sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Recordando o MDP/CDE (3)

Fora alguns casos individuais, os dissidentes do PCP depois da tentativa do golpe de Moscovo, em 1991, constituiu-se num movimento informal, a Plataforma de Esquerda. Em breve, houve uma cisão de facto entre uma corrente, personificada por Pina Moura, que advogava a aproximação ao PS (partido a que muitos acabaram por aderir), enquanto que outros, com realce para Miguel Portas e o grupo do Manifesto, se opuseram a essa orientação. 
Em 1995, perante as dificuldades organizativas e financeiras do MDP/CDE, não obstante a valia da sua reordenação pós-rotura da APU, o grupo do Manifesto inscreveu-se em massa no MDP e, na prática, passou a controlar o partido, com a concordância legítima da maioria dos militantes do MDP/CDE. Essa “OPA” permitiu ao grupo aderente ao MDP/CDE usar o registo partidário do MDP, transformado no Política XXI, um dos três pequenos partidos que viriam a constituir o Bloco de Esquerda. 
Entretanto, uma minoria de dirigentes do MDP/CDE, entre os quais José Tengarrinha, Mário Casquilho e eu, deixa o MDP/CDE e ainda tenta constituir, sem sucesso, uma associação política. O texto que se segue é a declaração de constituição da Associação MDP, reafirmando muitas das posições aprovadas no VII Congresso de 1992. 
(NOTA – Numa troca de comentários entre Vítor Dias e eu emerge, em relação a este caso, a questão agora em foco do “partido envelope”. Para não fazer pesar excessivamente esta entrada, deixarei isso para a próxima)
CONSTITUIÇÃO DA ASSOCIAÇÃO POLÍTICA MDP

A — Os signatários decidem constituir-se em associação política não partidária, de reflexão e intervenção cívica, na base da identidade ideológica e da prática que fundamentam as suas ligações no seio do MDP, enquanto realidade política e humana.

B — A Asociação, integrada inicialmente por militantes e simpatizantes do MDP, está aberta a todas as pessoas que se identificam com os seus objectivos.

C — A Associação MDP tem neste momento natureza informal, mas tenderá a institucionalizar-se legalmente, na altura em que a assembleia plenária dos seus aderentes entender que tal se justifica.

D — Os signatários consideram que a Associação é detentora do património político resultante das posições e intervenções políticas do partido MDP e da participação deste, individualmente ou em associação com outras entidades, em iniciativas de reforço da cidadania em Portugal e em iniciativas e organizações internacionais, nomeadamente nas suas relações com os movimentos ecologistas e ecossocialistas europeus. Essas posições e intervenções têm sido pautadas pelos seguintes princípios:

1. Um conceito aberto sobre a Esquerda, não condicionado pelas compartimentações ideológicas tradicionais. Entendemos a Esquerda de hoje como um largo leque de forças e movimentações sociais (nomeadamente socialistas de várias tendências, ecologistas, progressistas de inspiração cristã) que convergem para a luta continuada por profundas transformações sociais.

2. A valorização da diversidade da Esquerda, entendendo-se que a verdadeira estabilidade política é uma estabilidade dinâmica, feita de consensos e aproximações entre perspectivas plurais, entre múltiplas opiniões organizadas.

3. A contribuição para a ultrapassagem do bloqueio da Esquerda, causado pela dificuldade de diálogo e aproximação prática dos seus partidos, e também pela falta de resposta a um novo quadro de perplexidades e interrogações, de novas motivações na intervenção cívica e social. Este bloqueio enfraquece a capacidade mobilizadora da Esquerda, no seu conjunto, em contraste com a convergência de facto da Direita.

4. A consciência do desafio colocado pelo facto de o sistema capitalista estar longe de uma qualquer crise final e se mostrar ainda capaz de se adaptar a novas condições técnicas, sociais e económicas, como os problemas energéticos, os efeitos da electrónica, da informática, da automação, da produção científica, a mundialização do mercado e das interdependências económicas, bem como a facilidade das comunicações. Todavia, essa capacidade de adaptação assenta na marginalização de extractos sociais como os desempregados, os emigrantes, os jovens e os idosos, na chamada “sociedade de dois terços”, condição de estabilidade do sistema. Mas condição precária, porque em crise económica ou alteração brusca do sistema o estrato inferior amplia-se de forma a pôr em perigo os “dois terços”, que se enquistam e mais marginalizam os excluídos, com extremar das tensões sociais .

5. A caracterização da Esquerda, por estas razões, como continuando a ser, no fundamental, a luta contra a discriminação das camadas sociais marginalizadas e excluídas, a luta contra a distribuição socialmente injusta da riqueza, a luta contra a exploração e atraso forçado da maioria dos povos, a luta contra o obscurantismo e a alienação, a luta contra a competição selvagem.

6. A necessidade de colocar em termos novos os objectivos e as vias dessa luta. A Esquerda não mostra ainda um esforço consequente para a procura de um novo quadro global e coerente de referências ideológicas que dêem resposta à ofensiva ideológica liberal e às ridículas teses do “fim da história”. Pode-se mesmo pensar que sectores tradicionais da Esquerda não só não procuram um novo projecto como até pensam que não o procurar é condição do seu êxito eleitoral. Mantendo-se como simples alternante do poder, ela está condenada, como até agora, a ser chamada a governar em época de constrições económicas, sendo depois penalizada. Será este o resultado inevitável se tentar gerir a crise económica com as receitas liberais, mas com margem técnica reduzida, porque limitada pelo seu eleitorado que não lhe permite os custos sociais daquelas soluções.

7. A necessidade de uma reflexão sobre as raízes psico-sociológicas do sucesso (até agora) do “cavaquismo” e da simpatia primária por um discurso de sucesso e crescimento económico, com o aparecimento de uma mentalidade nova-rica, culturalmente medíocre, egoísta e agressiva, e desligada do sentido da solidariedade, factor de suporte, no plano político, da arrogância e falta de diálogo democrático, do comportamento de partido único, da menorização da cidadania efectiva.

8. A verificação de um conjunto de profundas mutações sofridas pelas sociedades industriais desenvolvidas, com importantes reflexos nas sociedades intermédias e periféricas, de tal forma que a resolução de problemas típicos de subdesenvolvimento de uma fase anterior já só é possível se simultaneamente atender à crise social: desumanização das cidades, estiolamento da vida rural, alienação da juventude, isolamento da vida individual, perda de relações familiares e gregárias, uniformização massificadora dos lazeres. 

9. Nesta perspectiva, um conceito de desenvolvimento que ultrapassa a visão economicista do desenvolvimento, centrada no crescimento económico, na industrialização e na urbanização intensiva. O verdadeiro desenvolvimento é um desenvolvimento socio-económico e cultural integrado, visando um bem-estar individual e social avaliado tanto em termos de riqueza material como de qualidade de vida. É um desenvolvimento que preserva o equilíbrio ecológico, que não acentua, antes diminui, as clivagens sociais, que aproxima a cidade e o campo, que valoriza os recursos endógenos.

10. A defesa da presença da propriedade colectiva e do planeamento democrático na organização económica da sociedade, mas apenas no grau necessário à viabilização das escolhas estratégicas assumidas livre e participadamente pela sociedade. Assim, não há contradição essencial com o papel do mercado, como mecanismo regulador e como factor de satisfação das necessidades de consumo, não sendo legítimo considerar o mercado como sinónimo absoluto e exclusivo da economia capitalista.

11. A certeza de que as acções políticas de âmbito nacional não se podem desligar da percepção das grandes questões planetárias transversais aos sistemas económico-sociais, como a insegurança, as guerras e o armamento, os atentados contra a natureza, a gestão perdulária de recursos naturais esgotáveis, a desertificação e fome em largas faixas do globo, as novas pandemias, a droga e outros flagelos sociais, os problemas éticos postos pelos avanços técnicos.

12. A verificação de que, perante todas estas alterações profundas do quadro político e social, as formas e os mecanismos institucionais adoptados há mais de um século (designadamente o sistema partidário) se mostram hoje, por si sós, cada vez mais ineficazes. Ao mesmo tempo, revelam uma dificuldade crescente de serem veículos e centros de acolhimento das aspirações sociais, acentuando a sua opacidade.

13. A convicção de que os movimentos sociais, as lutas temáticas ou transversais e variadas formas de associações políticas serão cada vez mais terreno de  geração de novas perspectivas concretas de dinâmica social. Sendo necessária esta “ascensão do social ao político”, é indispensável que o sistema institucional não a obstrua. Os novos caminhos de aprofundamento da democracia serão experimentais, vindos do auto-laboratório social, e por isso não são pré-definíveis pelo ordenamento constitucional e jurídico as formas concretas daquela ascensão ou o papel a desempenhar pelas organizações políticas não partidárias. Mas é necessário que o sistema mostre capacidade de recepção a novas formas organizativas da reflexão e acção política, lhes dê à partida cobertura institucional e lhes faculte meios de funcionamento.

E — A Associação usará o símbolo tradicional do MDP.

Lisboa, 6 de Março de 1995

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O que quer a Alemanha?

O Bundesbank, o Buba (banco central alemão) propôs que os países que entrarem em dificuldade financeira ou com risco de insolvência, antes de serem abrangidos por resgates europeus, devem começar por aplicar uma taxa interna sobre o património dos seus cidadãos (one-off tax). É a generalização da regra imposta a Chipre, de taxação dos depositantes dos bancos (“bail in”).

Referindo-se a isto, Yanis Varoufakis interroga-se se essa gente não é idiota e não ignoram o que seria somar uma corrida aos bancos à crise do euro. Não sendo idiotas, acha YV que a atitude do Buba, assim como a queixa do seu presidente ao tribunal constitucional alemão sobre a política de Draghi de “salvação do euro”, podem significar uma vontade assumida de reengenharia do espaço do euro, para sua circunscrição à Europa central e do norte, o que também significaria um enorme afluo a essa zona de capitais do sul em fuga dos seus bancos.

Mas também há outras formas de ver essa “idiotice”, aliás cumulativas. Por um lado, assim como Gaspar era tudo menos estúpido e académico ignorante, essa centena de econocratas sentados em Bruxelas/Francoforte/Berlim que hoje dominam a Europa têm um umbigo do tamanho do Terreiro do Paço e tudo fazem para não admitirem um erro, mesmo quando isso obrigue a desonestidades intelectuais e, pior, sacrifício das pessoas e das riquezas nacionais. Com a cumplicidade interessada dos gauleiters “nacionais”, estão prontos a gastarem rios de dinheiro para que os seus programas sejam um sucesso.

Por outro lado, estão a obedecer a uma agenda ideológica, que pode exigir alguma destruição dos alicerces da construção europeia, feita numa fase inicial da hegemonia do neoliberalismo. Pode custar dinheiro e abalar o sistema financeiro, mas será para essa gente o preço útil a pagar pela destruição definitiva do para eles odiado estado do bem-estar e da justiça social (mesmo que justiça ainda longe das aspirações populares). 

Neste sentido, a sua política de austeridade só falha em termos de racionalidade económica, não de cumprimento de um objectivo político bem definido e estrategicamente desenhado.

(Na foto, Jens Weidemann, ex-conselheiro de Merkel, "jovem génio" dos top econocratas e hoje presidente do Buba)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Revendo erros

Quando aqui publiquei a minha (com José M. Tengarrinha) proposta de Declaração de princípios do MDP/CDE renovado, em 1992, escrevi (imodestamente) que me parecia um documento importante por, infelizmente, ainda ser muito actual. Por outro lado, o partido estava adiantado na percepção de grandes mudanças sociais com impacto político, que passavam a léguas de distância dos discursos partidários. Apenas no meio académico se começava por essa época a analisá-las, como no livro de Boaventura Sousa Santos, “Pela Mão de Alice”, publicado com muito sucesso um pouco depois (1994).

Não obstante, e como nem tudo podia ser previsível, há coisas nesse texto que hoje não subscreveria. Dou alguns exemplos mais importantes, não para me desculpar mas para mostrar – passe a lapalissada – como é preciso estarmos sempre abertos à mudança, a questionar construções mentais aparentemente muito sólidas.

1. O PS

Caímos numa certa expectativa ingénua em relação às perspectivas de diálogo com o PS (hoje diz-se convergência…). Desejávamos que fosse um contributo do MDP/CDE para o desenquistamento das relações entre o PCP e o PS (não havia ainda o BE), que limitavam a acção popular contra a direita (a maioria cavaquista). Devo também admitir honestamente que podia haver em muitos companheiros do MDP/CDE algum ressentimento contra o PCP, por erros sectários do maior partido da coligação APU. Era natural um certo subjectivismo na consequente atitude de expectativa em relação a uma diferença de relações com o PS, reforçado pelas críticas ao PCP por ex-comunistas que, em 1987, viram no MDP/CDE renovado uma oportunidade de viver o que não tinham encontrado no PCP.

Leia-se, como exemplo dessa atitude em relação ao PS: “O PS, por seu lado, é visto pragmaticamente por muitas pessoas independentes de Esquerda como a alternativa eleitoral conjuntural mais viável. Mas continua a sofrer de vícios internos de funcionamento e de uma imagem de cedências no passado que não permitem a adesão fácil de muitos sectores de Esquerda actualmente não organizados, não obstante apreciáveis alterações introduzidas pela sua Direcção dos últimos anos.”

Por um lado, a Declaração não punha sequer em causa a caracterização do PS como partido de esquerda. Estava ainda presente uma geração de socialistas com passado antifascista (o que, em boa verdade, não significava obrigatoriamente esquerda) e havia a ilusão de ver concretizada a aliança com um PS “verdadeiro partido de esquerda”, apoiado por muitos militantes que beneficiavam dessa visão de fora, distinguindo-os de dirigentes “com cedências”. Por outro lado, esses foram, conjunturalmente, anos de expectativa na mudança, como escrevemos – “Direcção dos últimos anos”. Como se lembrarão, estava então bem viva a experiência promissora da candidatura comum à câmara de Lisboa, encabeçada por Jorge Sampaio, então secretário-geral do PS.

Em segundo lugar, ainda não era então tão manifesta a deriva do PS, e ainda mais de outros partidos da Internacional Socialista, para posições de social-liberalismo, quando não de uma terceira via blairiana que assimilava o essencial da ideologia neoliberal, apenas expurgada das formulações mais escandalosamente lesivas do emblemático papel do estado social.

Mais ainda, a já aparente ofensiva neoliberal com aprisionamento dos partidos socialistas/sociais-democratas não tinha ainda a gravidade de hoje, em que se imbricou com a crise económica e financeira para impor uma doutrina única de austeridade.

Por tudo isto, em minha opinião – como tantas vezes tenho manifestado neste blogue – algum idealismo “convergencionista” hoje reinante à esquerda precisa de ser ponderado. Como agora estou a autocriticar-me por posições de há 22 anos, creio que não falo com ligeireza e só agora pensando nisto.

2. O salto dialéctico
"A rigidez ideológica de quase um século era tranquilizadora, na medida em que gerava um sistema de tensão estável com fácil identificação e arrumação esquemática de ideias e propostas políticas. Todas as questões se colocavam em função de antinomias estabelecidas: a dicotomia capital-trabalho a nível nacional, a dicotomia leste-oeste a nível mundial. A guerra fria, com o seu espectro de cataclismo nuclear, consolidava todas as visões bipolares e desculpabilizava as atitudes redutoras. Esta construção ruíu definitivamente. Estamos agora num momento de reexame de todas as ideias, numa época de análise que precede forçosamente uma futura época de novas sínteses. Nestas condições, a seriedade de qualquer proposta política só se pode medir pela flexibilidade com que procurar ajustar-se a este quadro de mudança e reavaliação, não por certezas falsamente tranquilizantes que são hoje um logro histórico e conduzem a becos teóricos sem saída."
No essencial, continuo a concordar com esta apreciação. Creio que aumentou mesmo o grau de complexidade da vida política e económica; que não pode haver lugar para visões reducionistas ou mecanicistas e que a dialéctica da história actual não se compadece inteiramente com as antigas antinomias. 
Mas escrevo “não (…) inteiramente”. Por um lado, o colapso do mundo do “socialismo real” não conduziu a nenhum fim da história e criou novas contradições, as menores das quais não serão a inesperada entrada no sistema mundial capitalista da Rússia e da China, com potencial económico e demográfico a afectar todo o quadro da economia mundial. Também, com esses países, o peso dos outros emergentes. Tudo isto num quadro de globalização e hegemonismo unipolar, a acentuar a importância do conflito Norte-Sul, a que talvez não tenhamos dado o devido relevo da Declaração.

Agora o que mais essencialmente me parece errado, a posteriori, é a afirmação de que a dicotomia capital-trabalho poderia estar a colocar-se de forma nova. É verdade que se estava a viver um mito de “capitalismo popular” e um certo emburguesamento de concepções e valores de camadas populares em ascensão sócio-económica. Nos dez anos que se seguiram, aumentou a parte do trabalho no rendimento nacional e criaram-se novos hábitos de consumo e padrões de ostentação. 

Esta osmose social foi ilusória, porque, de facto, como então já tínhamos falado de “sociedades de dois terços”, a última década, principalmente depois da crise, ficou marcada por novo fosso entre as “cem famílias” e os trabalhadores, com queda de alguma classe média para níveis de carência económica de que aparentemente já tinham saído. Por outro lado, com a atracção servil em relação ao grande capital de camadas importantes de quadros, mesmo jovens, e de agentes da hegemonia cultural e ideológica. A contradição capital-trabalho não se atenuou. A crise actual mostra bem como ela se agravou. No caso europeu, basta ver o que significa a “desvalorização interna”, a favor da manutenção ou reforço dos rendimentos do capital, confundidos com o interesse nacional.

3. Crise do capitalismo?
“O capitalismo está longe de uma qualquer crise final, e tem-se mostrado ainda capaz de dar suporte a adaptações técnicas, sociais e económicas. O actual sistema de sociedade industrial tem conseguido ajustar-se a novas condições de ordem técnica e económica, de que avultam o custo da energia e as possibilidades de fontes alternativas, os efeitos da electrónica, da informática, da automação, da produção científica. A mundialização do mercado e das interdependências económicas, bem como a facilidade das comunicações, são também, obviamente, factores determinantes na evolução do capitalismo moderno. Da mesma forma, observam-se já alterações na organização e funcionamento empresarial que conduzirão provavelmente a alterações significativas do sistema económico: a normalização está a dar lugar á diversidade, a especialização laboral à polivalência integradora, a concentração à descentralização empresarial e à relativa autonomização das unidades sectoriais, o gigantismo convive mais racionalmente com a valorização das pequenas e médias empresas modernas e competitivas.”
Parece-me haver alguma tecno-utopia nesta análise. Era a época das perspectivas futuristas de revolução tecnológica do trabalho, à moda de Toffler e da sua Terceira Vaga (não a de Blair/Giddens). A organização e lógica de funcionamento das empresas influenciadas pelas novas tecnologias mantiveram-se excepcionais e, num país de desenvolvimento de nível não superior, se assim podemos dizer de Portugal, só é assinalável em pequeno número de empresas, quase nunca de pequena e média dimensão. 

Para a grande maioria dos trabalhadores o trabalho manteve-se penoso e desinteressante, agravado pelo seu carácter precário. E que “admirável mundo novo” do trabalho é esse em que boa proporção dos jovens saídos da universidade só consegue trabalhar como caixa de supermercado ou coisa semelhante?

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Recordando o MDP/CDE (2)

Como prometido, começo a publicação de alguns documentos do MDP/CDE. Não vou seguir a ordem cronológica, preferindo começar por esta declaração de princípios de 1992, que consagra de forma muito sólida as elaborações ideológicas e políticas do MDP/CDE desde a reafirmação da sua identidade própria, em 1987, e documentos e estudos que irei publicando, nomeadamente as posições aprovadas no VI Congresso, em 1990. A declaração é também um retrato que considero muito original para a época das grandes mudanças sociais, culturais e dos sistemas de trabalho que estavam a desafiar uma esquerda a deixar-se cristalizar.

Julgo que o essencial do que se segue permanece actual. Talvez houvesse era que considerar hoje com mais cuidado algumas questões que então não se punham tão agudamente, como a hegemonia do neoliberalismo e das políticas de austeridade (embora em pleno reagan-thatcherismo), a financeirização da economia, a mediocridade carreirista da nossa nova “classe política”, a deriva direitista acentuada da social-democracia (embora já se desenhasse a terceira via blairista). Por outro lado, assumia grande importância a recente implosão do sistema soviético, a reflectir-se na área comunista portuguesa. Ambos os factores contribuíram para marcar muito esta moção, no que se refere à análise da situação política e perspectivas de actuação. Sendo mais rigoroso, algumas referências ambíguas a socialismo democrático e alguma demasiada condescendência para com o "centro-esquerda" ou o socialismo personificado pela PS não teriam hoje a minha total concordância.

Declaração de Princípios do VII Congresso do MDP/CDE

PARA A RENOVAÇÃO DA ESQUERDA

O MDP/CDE tem sido portador de um projecto político e de um ideário que não só não foram postos em causa pelas convulsões políticas e ideológicas dos últimos anos como até anteciparam muitas das ideias e valores que a Esquerda está hoje a reelaborar.

O projecto de sociedade que o MDP/CDE defende assenta, na sua essência, em princípios básicos hoje com crescente aceitação:
  • O respeito pela democracia e pela liberdade como valores absolutos.
  • A valorização dos interesses e aspirações individuais.
  • A defesa abrangente dos Direitos do Homem, com defesa efectiva do “direito à diferença”, dos direitos das mulheres, das minorias étnicas, religiosas, filosóficas e sexuais.
  • A valorização da cidadania plena e da democracia participada, que não se esgotam nos mecanismos da democracia formal e representativa.
  • A valorização do conteúdo ético e cultural da vida social e política.
  • A solidariedade social, a distribuição socialmente justa da riqueza nacional, a igualdade de oportunidades, a independência do poder político em relação ao poder económico.
  • O respeito pela propriedade e o estímulo da iniciativa, no quadro de um planeamento democrático das estratégias económicas e sociais, deixando ao mercado a regulação da oferta e dos preços em tudo o que transcenda esses limites estratégicos.
  • A defesa dos trabalhadores, num quadro alargado de solidariedade e cooperação de forças sociais, correspondente à actual diversidade e complexidade do mundo laboral.

A força destes princípios e do ideário do MDP/CDE não se traduz, porém, na força do MDP/CDE como partido. Por razões tanto próprias como alheias, o MDP/CDE foi-se reduzindo em capacidade de intervenção e em significado eleitoral, a um ponto que já prejudica a imagem e impacto do próprio projecto político. Como um partido é sempre um meio e não um fim político em si, o prosseguimento e aprofundamento, em outros moldes, da luta pelo ideário que o MDP/CDE partilha com muitas pessoas de progresso e de Esquerda exigem hoje novas formas de intervenção e de organização, mais eficazes e mais adequadas à realidade do MDP/CDE e da vida política portuguesa.

A reconversão do partido, que pode ir até à sua substituição “de facto” por uma nova forma de organização, não é sinal de derrota ou desânimo. É uma atitude de coragem política de quem preza mais os princípios e os valores por que luta que o espírito e fidelidade partidários.

Um novo quadro de pensamento e acção da esquerda

Designamos o nosso conjunto de princípios e objectivos políticos como democracia socialista, embora conscientes de que a designação socialista se presta hoje a equívocos. Não podemos hoje entender o socialismo como um sistema socio-económico predefinido e decorrente logicamente de um sistema ideológico bem delimitado. Não está no horizonte visível a precisão dos mecanismos de um novo sistema económico. É inegável, por exemplo, que, desacreditado o modelo baseado na propriedade estatal, no planeamento central e na fixação administrativa de preços e objectivos de produção, não se vê ainda alternativa para o lucro como motor da economia, nem alternativa para o mercado como mecanismo regulador da produção e dos preços e como factor da satisfação das necessidades de consumo.

Os objectivos históricos socialistas são referenciais para a luta continuada por profundas transformações sociais libertadoras, luta que mescla e ultrapassa as compartimentações ideológicas tradicionais ou as formulações de sistemas. Na nossa época, converge para esta luta um largo leque de forças e movimentações sociais que não se reconhecem obrigatoriamente nos quadros de referência tradicionais. Entendemos este largo e difuso movimento como a Esquerda de hoje, envolvendo sectores tão diversos (mas também hoje tão próximos) como socialistas de várias tendências, ecologistas, progressistas de inspiração cristã.

As principais formulações ideológicas que chegaram até nós são a herança de um período social e histórico já ultrapassado pelas aceleradas mutações sociais que o mundo sofreu no último meio século. As coordenadas de referência do pensamento social e político sofreram deslocações que ainda não estão sistematizadas. Por isso, muitas pessoas sentem a contradição entre o carácter pontual das suas reacções espontâneas a uma rápida dinâmica social e o desejo natural de referenciais estáveis, ainda não adquiridos. Sentindo o desajustamento dos quadros teóricos tradicionais, as pessoas mobilizam-se crescentemente em torno de novos problemas abrangentes, como a defesa dos direitos humanos, da paz, do ambiente e da natureza, do património cultural, de interesses comunitários, problemas estes que, por serem transversais às categorias históricas e sociais tradicionais, permitem compensar, no dia a dia, a insatisfação perante a política tradicional.

A rigidez ideológica de quase um século era tranquilizadora, na medida em que gerava um sistema de tensão estável com fácil identificação e arrumação esquemática de ideias e propostas políticas. Todas as questões se colocavam em função de antinomias estabelecidas: a dicotomia capital-trabalho a nível nacional, a dicotomia leste-oeste a nível mundial. A guerra fria, com o seu espectro de cataclismo nuclear, consolidava todas as visões bipolares e desculpabilizava as atitudes redutoras. Esta construção ruíu definitivamente. Estamos agora num momento de reexame de todas as ideias, numa época de análise que precede forçosamente uma futura época de novas sínteses. Nestas condições, a seriedade de qualquer proposta política só se pode medir pela flexibilidade com que procurar ajustar-se a este quadro de mudança e reavaliação, não por certezas falsamente tranquilizantes que são hoje um logro histórico e conduzem a becos teóricos sem saída.

Por estas razões, um novo projecto de Esquerda não pode ultrapassar os limites precisos das contradições visíveis entre o sistema vigente e os princípios básicos por que combatemos. Por isso também, os princípios não podem ser formulados como um ideal utópico longínquo, mas sim como objectivos realizáveis, mediante lutas viáveis em tempos concretos. É na luta pela realização desses objectivos que se irá desenhando progressivamente o esboço da sociedade do futuro, esboço esse a corrigir constantemente pela imprevisível mutação social.

O capitalismo está longe de uma qualquer crise final, e tem-se mostrado ainda capaz de dar suporte a adaptações técnicas, sociais e económicas. O actual sistema de sociedade industrial tem conseguido ajustar-se a novas condições de ordem técnica e económica, de que avultam o custo da energia e as possibilidades de fontes alternativas, os efeitos da electrónica, da informática, da automação, da produção científica. A mundialização do mercado e das interdependências económicas, bem como a facilidade das comunicações, são também, obviamente, factores determinantes na evolução do capitalismo moderno. Da mesma forma, observam-se já alterações na organização e funcionamento empresarial que conduzirão provavelmente a alterações significativas do sistema económico: a normalização está a dar lugar á diversidade, a especialização laboral à polivalência integradora, a concentração à descentralização empresarial e à relativa autonomização das unidades sectoriais, o gigantismo convive mais racionalmente com a valorização das pequenas e médias empresas modernas e competitivas.

O sistema económico dominante tem, portanto, demonstrado uma apreciável capacidade de adaptação e, nos países mais desenvolvidos, pode continuar a garantir uma certa estabilidade política. Fa-lo-á, por um lado, pela tendência para as “sociedades de dois terços”, em que a maioria recolhe benefícios consideráveis do sistema à custa do estrato inferior (em que se incluem os imigrantes) conduzido para o indiferentismo e a abstenção. Fa-lo-á, por outro lado, aumentando a exploração do Terceiro Mundo, viciando a sua produção no sentido da monocultura e da exploração intensiva dos seus recursos naturais, para fazer funcionar por retorno a economia dos países desenvolvidos, e assim descaracterizando cultural e socialmente os povos do Terceiro Mundo. Apesar de toda a evolução registada no sistema vigente, o seu sucesso continua a ser baseado na exclusão de camadas e grupos das populações, embora já não obrigatoriamente em termos do conflito de classes e de exploração proletária característicos do capitalismo inicial.

Neste sentido, a luta política de Esquerda continua a ser, no fundamental, a luta contra a discriminação das camadas sociais marginalizadas e excluídas, a luta contra a distribuição desigual da riqueza, a luta contra a exploração e atraso forçado da maioria dos povos, a luta contra o obscurantismo e a alienação, a luta contra a competição selvagem.

Mas mesmo nos extractos sociais que hoje beneficiam da riqueza das sociedades industriais desenvolvidas emerge um novo tipo de problemas sociais que ainda não tiveram reflexo claro no pensamento de Esquerda e para os quais mesmo as formas mais avançadas da social-democracia não encontram solução.

As profundas mutações sofridas pelas sociedades industriais desenvolvidas, com importantes reflexos nas sociedades intermédias e sub-desenvolvidas, acumularam novos factores de crise. Criou-se riqueza, possibilitou-se um alto padrão de consumo, subiu o nível médio de educação e mundializou-se a comunicação e a informação. Mas diluiu-se a cidadania, enfraqueceu a privacidade, intensificaram-se em abstracto as interdependências sociais com perda das relações gregárias tradicionais (inclusivamente dos laços familiares).

A vida individual é mais autista, decorrendo entre o trabalho muitas vezes desinteressante e pouco criativo, a habitação em ambiente residencial descaracterizado e os lazeres massificados. A menor disponibilidade de tempo e atenção psicológica para a família isolam e vulnerabilizam os jovens. Os ritmos de vida acelerados e a competitividade agressiva geram crescente “stress” individual e social, com reflexos na expansão da criminalidade e na evasão alienante por via das drogas, do alcoolismo ou da adesão a múltiplos irracionalismos e seitas. O egoísmo, a competição e a insegurança conduzem, com outros factores, ao preocupante crescimento do racismo e da xenofobia.

A satisfação crescente das necessidades materiais não é acompanhada por um sentimento paralelo de felicidade humana e de alegria de vida, e essa “tristeza” de uma sociedade sem fraternidade e sem idealismo reflecte-se politicamente naquilo a que já se chamou de “melancolia da democracia”.

Portugal é um país com uma situação intermédia ou mista nesta tendência de evolução das sociedades. Vastas zonas do País e consideráveis camadas da população mesmo das zonas mais desenvolvidas vivem em atraso económico e cultural tal que os novos problemas sociais ainda não exigem uma revisão radical das linhas tradicionais de acção da Esquerda.

Mas ao mesmo tempo, e de forma mais evidente no eixo litoral, enxertou-se sobre este atraso uma formação social fortemente terciarizada, com acentuadas alterações de composição social, valores e aspirações, às quais é necessário que a Esquerda tente dar uma resposta actualizada.

O repetido sucesso eleitoral do actual Governo é em boa parte devido a uma política que tem procurado ir ao encontro destas alterações na sociedade portuguesa. A rápida transição de filhos de trabalhadores dos sectores tradicionais para novas actividades, principalmente de serviços, com melhores perspectivas, bem como as tensões e insatisfações causadas pela convivência, em meios urbanos apertados, das “duas sociedades”, geram permeabilidade ao “populismo do sucesso” em que assenta a actual política de direita. O eleitorado sensível às propostas mais tradicionais da Esquerda e a uma perspectiva clássica da defesa dos trabalhadores tem sofrido recentemente deslocações significativas que em grande parte ultrapassam a alternativa de Esquerda que o PS quer representar. Parte deste eleitorado mantém-se fiel às propostas comunistas mas outra parte tem ido engrossar directamente um eleitorado de direita que já não pode ser visto como um conjunto social coerente e homogéneo.

Ao contrário da tendência tradicional para interpretar redutoramente as motivações de voto em termos de interesses económicos e sociais, é necessário ter em conta factores psico-sociológicos complexos e dificilmente racionalizáveis. A osmose social e a convivência mediática com padrões de maior riqueza criaram aspirações e mitos que constituem fortes motivações para uma simpatia primária por um discurso de sucesso e crescimento económico. Por outro lado, a insegurança de vida e a complexidade e mobilidade da situação social arrastam as pessoas para o desejo de estabilidade e para a satisfação pessoal de se sentirem ligadas aos vencedores ou a figuras tutelares. Estes fenómenos verificam-se especialmente em situações de alguma estabilidade económica, em que os valores estabelecidos estão equilibrados. Este quadro pode alterar-se significativamente numa situação previsível, a curto prazo, de dificuldades económicas, como as que resultarão do impacto do Mercado Interno e da política de austeridade exigida pela convergência económica inerente à União Económica e Monetária.

O aparecimento de uma mentalidade nova-rica, culturalmente medíocre, egoísta e agressiva, e desligada do sentido da solidariedade é factor de suporte, no plano político, da arrogância e falta de diálogo democrático, do comportamento de partido único, da menorização da cidadania efectiva.

A resposta a dar a esta situação não pode ficar-se pela luta economicista tradicional. Tem que combater o esquema de valores que se está a instilar, com perversão da consciência social.

Nos países que mais agudamente sofrem os novos problemas do pseudo-desenvolvimento, e mesmo entre nós, começa a emergir, em franjas mais conscientes, o embrião de uma nova atitude de insatisfação e protesto. Deseja-se maior flexibilidade e variabilidade na vida individual, nos gostos e prazeres. Valoriza-se o contacto com a natureza, o ambiente saudável, as actividades criativas, o artesanato e a cultura tradicional não massificada. Deseja-se o efectivo controlo e participação nas tomadas de decisão, desde o campo profissional ao comunitário, ao da política de Estado. Aspira-se a maior “sentido da vida”, com reintegração harmónica das suas parcelas atomizadas (o estudo, o trabalho, a família, o lazer, a actividade cívica e política). Vislumbra-se um novo valor do “eu”, em harmonia com a sociedade, uma nova síntese da contradição entre o individual e o colectivo. No conjunto, estas atitudes visionam uma sociedade já não unidimensional mas desdobrada em múltiplas dimensões individuais.

No centro desta nova atitude social — e também no centro da luta contra o sistema — está a revisão da noção de progresso e de desenvolvimento. A concepção economicista do desenvolvimento, centrada no crescimento económico, na industrialização e na urbanização intensiva, é cada vez mais contestada e objectivamente posta em causa pela limitação dos recursos naturais e pelos danos ao ambiente.

O verdadeiro desenvolvimento é um desenvolvimento socio-económico e cultural integrado, visando um bem-estar individual e social avaliado tanto em termos de riqueza material como de qualidade de vida. É um desenvolvimento que não acentue, antes diminua, as clivagens sociais, que aproxime a cidade e o campo, que valorize os recursos endógenos.

A afirmação de um novo modelo de desenvolvimento é coincidente com a luta pela valorização do espírito comunitário, pela solidariedade, pela intervenção cívica efectiva, pela cidadania plena. É em torno destes objectivos e de uma visão humanista renovada da vida social e do desenvolvimento que cada vez mais convergem sectores diferenciados de Esquerda com pontos de partida diferentes.

A formulação de um novo projecto de Esquerda não pode também esquecer a teia crescente de interdependências, em particular as que decorrem da construção europeia. A viabilidade de novos projectos é decisivamente condicionada em cada país, e particularmente nos países economicamente mais frágeis, pela dinâmica global do progresso social europeu. Contra a via que, até agora, tem baseado a unidade europeia fundamentalmente nos interesses económicos e mercantis, reunem-se forças nos diversos países para uma alternativa que privilegie a dimensão social, cultural, ecológica e de cidadania europeia. A luta por uma sociedade mais democrática e progressista em Portugal é indissociável da participação da Esquerda portuguesa nesse esforço conjunto de renovação do projecto de união europeia.

Parte considerável das preocupações e acções políticas dirigem-se agora também para as grandes questões planetárias transversais aos sistemas económico-sociais, como a segurança, a paz e o desarmamento, a defesa da natureza, a gestão perdulária de recursos naturais esgotáveis, a desertificação e fome em largas faixas do globo, a droga e outros flagelos sociais, os problemas éticos postos pelos avanços técnicos. A importância acrescida que é dada a estes problemas vem chocar-se com a incapacidade de resposta dos partidos tradicionais a este novo quadro de pensamento e acção e reforçam o sentimento de falta de representação partidária por parte de grandes sectores das populações.

Caminhos para a renovação da esquerda

Perante este novo quadro de interrogações e perplexidades, mas também de novas e fecundas motivações, sente-se a necessidade de inovadoras formas orgânicas e funcionais de reforço da Esquerda. Conjugadas estas razões subjectivas com os evidentes factores objectivos de mudança social, pode mesmo dizer-se que a reformulação da Esquerda é uma “necessidade histórica”.

A reconversão do MDP/CDE tem sentido positivo se vier ao encontro dessa movimentação.

A renovação da Esquerda comporta, idealmente, a revisão da concepção, funcionamento e propostas políticas dos actuais partidos da Esquerda mas não pode ficar exclusivamente dependente dessa evolução. Passará provavelmente pela construção de uma nova organização de Esquerda, na qual convirjam as aspirações de renovação da Esquerda, e que será ela própria também factor de estímulo e desafio à reorientação dos actuais partidos.

A situação da Esquerda está relativamente bloqueada pela compreensível irredutibilidade de princípios entre os dois principais partidos. Este bloqueio enfraquece a capacidade mobilizadora da Esquerda, no seu conjunto, em contraste com a convergência da Direita.

O PCP defende um projecto de sociedade e tem um comportamento sistemático que são rejeitados pela maioria dos homens de Esquerda. Apesar disto, o PCP cristaliza um eleitorado considerável que não vê ainda alternativa para a defesa dos seus interesses imediatos ou que está fixado por um saudosismo romântico. É também um eleitorado que corre o risco desmobilizador de cada vez mais votar pela negativa, com um voto que é mais um voto de oposição do que um voto por uma alternativa de governo.

O PS, por seu lado, é visto pragmaticamente por muitas pessoas independentes de Esquerda como a alternativa eleitoral conjuntural mais viável. Mas continua a sofrer de vícios internos de funcionamento e de uma imagem de cedências no passado que não permitem a adesão fácil de muitos sectores de Esquerda actualmente não organizados, não obstante apreciáveis alterações introduzidas pela sua Direcção dos últimos anos.

A abstenção crescente à Esquerda é em grande parte sinal deste bloqueio. Só por si, ela já justifica a necessidade de uma nova opção de Esquerda.

Só é fácil a uniformidade na conservação dos interesses estabelecidos. Ela não é desejável nem possível nas propostas de futuro, na visão de Esquerda. A Esquerda enriquece-se com a diversidade. A verdadeira estabilidade política é uma estabilidade dinâmica, feita de consensos e aproximações entre perspectivas plurais, entre múltiplas opiniões organizadas.

O MDP/CDE não quer nem pode condicionar o perfil e conteúdo político de uma eventual nova organização de Esquerda, que resultarão da vontade de todos os interessados, em pé de igualdade. Consideramos, todavia, que é oportuno e útil avançar desde já algumas ideias para esse debate.

Em princípio, somos mais favoráveis, numa fase inicial, à constituição de um movimento político que de um partido. Em primeiro lugar, porque o impacto de um novo partido na opinião pública exige um mínimo de resultados da reflexão ainda por fazer e de propostas políticas coerentes, que melhor se irão desenvolvendo no âmbito de um movimento mais flexível e mais experimental e no decorrer da sua intervenção política e social.

Em segundo lugar, porque pensamos que o enriquecimento e desbloqueamento do actual quadro partidário e da cultura política portuguesa exige a criação de um partido com características do que tem sido designado como “partidos alternativos”, o que, segundo a experiência já adquirida, melhor se processa pela consagração partidária, em tempo próprio, de uma experiência movimentista. Os novos “partidos alternativos” que têm aparecido na Europa e noutros continentes têm correspondido a preocupações com grande eco na sociedade e, pela sua permeabilidade a novas experiências e aspirações sociais, têm permitido a emergência de ideias e perspectivas inovadoras. Embora tenham aparecido inicialmente como orientados para problemas sectoriais, têm vindo progressivamente a integrar essas preocupações parcelares num projecto, ainda em elaboração, de modificação radical do sistema social. Agarrando, para o questionar, um aspecto particular da realidade social (e podendo fazê-lo, embora, de forma redutora), acabam por questionar a sociedade no seu conjunto.

A noção de partido alternativo é todavia ainda ambígua e imprecisa. Há no entanto um conjunto de caracterizações parcelares da “alternatividade”, hoje marcantes para a reflexão sobre a construção de um partido moderno: a) ênfase na democracia participada, na vida comunitária, na discussão e tratamento dos problemas locais; b) empenho nos movimentos sociais; c) privilégio a um largo e difuso campo de acções de resposta a “novos problemas”, tais como a defesa de minorias, do ambiente, a luta anti-militarista, ou algumas formas de lutas feministas; d) maior flexibilidade na abordagem dos problemas políticos, mais liberta de rigidez e preconceitos ideológicos; e) um discurso centrado no quotidiano e na sociedade civil e menos na gestão do Estado; f) características organizativas de flexibilidade, com recusa de demasiada hierarquização e com negação da forma como os partidos tradicionais reproduzem no seu interior os vícios do aparelho do poder.

Ao defendermos, numa fase inicial, um movimento e não um partido, não estamos a pensar numa simples associação tradicional, mero forum de reflexão. Pensamos num movimento que, para além disto, seja principalmente um instrumento de eficaz intervenção cívica e política quotidiana.

Proporemos aos demais interessados que o movimento privilegie os campos de intervenção em que as novas realidades sociais mais desafiam a renovação da Esquerda. Por um lado, abordando com especial atenção as grandes questões estratégicas, nomeadamente as respeitantes à integração europeia e seus impactos, ou ao modelo de desenvolvimento. Por outro lado, dando ênfase à descentralização da acção política, em domínios como, por exemplo, os problemas locais (de associativismo comunitário, de desenvolvimento auto-sustentado, de defesa do ambiente e do património cultural), a intervenção social, sindical e educacional, a promoção da participação política das populações.

1992.01.12

Proponentes: João Vasconcelos Costa e José Manuel Tengarrinha
Aprovada por unanimidade e aclamação

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Recordando o MDP/CDE (1)

Dou por mim que já decorreram 27 anos desde 1987 (desculpem isto parecer uma afirmação à Thomaz almirante). É que aquele ano foi muito importante para mim, politicamente, e alguns dos jovens hoje na vida política ainda nem eram nascidos. Vou lembrar o MDP/CDE e como ele foi precursor em relação a tanto do que se discute hoje.

O interesse no “estudo de caso” do MDP vai mais longe, ultrapassando o partido. O quadro político social e institucional de hoje não é novo. Já então, a esquerda estava polarizada nos dois partidos implantados, PCP e PS, com insatisfação de um número crescente de pessoas a não se sentirem representadas. A incapacidade de entendimento entre os dois partidos era como hoje. A direita (então o cavaquismo) era dominante e por isso era largo o coro de vozes “entendam-se” dirigidos à esquerda (o termo convergência é que ainda não tinha entrado na moda).

Talvez os mais jovens ignorem que, depois das eleições de 1969, o movimento de oposição que concorreu unido (salvo três distritos em que os socialistas das CEUD concorreram sozinhos, com ilusões no marcelismo), MDP/CDE, manteve permanente acção política, emergindo logo no 25 de Abril como movimento unitário organizado, com grande implantação local e com papel de relevo na desfascistização das autarquias.

Nele participavam, com diversos movimentos, grupos e muitos membros sem partido, comunistas e socialistas, pouco antes aliados, em 1973. A seguir ao 25 de Abril, pretendendo afirmar-se como partido e provavelmente receando os preconceitos anticomunistas de camadas atrasadas do povo, os socialistas retiram-se do MDP e, para as eleições de 1975, para a constituinte, forçam-no a se transformar em partido, para poder concorrer. Também houve o outro lado da medalha, com muitos comunistas destacados a permanecerem no MDP, depois de ele passar a partido, comprometendo a sua imagem de independência em relação ao PCP.

Lembro-me bem da euforia irrealista que se vivia no PCP antes das eleições de 25 de Abril de 1975 e do balde de água fria que foi o resultado de 12%. Era não conhecer a realidade de um país rural, católico, tradicional, que emergiu na patuleia do verão quente. O mesmo em relação ao MDP, que se julgava, pela sua história na resistência antifascista, ir conseguir muito mais do que os 4% de votos que teve. Tudo isto conduziu a uma subalternizarão de facto face ao PCP e, em boa parte, a indiscutível dependência, pelo menos por parte de alguns sectores do MDP.

Segui com interesse o processo de afirmação do MDP e sua saída da coligação APU, depois substituída pela CDU, com os Verdes. Fui convidado a assistir a algumas reuniões muito interessantes, conversei com alguns dirigentes “secessionistas” – afinal estavam era a manter o MDP genuíno. Creio que os meus muitos amigos do MDOP não me levarão a mal que, lembrando-me deles, refira só um como sendo todos: José Manuel Tengarrinha. Pouco tempo depois filiei-me e julgo que tive algum relevo no processo de reconversão, infelizmente falhado. Era já tarde demais.

A extinção da APU, por parte do MDP, teve duas ordens de razões. Em primeiro lugar, para a grande maioria dos seus militantes de base, como tal activistas no terreno da APU, nas campanhas eleitorais e entre elas, era incompatível com uma sua tradicional humildade democrática e espírito unitário o sectarismo tão frequente dos seus companheiros comunistas. Mais em relação aos quadros, principalmente os que tinham larga vivência da luta antifascista e de esquerda, relevavam também questões de estratégia política e de ideologia. Mesmo muitos dos que eram verdadeiros simpatizantes do PCP não diferiram muito do que foram logo depois as vagas perestroikas de dissensões do PCP.

O que estava principalmente em causa eram questões essenciais de uma visão aberta da evolução da esquerda e do progresso social: 1. a discussão do visível falhanço do modelo socialista baseado na propriedade estatal, no planeamento central e na fixação político-administrativa dos preços. 2. A democracia participada e a valorização dos corpos intermédios, dos movimentos sociais e das iniciativas cidadãs. 3. A importância do compromisso entre os interesses sociais e os interesses e aspirações. 4. As mudanças aceleradas da estrutura social, dos hábitos e motivações, dos esquemas ideológicos, da consciência de classe. 5. As migrações e as alterações demográficas. 6. A constituição de uma frente política de progresso a acompanhar as novas mudanças sociais. 6. As movimentações em torno de causas transversais. 7. Etc. Toda esta discussão configurava o que se começava a designar como partidos alternativos, característica que o MDP assumiu, tendo sido reconhecido como tal pelo movimento europeu dos verdes e alternativos (com grande contestação pelo recém-criado partido Os Verdes).

As tensões internas geradas pela questão da dissolução da APU conduziram na cisão do próprio MDP. A grande maioria permaneceu, mas muitos dirigentes, próximos do PCP, abandonaram o M;DP, vindo a constituir a associação Intervenção Democrática (ID), hoje ignorada. Mais significativamente, deu-se o caso de alguns dirigentes bem conhecidos do MDP, que nele militavam já depois da legalização do PCP, terem aparecido como militantes do PCP logo após a cisão do MDP e, em alguns casos, aparecendo mesmo como funcionários políticos do PCP. É legítimo suspeitar-se da sua anterior lealdade ao MDP.

Ficam no MDP os que lhe reconheciam um projecto próprio, com independência e fortemente inspirado pelo espírito de abertura, diálogo e respeito que tinha sido construído na luta contra o fascismo. E a ele aderem ou com ele alinham um número significativo de pessoas, como eu, que estavam à margem da actividades partidária pelas razões que ora víamos o MDP fazer suas.

Alguns de nós, eu incluído, julgámos que a simpatia manifestada por muita gente pela reconfiguração do MDP e pela sua contribuição para um arejamento da esquerda se traduziria em votos, nas eleições seguintes, ainda em 1987. Foi uma desilusão, com menos de 1% de votos e sem se eleger qualquer deputado. A APU tinha "queimado" o MDP. A partir de então foi um lento enfraquecimento do partido, sem recursos financeiros e logísticos. Ainda hoje me lembro disto, quando defendo a criação de um novo partido, mas sabendo muito bem como é coisa bem difícil, na prática. Também por isso fico desgostoso quando vejo desperdiçadas – claro que em minha opinião – iniciativas que possivelmente beneficiam de condições práticas, organizativas.

Desses anos que decorrem da “alforria” até à extinção do MDP, em 1994, relembro dois processos menos conhecidos. No início da década de 90, não sei precisar a data, pensámos numa aproximação com a UDP e o PSR. Como autor da proposta na Comissão Política, fui encarregado das demarches, mas com bastante reserva de muitos companheiros, que não acreditavam na sua viabilidade. De facto, o PSR declinou o convite e o delegado da UDP, bastante conhecido ainda hoje, aproveitou toda a reunião para me tentar convencer das virtudes do camarada Enver Hoxa. Quem diria que, anos depois, iriam fazer o Bloco com o sucessor do MDP. Nessa altura, era cedo demais. Estar à frente, em política, pode ser tão mau como o oposto.

Alguns meses depois o golpe de Moscovo, de 1991, abandonou o PCP um número importante de militantes. Isto teve reflexos no MDP, creio que pouco conhecidos em relação à primeira fase de relações com os ex-comunistas. Quase semanalmente, houve encontros entre um grupo de dirigentes do MDP (essencialmente Tengarrinha, Silveira Ramos, Mário Casquilho e eu) e um grupo variável de recém-ex-comunistas, informal mas visivelmente liderado por Pina Moura. A tendência para nos arrastar para uma aliança com o PS, a credibilizá-los, era manifesta, tendo-se sabido que, enquanto diziam privilegiar uma aliança com o MDP, já estavam profundamente comprometidos com o PS, até para lugares eleitorais, como se viu nas legislativas de 1995 e nas autárquicas de 1993.

A outra corrente dos ex-comunistas de 1991 constituiu a Plataforma de Esquerda, liderada por Miguel Portas. Em 1994, entra no MDP, adoptando este o programa da Plataforma e alterando a designação para Política XXI. O grupo da Plataforma passa a dispor dos meios do MDP e acaba por integrar o actual Bloco de Esquerda. Novamente há uma cisão no MDP. Muitos dos seus membros passam para o novo partido (digo novo porque, em muitos aspectos, se distinguia do anterior), enquanto outros, como eu, tentam fazer renascer o MDP como associação política, o que nunca teve eficácia prática. 

A intenção era boa, mas o projecto estava esgotado. No entanto, não haverá dele muita coisa que merece hoje reflexão? Infelizmente, muita coisa em 20 anos permanece igual ou até pior. Disponho, até como frequente autor, de documentos importantes do MDP desses anos de viva discussão política. Talvez imodestamente, julgo que vale a pena divulgá-los. Começará em próxima entrada.

*   *   *

Dedico esta entrada à memória de Mário Casquilho, um dos melhores homens que conheci e, apesar da diferença de idade e do nosso contacto tardio, um dos meus maiores amigos. Para além de muito mais, era de um carácter e integridade exemplares. Sendo chefe de gabinete do grupo parlamentar do MDP da APU e sabendo que a rotura da APU quase certamente lhe faria perder esse lugar confortável, apoiou firmemente a cisão e manteve-se no MDP, vivendo depois numa situação difícil.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Uma visão rupestre da investigação científica

Tem-se escrito, e muito bem, sobre o criminoso desinvestimento deste governo na investigação científica (e desenvolvimento experimental, ou tecnológico), agora bem expresso na escandalosa redução do número de bolsas atribuídas para doutoramentos ou pós-doutoramentos.

Além de tudo o mais, é um retrocesso em relação a um desenvolvimento notável no país, durante mais de uma década. Não sou um adepto das políticas de Guterres e muito menos de Sócrates e acho que Mariano Gago até foi um relativamente mau ministro do Ensino Superior. Mas reconheço, como quase toda a gente, o seu excelente trabalho no domínio da Ciência e Tecnologia, levando-nos aceleradamente a patamares indicativos de nível médio europeu ou superior. Dito isto, vou abordar outro tema, relacionado.

O ministro da Economia, Pires de Lima, “lamentou hoje [16 de Janeiro] que parte da investigação científica em Portugal não chegue às empresas e disse que não é possível manter um modelo de financiamento que mantenha esta distância (e que) Uma boa parte da investigação é financiada por dinheiros públicos e não chega à economia real. Não chega a transformar o conhecimento em resultados concretos que depois beneficiem a sociedade como um todo”.

Aqui está um exemplo a mostrar como a direita liberal, tecnocrática, dos negócios, é culturalmente primária e desconhece tudo o que está para lá dos seus números, dogmas e simplismos ideológicos. Mariano Gago, com a sua cultura política, a sua experiência científica, a sua noção do desenvolvimento histórico e dos seus “factores imateriais”, nunca diria tal barbaridade de incultura rupestre.

É certo que a ênfase na investigação aplicada já vem de há muito, que ela é dominante nas economias desenvolvidas e que é um critério essencial de apoio pela Comissão europeia. Mas, no caso europeu, é necessário ter em conta que muitos dos projectos financiados são de facto de investigação fundamental orientada – o que não quer dizer aplicada – apenas com boas perspectivas de uma eventual aplicação posterior. Ou, mais importante, a favorecerem o desenvolvimento do conhecimento em áreas científicas de fronteira determinantes de futuros desenvolvimentos práticos. Por outro lado, o favorecimento pela Comissão do financiamento de projectos aplicados não deve ser desligado do carácter supletivo desse financiamento, que pressupõe o investimento nacional na investigação fundamental.

Pires de Lima deve ignorar que as relações de sequência (ou pseudo-sequência) entre a investigação fundamental e a aplicada são complexas. A primeira tem muito de uma coisa designada por um palavrão que certamente o ministro desconhece: serendipidade, isto é, a imprevisibilidade de descobertas não planeadas previamente nem ligadas a desenvolvimentos anteriores. Se não tivesse havido isso, os pais de Pires de Lima, em meados do século passado, não teriam tido a penicilina. E, andando por cá, que interesse tem para a economia e para as empresas o projecto hoje com maior financiamento europeu, o de Rui Costa, sobre a organização de memórias pelo cérebro. Isso dá patentes e exportações?

A relação entre a universidade e os centros de investigação, por um lado, e as empresas, por outro, tem originado resmas de papel. Pela minha parte, veja-se aqui e aqui, entre outros artigos. Falo de universidades e centros por serem, de longe, as principais instituições portuguesas de investigação, descontado o desenvolvimento tecnológico, que não está abrangido pelo caso agora em apreço, o das bolsas. O ministro desconhece isto.

E que investigação pode ser inserida nas empresas? Em qualquer país, a incorporação directa de investigação é fundamentalmente nos sectores de alta tecnologia. Em Portugal, em termos de exportações, representam cerca de 6%, 2,5 vezes menos do que a média europeia. Por outro lado, excluindo a indústria farmacêutica, a alimentar e pouco mais, ficamos só com engenharias. 

Quer Pires de Lima acabar com tudo o que seja ciências exactas e naturais, ciências humanas e sociais? Ou, para a sua visão estreita da realidade e dinâmica científica, no que respeita à dialéctica conhecimento-produção, basta escolas e centros de engenharia, com mais direito e economia a enquadrar ideologicamente os tecnocratas dessas empresas?

E porque é que Pires de Lima nem uma palavra diz da articulação e interalimentação entre investigação e formação superior, directamente a nível de segundo e terceiro ciclo (mestrado e doutoramento), como realização de teses, e indirectamente a nível de licenciatura, como garantia da qualidade dos professores?

E Pires de Lima, neste seu primarismo demonstrado exemplarmente, faz alguma ideia de coisa muito importante e muito discutida, os mecanismos de transferência do conhecimento da investigação para as empresas (parcerias e consórcios, empresas mistas, parques, “start ups”, spin offs”, capital de risco, etc.), seus prós e contras, até a sua exequibilidade para além de chavões à Pires de Lima? Já agora, coisa comezinha, julga que a maioria dos empresários, com qualificações mais reduzidas, se entusiasmam com a ideia de contratarem doutorados, a desequilibrar a hierarquia ainda tradicional de muitas empresas?

Também já agora: o que diz Nuno Crato destas barbaridades do seu colega?

NOTA 1 – É bom não esquecer que a questão das bolsas não significa apenas um aspecto pontual da política científica, com este governo. Em boa justiça, apesar de todos os avanços na formação de doutores e no financiamento de projectos, nos ministérios de Mariano Gago, ficou sempre por resolver o problema da fixação, a ultrapassar a situação de boa formação de doutorados mas com emprego precário. Muitos dos doutorados cujas bolsas não foram agora aprovadas já iam em várias renovações, com vários anos de muito bom trabalho até como investigador principal de projectos.

NOTA 2 – Não desculpa em nada o governo, mas a comunidade científica não tem sabido ser solidária e ter forças para enfrentar esta situação. Agora é que é aqui-del-rei. Não se vê todos os dias o que é uma guerra mesquinha de comunicados de imprensa, propaganda de sucessos que ainda nem sequer correspondem a trabalho real, grandes expectativas de cura do cancro por cada trabalho banal, sobrevalorização da participação em trabalhos com dezenas de autores estrangeiros? Primadonismos de feira de vaidades. Hoje, já não reconheço o ambiente de investigação do meu tempo, modesto e desprendido. 

domingo, 12 de janeiro de 2014

Notas quase soltas

1. Ainda a convergência

Os dois últimos dias trazem de novo para destaque jornalístico as notícias sobre a convergência. O 3D propôs ao BE e ao Livre uma candidatura convergente nas europeias. Esta “convergência” já começa a parecer novilíngua; uma candidatura dessas é comum ou unitária. Semedo mostra simpatia pelo 3D, mas afasta-se do Livre. O 3D continua a afirmar querer uma candidatura convergente e já admite que, contra o que dizia anteriormente, talvez seja preciso constituir-se em partido. Semedo afinal não acolhe assim tão bem o 3D e afirma que o BE não prescinde de lista própria, recusando diluir-se em qualquer outra candidatura. Não ficam confusos? Não parece que nada disto é para levar a sério? Bem faz Carvalho da Silva, astutamente calado e que, ao que consta, nem é membro da comissão instaladora do 3D.

E continuo a pensar em coisas bizarras para as quais já chamei a atenção. Boa parte dos promotores do 3D são promotores do Congresso Democrático das Alternativas; porquê a duplicação? Por as posições firmes do CDA serem inaceitáveis para o PS? E, dado o peso mediático e experiência política de Daniel Oliveira, saído do BE por falta de aproximação deste ao PS, não é legítimo pensar-se que a sua posição no 3D é influente e se esconde, no manifesto (ao menos o Livre é mais transparente) o objectivo essencial de aliança com o PS? Não é isto que explica a exclusão liminar do PCP?

Já agora, sendo de supor que, com a descida do número de deputados portugueses e a baixa eleitoral do BE, esta convergência só eleja um deputado, será muito interessante saber quem será o cabeça de lista. Ainda por cima se Rui Tavares vier a juntar-se à companhia.

2. Eleitorado de esquerda

Volto a dizer que a convergência de “esquerda”, nos termos generalistas e pouco rigorosos em que normalmente é posta, é uma utopia romântica a oscilar entre as boas intenções generosas de muita gente e o oportunismo de namoros políticos inconfessados. Que esquerda se quer fazer convergir? E não é bom distinguir entre partidos e pessoas com grande motivação política, por um lado, e o eleitorado em geral, por outro? É que não são a mesma coisa.

Pode ser discutível a definição de esquerda (em relação a partidos e movimentações), por ser uma realidade e um conceito dinâmico e estreitamente relacionado com os interesses de classe representados, os valores e posições ideológicos, as relações políticas, económicas e sociais. Tudo coisas que evoluem, com avanços e recuos, fazendo variar a posição da fronteira, também esbatendo-a ou melhor a definindo.

Operacionalmente, tendo a dar um sentido útil a esta questão, não fechando tanto a esquerda que atire para o lado oposto forças e sectores sociais mais indefinidos ou conciliadores com a política reaccionária e, agora, na sua versão neoliberal; ou que, pelo contrário, dilua tanto a esquerda que a descaracterize. Por isto defendo a distinção clara entre uma aliança estratégica da esquerda real (ou radical, se preferirem) e uma convergência táctica, conjuntural, entre esta esquerda e o centro-esquerda da social-democracia.

Mas será que isto se transpõe linearmente para o eleitorado? O eleitorado do PS, por exemplo, deseja uma convergência de esquerda, com tradução governamental? Ou, por natureza, está muito mais inclinado, pela sua próxima oscilação, para uma aproximação entre PS e PSD, como mostram as sondagens que indicavam forte desejo de um acordo entre os dois partidos na crise de Julho? Falo de um eleitorado numericamente muito mais expressivo do que as dezenas de milhar que se podem prever como eleitores de um Livre ou, eventualmente, de qualquer coisa que suceda ao 3D.

Não sei caracterizar sociologicamente o eleitorado do PS, tanto mais que boa parte dele tanto é do PS um dia como do PSD no outro. Diria que o eleitor de centro-esquerda é mais sensível à solidariedade, aos benefícios sociais (de que beneficia), ao papel do Estado. Mas é facilmente manipulado por valores e princípios tradicionais, por “bons costumes”, pelo sentido da moderação como valor absoluto. Com isto, é radicalmente anti-radical (passe a contradição) e hostil ao PCP, bem como estranho a um BE que não compreende. Esse eleitorado vai votar nos convergentes para obrigar o PS a uma ancorarem (outra palavra na moda) à esquerda?

3. A armadilha para a esquerda

A esquerda real corre o risco de cair numa armadilha, nos próximos tempos eleitorais. Em certo aspecto, a sua margem de manobra é muito estreita. É importante chamar o PS a libertar-se da tendência para entendimento – tácito ou explícito – com a direita, que é facilitado por todo o enquadramento ideológico e político europeu, a juntar-se à própria deriva do PS, com toda a social-democracia. A convergência entre uma esquerda real coesa, como escrevi acima, e o PS é coisa que ninguém desvaloriza, não sendo necessários novos messias para que se compreenda isso.

Um movimento amplo centrado nos dois partidos da esquerda real deveria declarar com muito impacto, desde já – e fazer disto cavalo de batalha ao longo dos próximos tempos – a sua disponibilidade para um entendimento com o PS para a superação da desgraçada política deste governo. Se não tomar a dianteira nesse anúncio, arrisca-se a ser confrontada com posições programáticas inaceitáveis do PS, cuja necessária rejeição seja utilizada para a habitual acusação de que a esquerda real não está disposta a governar.

No entanto, por outro lado, as posições actuais do PS e as suas propostas (ver o manifesto do “Novo Rumo”) são ocas, irrealistas ou demagógicas sem recursos só possíveis com uma mudança radical na política financeira e de dependência do domínio europeu, mudança que o PS não aceita. Cedências da esquerda quanto às suas propostas essenciais – é preciso definir bem o que são – não captarão eleitorado do PS e farão perder eleitorado verdadeiramente de esquerda.

4. O anticomunismo

Nestes tempos de discussão sobre a esquerda, dou por que, mesmo como coisa que desconhecia em amigos políticos, muita argumentação parte de uma posição claramente anticomunista. É parcialmente injusto e é politicamente errado. Parafraseando Talleyrand, diria que, neste caso como em toda a política, um erro até é pior do que uma injustiça.

Começo por uma declaração de interesses. Fui comunista desde os anos 60 até 1980, mais ano menos ano, com uma interrupção devido à invasão da Checoslováquia. Saí tranquilamente, sem alardes, não só por discordar de mecanismos e funcionamentos internos, como me parece ter sido fortemente decisivo em dissidências colectivas posteriores. As minhas discordâncias referiam-se fundamentalmente à falta de correspondência do PCP às grandes mudanças sociais da segunda metade do século XX, à rigidez ideológica (quanto ao leninismo, porque considero o marxismo, por natureza, como anti-rígido) e, por outro lado, a ter presente que um partido, com a sua vida interna e mentalidade dos seus dirigentes e quadros, espelha com antecipação o que será a sociedade se ele governar.

Dito isto, e continuando a ter grandes divergências com o PCP – e também com o BE – longe de mim colocar-me com alguma equidistância, como vejo agora muitos fazerem, entre o PCP e o PS, estilo “estão bons um para o outro”. E, infelizmente, até chego a ver gente séria repetir coisas de propaganda facilmente desmentíveis por um pouco de estudo, sem necessidade de qualquer simpatia, apenas objectividade.

Como se quer construir alguma coisa nova à esquerda, seja um novo partido seja um movimento, em ambos os casos bem caracteristicamente coisa de metrópoles e de intelectuais, sem se ter em conta a força eleitoral, popular, autárquica, até mítica, do PCP? Ou a influência do BE em sectores mais específicos, mas também importantes, como os jovens intelectuais e os estudantes?

Mas também o PCP tem responsabilidade. É coisa como a mulher de César. Não me interessa que o PCP diga que não é nada daquilo de que desde há décadas a direita (e não só) o acusa, caindo muito mais fortemente no juízo das pessoas depois da falência do mundo soviético. Pode não ser nada disso, mas também é preciso não parecer.

5. Uma esquerda “limpa”

Primeiro: com os seus 20% de votos, a esquerda radical não pode ambicionar governar. Que outro eleitorado pode conquistar? Segundo: está sujeita a uma campanha persistente de acusações de ser uma esquerda irrealista, irresponsável, negativista, oposição que não quer correr os riscos da governação; como ter credibilidade perante o eleitorado do PS mais à esquerda como sendo essa esquerda factor de condicionamento, num governo, de uma política conciliatória do PS?

Para responder a isto, é preciso uma reconversão da esquerda, em termos de uma “esquerda limpa”. De forma alguma limpa da sua combatividade, da sua coerência. De forma alguma levando os compromissos necessários até ao ponto de cedências inaceitáveis. “Limpa” é no sentido de menos presa a factores de imagem negativos, menos defensiva e mais empenhada no esclarecimento e no debate ideológico e económico, séria nas propostas, sem demagogia, realista nos fundamentos técnicos das propostas. Renovada nas relações entre partidos e sociedade, na rejeição do partidarismo instrumentalizador, na valorização dos corpos intermédios, dos movimentos sociais, das causas transversais. Modernizada na sua formulação de partidos de classe, tendo em conta a evolução da estrutura de classes e da composição das camadas populares.

Como escrevi há dias, o eleitorado do “pântano” está farto de promessas e mentiras, de chavões, e por isto anda confuso e permeável à desinformação manipuladora. Precisa de ver propostas firmes e não ambíguas. Os seus preconceitos contra a esquerda fecham-no ainda mais ao mesmo tipo de coisas vindo dela. Exige-se da esquerda posições muito claras, expostas pedagogicamente e com rigor, bem como a desmontagem serena e paciente das acusações contra a esquerda real que, anos e anos, foram instiladas na cabeça de muita gente (não isentando a própria esquerda por as justificar em alguns casos).

Uma “esquerda limpa” não é a descaracterização à italiana ou a cedência oportunista adivinháveis em “convergências” hoje tão em foco. É a deslocação da discussão desse aspecto conjuntural do plano do tacticismo político para o plano da estratégia política. É um trabalho corajoso e transparente, também pelo exemplo prático, de autocrítica e de desmontagem, quando for o caso, de críticas injustificadas. É a oferta aos eleitores de uma nova relação com eles, honesta e politicamente séria, com um programa firme, coerente, com alternativas claras, sem ambiguidades e sem subterfúgios eleitoralistas.


NOTA – Em coerência com a posição defendida nesta entrada, este blogue vai passar a dar boa atenção e esforço à discussão de propostas concretas e alternativas, mais do que, como hoje é vulgar na blogosfera política, ao simples comentário ou à escrita de “agitação” ou panfletária (sem sentido pejorativo). Provavelmente, pela maior exigência na escrita, a frequência de publicação de entradas pode ressentir-se.