domingo, 8 de maio de 2011

António Ferro deixou herdeiros

Em época de crise depressiva, mesmo as maiores patetices podem servir de consolo. Anda aí por toda a parte um vídeo de recado de portugueses a finlandeses. Já o recebi em dezenas de mensagens - o que significa que há uma rede de cadeias de dezenas ou centenas de milhares de mensagens. Já foi visto no YouTube por 15000 pessoas. Está em destaque nos sítios do Público e do Expresso. Também em blogues respeitáveis. 
É pena que o vídeo esteja falado em inglês. Assim, para nossa vergonha, poderá ser visto por muitos estrangeiros, a rirem-se de tão tonta patrioteirice.
A coisa é tão primária que muitos dos amigos que mo mandaram se sentiram na obrigação de escrever “não concordo muito com o tom e acho que até há imprecisões, mas vale a pena ver”. Desculpem, mas não acho que valha a pena ver. Vi-o e fiquei confrangido. 
Começa logo pela invocação forte, motivo permanente de fundo, de uma bandeira inventada pelo salazarismo nas festas dos centenários. Lá está ela na capa do meu livro de instrução primária. Não se fica por aqui, para a minha memória evocada, a relação com o salazarismo. Muita e muita coisa neste vídeo me faz logo lembrar-me da propaganda do SNI. Pelo menos, dos 3 F, não falta futebol neste vídeo, podiam ter acrescentado Fátima e fado.
Mais, os erros - pior, mitos - são muitos, até aquelas coisas ridículas já mais do que desmontadas mas que continuam a confortar este povo pequenino, como se pensar que os japoneses, com toda a sua etiqueta e costumes refinados, precisaram que os portugueses lhes fossem ensinar a dizer “obrigado”, no século XVI.
Pior é que a maioria das comparações ou alusões às lusas virtudes são de um primarismo confrangedor, misturando coisas importantes da nossa história com mitos popularuchos, enaltecendo o rapazinho Ronaldo que os pobres finlandeses não têm, comparando Magalhães e Mourinho, envaidecendo-se com a miséria de a década de 60 ter gerado a emigração que justifica 20% de portugueses na população luxemburguesa (em que é que isto é motivo de orgulho, sem desprimor para os emigrantes que não tiveram culpa de o ser?). Fico por aqui, mas, repito, lamentando que a tristeza em que estamos leve gente de nível a rever-se em tão medíocre coisa.
Muito teria de concreto a desmontar neste vídeo, mas é melhor remeter para um excelente comentário de “catinga” a um “post” no “Duas ou três coisas”, muito bom blogue que devia estar acima deste patrioteirismo rasteiro e não lhe dar eco. Mas, afinal, também eu não estou a dar eco? Com uma diferença, estou a criticar, enquanto que todas as referências que vi são do tal tipo “há coisas menos corretas, mas vale a pena ver”. Não, não vale. Estamos em época em que é vital manter a lucidez, o sentido crítico e a superioridade intelectual.

Eu, que sou muito mais anteriano (açorianidade obriga) e cesariano do que pessoano, nestas alturas vou com Álvaro de Campos.

Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

Claro que não é bem assim. Tenho opiniões sociais e defendo-me com elas. E a minha lucidez faz-se em compromisso epicurista com a estética de coração (ou melhor, de consciência moral, embora a lucidez não se construa sobre “raciocínios morais”). Mas o essencial é que "merda, sou lúcido".

6 comentários:

  1. Excelente comentário. E afirmar que Filipe de Brito foi rei de Myanmar é um erro grosseiro. Filipe de Brito foi Governador de Thanlyin e foi proclamado Rei de Pegú - duas pequenas cidades de Myanmar. Seria o mesmo que dizer que um Birmanês tinha sido rei de Portugal caso tivesse governado Viseu e caso os habitantes de Alcácer do Sal o tivessem proclamado seu rei nas ruas.

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  2. Tinha perdido o rasto do seu blog! Excelente este post

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  3. Obrigado pelo post. Tenho andado tentado a escrever algo e a publicar no FB, para me demarcar desta avalanche de parvoíce, que nos deixa tristes até por se ver como apanha facilmente bons moços e boas moças...
    O nível de "despreparação" a que chegámos! a dimensão da "hegemonia" que a direita conquistou pouco a pouco no nosso debate político, caramba!
    O azul e branco, o D. Carlos de Bragança y Cousteau, a "solidariedade" do António para com os finlandeses "cristãos e ocidentais", a Cascais dos Borbón, dos Horthy, da jogatina e do putedo... Os emigrantes que são portugueses intermitentemente, quando nos convém, o Mourinho ao lado do Magalhães... Herr Gott! Tirem-me daqui, que tanta pinderiquice dá-me mesmo vontade de sacar da pistola...
    Obrigado pelo trabalho que me poupou. Vou antes publicar isto!
    João Carlos Graça

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  4. o poema é de AdC e não de AC.

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  5. O anónimno tem toda a razão. Lapso meu indesculpável, fui injusto para o coitado do Álvaro de Campos - esta é para mostrar que conheço o poema ;-) Obrigado pela correção.

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