"Melhor do que se esperava". "Não consideravelmente pior do que o PEC 4". Não estou a perceber. É o que anda a dizer hoje toda a gente mesmo na franja da santíssima trindade interna: Soares, Alegre, Ferro Rodrigues, António Costa, Maria de Belém, mais outra gente da "esquerda" do PS, alinhando com o discurso do querido líder, ecoado por Assis e Silva Pereira. Curiosamente, destoa, mas por raiva com uma esquerda que lhe retribui o ódio de estimação, Vital Moreira, que no seu blogue afirma, contra corrente oficial do seu ídolo, que o acordo é muito pior do que o PEC 4, "vejam lá, não votaram com o meu querido líder, agora lixaram-se".
Melhor do que se esperava em relação a quê? Objetivamente, em relação aos outros resgates, Grécia e Irlanda? Não vale. A Irlanda é um caso particular de resgate indireto dos bancos, pelos quais o Estado pôs a corda na garganta. A Grécia é "estudo de caso" de tal asneira que os financiadores não podiam deixar de ter em conta para não repetir a asneira no caso português (e, no essencial, até acho que repetiram, em termos de ideologia austeritária cega), com riscos mais que discutidos para a segurança de todo o sistema do euro (já esqueceram Kissinger e a sua teoria do dominó?).
Não é esta a comparação que os opinadores estão a fazer, é mais aberrantemente irracional, mais infantilmente engulidora da isca socrática e do seu aparelho antidemocrático de propaganda e de manipulação orwelliana. Afinal, o que é que se esperava? Com que fundamentos objetivos e racionais? Esperava-se apenas porque se escreveu repetidamente na comunicação social, porque os economistas de serviço debitaram todas as noites nos canais de notícias? Iam ser cortadas pensões de 400 euros, ia ser passado a títulos o subsídio de Natal, ia ser completamente desregulado o regime de trabalho, ia ser nacionalizada a CGD. Quem provou que isto estava em discussão, que era realista e lógico pensar que tipos inteligentes como os da "troika" pensassem em tão estúpida coisa, eles que também sabem, mesmo que tecnocratas, o que é o fator de risco de uma convulsão social a mexer com os seus esquemas? Quem plantou tudo isso na comunicação social? Anote-se que o catastrofismo da esquerda radical também ajudou à festa.
Sócrates veio apresentar como sua vitória ter conseguido que nada disso se passasse. E toda a gente se congratula com esta vitória! Está tudo doido? Ou a paixão político-partidária já chegou a ponto de turvar completamente o mínimo de discernimento de mentes educadas? Ou de independentes inteligentes mas louvavelmente incapazes de perceberem coisa tão alheia ao seu mais elementar sentido de rigor que é esta desavergonhada manipulação?
Usando a minha imagem de ontem, plantou-se na opinião pública que tinha fugido o leão do circo, que andava pela baixa a abocanhar velhinhas. Afinal, o leão não tinha fugido e toda a gente se prostra em graças por o leão não ter morto muita gente. Este país é de loucos irracionais, para além de irresponsáveis gastadores como os irracionais igualmente (ou muito mais) loucos gastadores, mas mais iluminados e arrogantes, andam a proclamar?
Isto (claro que em abstrato!) foi hoje tema da minha aula, numa disciplina inteletual e formativamente muito desafiadora para quem se sente professor, de seu nome "Racionalidade científica". O tema era o da impossibilidade racional da discussão de tipo "se tivesse sido assim...". Claro que é impossível demonstrar uma tese negativa e da mesma forma não se pode deduzir nada de uma situação que não aconteceu. Ninguém pode demonstrar que não existem OVNIs, pode-se demonstrar é que tudo se pode explicar sem ser necessário ter de aceitar a sua existência. Nenhum ateísta militante pode demonstrar a inexistência de Deus, mas não é obrigatório que a alternativa seja um agnosticismo virtuosamente inútil, porque se pode demonstrar que nada no cosmos exige a existência de Deus. É a versão científica e não militante do ateísmo. Mas já estou a desvariar.
Sem que se tenha minimamente falado em política, o que seria abusivo numa aula, os meus alunos perceberam bem, discutindo entre eles e comigo, que discutir o que teria sido "se não..." (digo eu agora aqui, não na aula, por exemplo, "se não tivesse sido chumbado o PEC 4") é coisa que só faz sentido nos filmes "Regresso ao futuro". Muito menos sentido faz inventar cenários que ninguém pode comprovar e com eles comparar, como melhor ou pior, a situação real posterior.
Claro que não estou a fazer processos de intenção, de desonestidade por parte dos que se deixam manipular, por mais senadores ou poetas eminentes que sejam. Fazem objetivamente o jogo de quem atua com sempre gabada inteligência. Com alguma dificuldade minha de aferir o que é inteligência: "performance", cumprimento de objetivos, sucesso de vários tipos? Ou rigor inteletual, elegância e luminosidade de raciocínio, domínio da lógica, formal ou dialética?
É difícil discutir isto, que podia dar conversa estimulante, mas que está contaminada por coisa evidente por parte dos manipuladores: pura e simples aldrabice espertinha. Quando esperteza e inteligência se confundem, fico doente. Ou é rigorismo meu?
P. S. - Vejo agora que o meu querido amigo JMCP do Politeia escreveu coisa muito coincidente com isto. "Les bons esprits se rencontrent".
P. S. 2 - E mais um no mesmo sentido, de Daniel Oliveira.
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