Um pouco à margem da série anterior de entradas, e não relacionado diretamente com o que se passou no CDA, vou para uma de carácter mais geral, mas relacionada com o que escrevi sobre a dificuldade de importantes iniciativas, como o CDA, em vencer os bloqueios à unidade de esquerda.
Para muitos dos meus leitores, da minha geração, o que vou escrever são banalidades. Mas lembro-me daqueles que, como disseram no CDA, já são filhos de abril, como os meus filhos.
A análise das divergências profundas entre os partidos de esquerda, sendo eles três, PCP, BE e PS, não é integralizável. É forçosamente parcelar, dois a dois, embora a divergência PS-BE, moderna e conjuntural, me pareça difícil de analisar e não o vou fazer, porque me parece limitar-se ao quadro imediatamente tático da política partidária.
A análise das divergências profundas entre os partidos de esquerda, sendo eles três, PCP, BE e PS, não é integralizável. É forçosamente parcelar, dois a dois, embora a divergência PS-BE, moderna e conjuntural, me pareça difícil de analisar e não o vou fazer, porque me parece limitar-se ao quadro imediatamente tático da política partidária.
A mais antiga e profunda é a enorme divergência, com efeitos psicológicos, entre PCP e PS. Tem raízes muito fundas e antigas. Não se esqueça que Mário Soares foi comunista e que muitos dos seus companheiros andaram na órbita do PCP ou em movimentos por ele muito influenciados (ou controlados), como o MUD juvenil. Aceitando que me acusem de esquematismo, mas para não me alongar, direi que o conflito vem principalmente de uma grande tensão, no PCP, entre uma visão leninista de partido da classe operária (a que o próprio Cunhal, intelectual, se mimetizou) e a dificuldade de lidar com uma burguesia intelectual, “sem espírito de classe”, na fase das frentes de esquerda e populares. O caso Fogaça é sintomático.
Depois, a guerra fria veio romper a aliança antifascista e de frente popular, à francesa, da década anterior. O titismo, os processos de repressão na Hungria e na Checoslováquia, abriram brechas nunca mais reparadas na frente democrática de esquerda portuguesa. A campanha de Delgado foi um cessar fogo, mas que acabou por ser gravemente perturbado pela ilusão socialista com Marcelo, de que resultou a triste divisão de candidaturas em 1969. O Congresso de Aveiro e algumas iniciativas unitárias posteriores uniram outra vez a esquerda, bem como o envolvimento comum, que conheço bem, de gente de ambos os lados, a nível individual, na ajuda aos militares de abril.
Depois do 25 de abril, a princípio tudo bem, mas depois foi tal luta, tal antagonismo até pessoal e entre amigos, tantos insultos, que demorarão gerações a serem esquecidos. Também a noção de traição à revolução de abril, uns a verem-na como traição ao processo socializante em claro andamento vitorioso, outros a verem-na como traição às regras da democracia formal com que fizeram a sua cultura política. Pior, os compromissos assumidos, por uma e outra parte, com poderes estrangeiros, mesmo com serviços secretos execráveis e amorais. Pior também, a divisão do movimento sindical. E, conclusão ainda hoje nas bocas do mundo, “eles nunca se entenderão”. Mais, “são todos políticos, só querem saber dos partidos e dos seus interesses, das suas guerras, estão-se nas tintas para o país”. E muito mais.
Diferente é o caso da divisão PCP-BE, mais recente na prática, mas afinal com velhas raízes hoje patéticas na história do movimento socialista/comunista. O PCP tem uma velha história e passou por todas as fases do movimento socialista. Ficou marcado por uma personagem de enorme qualidade mas muito contraditória e problemática, o que não vou agora discutir. Cunhal tinha qualidade para ter sido outro Gramsci, ficou tolhido por dever religioso de devoção, a que submeteu a sua grandeza.
Com a derrota do projeto revolucionário pós-11 de março, em consequência do 25 de novembro, o PCP ficou na defensiva (valeu-lhe a célebre declaração de Melo Antunes nessa noite), enquistou-se. Sofreu os efeitos do desmoronamento do mundo soviético mas não teve uma atitude pró-ativa e sofreu saídas após saídas, cada vez mais se refugiando na segurança do seu núcleo duro fiel.
Com a derrota do projeto revolucionário pós-11 de março, em consequência do 25 de novembro, o PCP ficou na defensiva (valeu-lhe a célebre declaração de Melo Antunes nessa noite), enquistou-se. Sofreu os efeitos do desmoronamento do mundo soviético mas não teve uma atitude pró-ativa e sofreu saídas após saídas, cada vez mais se refugiando na segurança do seu núcleo duro fiel.
No entanto, esta história das saídas é muito complexa e com significados muito diferentes. Posso distinguir pelo menos três fases. A primeira é indefinida, começa logo no princípio dos anos 80. É a minha, a quem tinha sido prometido, a seguir à revolução, um processo de discussão da democracia socialista que nos tinha feito sair do PCP depois da invasão de Praga, discussão que nunca aconteceu e agravada por também não se ter feito a autocrítica de muitas coisas do “verão quente”. O problema desta cisão é de ter sido feita aos poucos, individualmente - mesmo que muitos - e por pessoas, como eu, não mediáticas. Cada um foi à sua vida. Pessoalmente, só voltei a ter ação política no MDP, quando ele se libertou da tutela comunista. Um grande abraço, José Tengarrinha!
Depois, segunda fase, foi o movimento após o golpe da URSS, de 1991. Viu-se o que deu. Tenho dificuldade pessoal em escrever resumidamente sobre isto - daria um livro - porque, em nome da comissão política do MDP, tive numerosas reuniões com toda esta gente, e tenho memória de elefante (por isto, aqui fica, dessa experiência, a minha homenagem a José Barros Moura, e não digo mais). Reuniões com Pina Moura, Barros Moura, Judas, Mário Lino, outros. Muitos passaram para o PS, estão hoje bem instalados. Outro grupo, liderado por Miguel Portas, desafiou-nos a comprar o MDP e ganharam. Contra o meu voto, mas que seria diferente hoje, depois de tudo o que aprendi. Fizeram a Política XXI, entraram no BE. Levaram uma máquina eficaz e um bom património financeiro. Sem isto não se faz um partido e escreverei mais tarde sobre isto.
Pertence a este grupo (P XXI) o candidato a liderança ou co-liderança, João Semedo. Conheço-o mal, de velhos tempos, mas é um homem que me parece ter uma forte afetividade sincera (médico do meu tempo!…), uma sensatez política, uma saúde de carácter e uma honestidade intelectual que me auguram uma era BE radicalmente pós-Louçã. Seja ou não ele acompanhado por uma jovem que não conheço, espero que eficiente em termos de imagem. O português eleitor não vota em matronas como a Merkel (ia falar de uma matrona local, mas cala-te boca!).
Outras cisões posteriores, mais ou menos ignotas, descredibilizadas pelo seu carácter de coisas tardias e com sentido gasto, não deram nada, a não ser um movimento, talvez mais um grupo de amigos, também meus, por quem tenho muita simpatia pessoal, a “Renovação Comunista”.
Mas será que tudo isto é relevante para um conflito PCP-BE? Sim, até por razões paroquiais. No movimento comunista, as discussões ideológicas sempre foram muito importantes, entre estalinistas e trotsquistas (o que até meteu assassinatos com picador de gelo), entre moscovistas e maoistas, depois também com eurocomunistas. Faz parte da sua cultura. Eu, então comunista, sei como fui criticado por ter ido a tribunal plenário defender um amigo maoista.
Depois, na prática, porque ambos competem por um eleitorado militante, convicto, não a massa flutuante, centrista, do eleitorado do PS. Pior, tentam atrair eleitorados diferentes nesse conjunto largo de esquerda consequente. O PCP ancorado no operariado e funcionalismo tradicional, o BE nas camadas mais jovens, mais abertas a novas causas.
Dito tudo isto, algumas conclusões.
1. Só uma revolução é que obrigará os partidos a uma inflexão - até muito dolorosa para eles - no sentido da unidade. Não virá a tempo para as próximas eleições, principalmente se antecipadas para curto prazo.
2. Esta situação só será influenciada pela dinâmica da movimentação política não convencional. Os partidos têm uma fortíssima cultura de sobrevivência. A rua, os movimentos sociais - critique-se ou não alguma infantilidade ou tolice de alguns, até a sua permeação a provocadores - vão condicioná-los, a menos que já tenham entrado em demência de situação estabelecida.
3. Mas também é verdade que ainda milhões de eleitores não compreendem a dialética do processo histórico, querem uma alternativa a curto prazo. Muitos votaram antes no PS, depois no PSD e, nas próximas eleições, perguntam-se sobre o que é diferente ter votado Sócrates, depois Passos Coelho, agora Seguro.
4. Poucos poderão considerar mudar o seu voto centrão para a esquerda radical. Veem-na como simples contestação, não como uma alternativa de poder. Ainda por cima, dividida. Sem propostas claras. Com propaganda acalorada que irrita o homem comum e o deixa perplexo com a ideia de afinal estar a ser manipulado por todos.
5. Não há solução política que não pense muito a sério no Zé Povinho. Ele não é só o eleitor. É também aquele homem estranho que se acomoda, que se verga, mas que também faz patuleias.
6. Há todo um movimento convergente de rua, de iniciativas dispersas, de algumas com muito impacto. Mas como traduzir isto, em tempo adequado, numa oferta imediata de alternativa eleitoral? Honestamente, não tenho resposta para isto.
NOTA - Disse no início que esta entrada não tinha a ver diretamente com o CDA. É verdade que eu e muitos tentámos evitar nas nossas intervenções a discussão das divergências de esquerda, que podia inquinar o espírito de abertura do congresso. Mas também é verdade que alguns jovens salutarmente intempestivos resolveram ir dizer coisas verdadeiras, agarrando os bois pelos cornos. Deu-me gozo. Bem hajam!
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