quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Transcrição

Jorge Bateira, no I, “Sem margem de manobra”:

(Texto integral, com a devida vénia):

A proposta de Orçamento do Estado para 2013 foi apresentada ao país pelo ministro das Finanças acompanhada de um comentário dirigido aos seus críticos: “Portugal não tem margem de manobra.” Ou seja, apesar do evidente fracasso da política de austeridade na Grécia, em Portugal e na Irlanda (neste caso, menos comentado), ainda assim temos de executar uma política que provou ser ineficaz. Dizem-nos que não há qualquer margem de manobra, mesmo que um dos membros da troika, o FMI, já tenha reconhecido que a política económica imposta a estes países é errada. O discurso do bom aluno acaba de ser enterrado, mas é espantoso que a política se mantenha.

Estamos pois num beco (aparentemente) sem saída. Entrámos numa espiral de desastre para a qual um núcleo restrito de economistas portugueses desde o início alertou, em flagrante contraste com o comentário entusiasta de muitos outros a quem foi dado grande protagonismo mediático, tendo como pano de fundo o silêncio das nossas faculdades de economia que, salvo honrosas excepções a título pessoal, guardaram um silêncio bem revelador da hegemonia do pensamento neoliberal na formação dos nossos doutorados. Vendo o barco a afundar, um ou outro vêm agora admitir que a austeridade deveria ter sido mais suave, em linha com o discurso do Partido Socialista. A mudança vem tarde e com pés de barro porque, ainda assim, persistem no paradigma teórico que gerou este desastre. Primeiro, porque continuam a admitir que o equilíbrio das contas públicas é, em si mesmo, virtuoso. Segundo, porque entendem que o relançamento da economia só pode fazer-se com medidas de apoio à oferta. Terceiro, porque, para eles, a UE acabará por salvar o euro e libertar-nos (a tempo) da austeridade. Tendo banido Keynes dos seus programas de doutoramento, é natural que o quadro conceptual destes académicos se sinta ameaçado e, na defensiva, se adapte apenas marginalmente perante a imensa crise da procura que apadrinharam.

Em 2011, os portugueses deram a este governo o benefício da dúvida. No fundo, os portugueses precisavam de tempo para perceber os contornos do problema em que estavam metidos. Hoje, é com profunda apreensão, mesmo com alguma raiva, que estão a deixar cair uma ilusão, a de que a moeda única nos traria uma integração europeia feliz, prosperidade para todos e alargamento dos direitos sociais. Para muitos cidadãos, talvez mesmo para a maioria, hoje é evidente que a saída para esta dramática crise só pode ser política e passa pela denúncia de um contrato que, segundo uma das partes contratantes, consagra um grave erro de política económica.

À medida que a denúncia do Memorando vai sendo percebida como a única saída que nos resta, o debate público sobre as implicações de tal decisão tornar-se-á incontrolável. Mais tarde ou mais cedo, as televisões vão ser obrigadas a levantar a censura a que têm sujeitado esta opção. As redes sociais estão a minar-lhes o terreno e a descredibilizar o seu comentário económico, pelo que o recuo acabará por acontecer. A partir daí, vamos ver a histeria dos apóstolos do euro, de direita ou de esquerda, para quem o desastre em que estamos lançados será sempre preferível ao abandono da moeda única. Veremos então que, apenas por razões ideológicas, os arautos de um imaginário “euro bom” preferem o desemprego de massa, por tempo indefinido, a uma inflação transitória causada pela desvalorização de uma nova moeda. Veremos então quem prefere manter o país no desespero e esperar por uma UE com orçamento federal, mesmo sabendo que a Alemanha nunca estará disponível para partilhar dívidas ou submeter o seu sistema bancário e o seu orçamento a uma tutela federal. E, veremos também, como evitam discutir o nosso endividamento externo porque sabem que tal desequilíbrio não pode ser resolvido sem recurso à política cambial, além de outras. Nesse dia, tornar-se-á visível a grande margem de manobra de que dispõem os países com moeda própria e banco central.

1 comentário:

  1. Duas palavras apenas.
    Penso que a análise tem toda a propriedade e argúcia.
    Mas, tal como muitas outras que relevam da mesma abordagem crítica intra-sistemática, fazem-me sentir uma desconfortável vontage de sair dela, como de uma sala onde desfila uma fita triste e sem mensagem de esperança.
    O que vou lendo, faz-me pensar que a gente de cujo lado me situo pensa esta realidade como algo que se resume à renegociação da dívida, como se, obtida ela, se abrisse de imediato a via da recuperação da nossa economia e dos direitos sociais que nos inspiram. Ou seja, como se, caso ocupássemos o lugar dos Gaspares e mandados, fossemos capazes de reformar a política sem tocar na estrutura do poder político.
    Isso deixa-me desolado porque não acredito.
    Para mim, o Estado exige uma profunda reforma que abata, de alto a baixo, o centralismo lisboeta e o seu sinistro suporte municipalista. Ou seja, sem uma profunda regionalização que envolva os cidadãos na concreta definição do seu futuro e, por isso, os desenvolva (na dupla acepção de evolução e libertação), e sem uma reforma eleitoral que dê corpo a essa radical alteração dos dados da representatividade.
    De outro modo, reais alternativas não existem, não passam de quimeras inquinadas dos mesmos vício básico, a saber, o do despotismo iluminado.
    Não, isto não é, simplesmente, uma interessante e complexa intriga, cheia de protagonistas e de aspirantes.
    Isto é um país exangue, nu, em busca de si próprio.

    ResponderEliminar

Obrigado pelo seu comentário. Os comentários de leitores não identificáveis não serão publicados.