Ouvi sem desejar ouvir; anotei sem, egoisticamente, desejar anotar. Escrevo desejando escrever, mas porque se deve. Uma senhora idosa, isolada num prédio de bairro dormitório, foi descoberta na banheira, putrefacta, 3 anos depois de morta. Parece déjá vu, temos visto recentemente outros casos. Este parece-me ter uma novidade: a senhora tinha cinco filhos!
Em que sociedade estamos a viver? A política, o governo da sociedade, é só o convencionalismo da democracia formal, institucional, ritual, limitada ao voto ocasional? Uma sociedade de eleitores em que afinal toda a gente exerce o seu poder? Ou isto assim não vai lá, porque não podemos admitir que aconteçam coisas destas a "gente". Sei que os meus amigos sentem o que eu sinto ao escrever "gente". Não é "número de eleitor". Já nem é "povo", com as conotações que tinha na minha ideologia iniciada/iniciática na juventude. É simplesmente gente, "homo sum", que se lixe a luta de classes, embora que ela existe é verdade. E, muito mais, que se lixem as brincadeiras perversas dos meninos ex-jotas de fatinho Armani.
Claro que mantenho a minha perspetiva ideológica, porque, com abertura não sectária (a melhor coisa que aconteceu a Marx foi o colapso do mundo comunista) e porque acho que ela me permite refletir com abertura mas num quadro mental enquadrador e facilitador. Todavia, com dificuldades. O conflito de classes determinava mudanças, mas muitas vezes sem mudança de sistema. De longe em longe, revoluções, às vezes fracassadas (1848, 1870, mesmo 1917 muitos anos depois). Hoje, parece-me diferente. Não é só o fim de um ciclo político-económico, é a mudança para novo paradigma de civilização.
Desviando a conversa, mas ainda sobre "todo o mundo é composto de mudança", refleti há dois dias com os meus alunos (disciplina de "Racionalidade científica", na licenciatura em Biologia da Universidade Lusófona) com muito interesse e com sucesso, sobre o sentido otimista do progressismo, sobre a dialética, sobre o novo humanismo científico, sobre o princípio antrópico, sobre a espiral dos "retrocessos" aparentes mas a nível superior de evolução, sobre Hegel e Marx (percebendo eles que eu estava a falar do Marx filósofo e cientista, sem intenções minhas propagandísticas).
O resultado, em primeira reação, foi de perplexidade. Muito menos, afinal, do que há umas semanas atrás, quando me disseram "ó professor, esse gajo é um chato!". O gajo era Descartes... mas esse desabafo foi no princípio da aula. Depois, desta vez, eles mais abertos para a filosofia - ou melhor, como tento fazer, apenas uma conversa inteligente, para que só me falta o jardim, peripateticamente - uma discussão interessantíssima, para que o horário da aula não chegou. Nunca me gratificou tanto ser professor. Geração à rasca? Talvez, mas com todas as condições para vencerem essa batalha.
Voltando ao princípio da conversa: e essa tal pobre senhora pertencia à geração à rasca de licenciados com emprego precário?
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