caso da divisão PCP-BE, mais recente na prática, mas afinal com velhas raízes hoje patéticas na história do movimento socialista/comunista. O PCP tem uma velha história e passou por todas as fases do movimento socialista. Ficou marcado por uma personagem de enorme qualidade mas muito contraditória e problemática, o que não vou agora discutir. Cunhal tinha qualidade para ter sido outro Gramsci, ficou tolhido por dever religioso de devoção, a que submeteu a sua grandeza. 

Com a derrota do projeto revolucionário pós-11 de março, em consequência do 25 de novembro, o PCP ficou na defensiva (valeu-lhe a célebre declaração de Melo Antunes nessa noite), enquistou-se. Sofreu os efeitos do desmoronamento do mundo soviético mas não teve uma atitude pró-ativa e sofreu saídas após saídas, cada vez mais se refugiando na segurança do seu núcleo duro fiel.

No entanto, esta história das saídas é muito complexa e com significados muito diferentes. Posso distinguir pelo menos três fases. A primeira é indefinida, começa logo no princípio dos anos 80. É a minha, a quem tinha sido prometido, a seguir à revolução, um processo de discussão da democracia socialista que nos tinha feito sair do PCP depois da invasão de Praga, discussão que nunca aconteceu e agravada por também não se ter feito a autocrítica de muitas coisas do “verão quente”. O problema desta cisão é de ter sido feita aos poucos, individualmente - mesmo que muitos - e por pessoas, como eu, não mediáticas. Cada um foi à sua vida. Pessoalmente, só voltei a ter ação política no MDP, quando ele se libertou da tutela comunista. Um grande abraço, José Tengarrinha!

Depois, segunda fase, foi o movimento após o golpe da URSS, de 1991. Viu-se o que deu. Tenho dificuldade pessoal em escrever resumidamente sobre isto - daria um livro - porque, em nome da comissão política do MDP, tive numerosas reuniões com toda esta gente, e tenho memória de elefante (por isto, aqui fica, dessa experiência, a minha homenagem a José Barros Moura, e não digo mais). Reuniões com Pina Moura, Barros Moura, Judas, Mário Lino, outros. Muitos passaram para o PS, estão hoje bem instalados. Outro grupo, liderado por Miguel Portas, desafiou-nos a comprar o MDP e ganharam. Contra o meu voto, mas que seria diferente hoje, depois de tudo o que aprendi. Fizeram a Política XXI, entraram no BE. Levaram uma máquina eficaz e um bom património financeiro. Sem isto não se faz um partido e escreverei mais tarde sobre isto.

Pertence a este grupo (P XXI) o candidato a liderança ou co-liderança, João Semedo. Conheço-o mal, de velhos tempos, mas é um homem que me parece ter uma forte afetividade sincera (médico do meu tempo!…), uma sensatez política, uma saúde de carácter e uma honestidade intelectual que me auguram uma era BE radicalmente pós-Louçã. Seja ou não ele acompanhado por uma jovem que não conheço, espero que eficiente em termos de imagem. O português eleitor não vota em matronas como a Merkel (ia falar de uma matrona local, mas cala-te boca!).

Outras cisões posteriores, mais ou menos ignotas, descredibilizadas pelo seu carácter de coisas tardias e com sentido gasto, não deram nada, a não ser um movimento, talvez mais um grupo de amigos, também meus, por quem tenho muita simpatia pessoal, a “Renovação Comunista”.

Mas será que tudo isto é relevante para um conflito PCP-BE? Sim, até por razões paroquiais. No movimento comunista, as discussões ideológicas sempre foram muito importantes, entre estalinistas e trotsquistas (o que até meteu assassinatos com picador de gelo), entre moscovistas e maoistas, depois também com eurocomunistas. Faz parte da sua cultura. Eu, então comunista, sei como fui criticado por ter ido a tribunal plenário defender um amigo maoista.

Depois, na prática, porque ambos competem por um eleitorado militante, convicto, não a massa flutuante, centrista, do eleitorado do PS. Pior, tentam atrair eleitorados diferentes nesse conjunto largo de esquerda consequente. O PCP ancorado no operariado e funcionalismo tradicional, o BE nas camadas mais jovens, mais abertas a novas causas.

Dito tudo isto, algumas conclusões.

1. Só uma revolução é que obrigará os partidos a uma inflexão - até muito dolorosa para eles - no sentido da unidade. Não virá a tempo para as próximas eleições, principalmente se antecipadas para curto prazo.

2. Esta situação só será influenciada pela dinâmica da movimentação política não convencional. Os partidos têm uma fortíssima cultura de sobrevivência. A rua, os movimentos sociais - critique-se ou não alguma infantilidade ou tolice de alguns, até a sua permeação a provocadores - vão condicioná-los, a menos que já tenham entrado em demência de situação estabelecida.

3. Mas também é verdade que ainda milhões de eleitores não compreendem a dialética do processo histórico, querem uma alternativa a curto prazo. Muitos votaram antes no PS, depois no PSD e, nas próximas eleições, perguntam-se sobre o que é diferente ter votado Sócrates, depois Passos Coelho, agora Seguro.

4. Poucos poderão considerar mudar o seu voto centrão para a esquerda radical. Veem-na como simples contestação, não como uma alternativa de poder. Ainda por cima, dividida. Sem propostas claras. Com propaganda acalorada que irrita o homem comum e o deixa perplexo com a ideia de afinal estar a ser manipulado por todos. 

5. Não há solução política que não pense muito a sério no Zé Povinho. Ele não é só o eleitor. É também aquele homem estranho que se acomoda, que se verga, mas que também faz patuleias.

6. Há todo um movimento convergente de rua, de iniciativas dispersas, de algumas com muito impacto. Mas como traduzir isto, em tempo adequado, numa oferta imediata de alternativa eleitoral? Honestamente, não tenho resposta para isto.

NOTADisse no início que esta entrada não tinha a ver diretamente com o CDA. É verdade que eu e muitos tentámos evitar nas nossas intervenções a discussão das divergências de esquerda, que podia inquinar o espírito de abertura do congresso. Mas também é verdade que alguns jovens salutarmente intempestivos resolveram ir dizer coisas verdadeiras, agarrando os bois pelos cornos. Deu-me gozo. Bem hajam!