Como escrevi em entrada anterior, reproduzindo uma intervenção minha no CDA, estamos confrontados com um problema político de contradição de dinâmicas e de tempo: o do movimento social e o da política convencional, eleitoral. Claro que se influenciam mutuamente mas a uma escala de tempo – embora a história seja uma brincalhona que gosta de surpresas – que não é adequada à resolução atempada da referida contradição.
Quanto ao primeiro termo, o da movimentação social, da informação, da conquista das consciências, enfim da hegemonia, já muito se disse, já muito se viu na rua. A evolução da crise pode augurar uma situação pelo menos pré-revolucionária. Podem aparecer propostas até de mudança significativa do sistema político, pelo menos de pressão determinante para correção dos seus maiores vícios, quando até os seus próprios agentes compreenderem o risco que correm com o exponencialmente crescente descrédito da “classe política” (o pior é que a democracia também pode correr riscos).
Mas também me preocupa o curto prazo, até porque a falta de soluções a essa escala pode enfraquecer o movimento estratégico, causando desânimo, remetendo para casa e para defesa imediata dos legítimos interesses tão violentados, muitos dos que estão a engrossar o “povo na rua”. Há casos em que a pressão popular mudou revolucionariamente o sistema “de dentro para fora”, como Praga-1948 (que muitos consideram, contra minha opinião, apenas um golpe de estado por um partido), mas não são a regra. Não perfilhando o leninismo, não quero as consequências de uma revolução feita por uma vanguarda, salvo exceções como o 25 de abril, em que o povo rapidamente enquadrou a vanguarda, nesse caso militar.
A curto prazo, digamos que até ao fim desta legislatura, se não antes, há vetores objetivos a considerar. Degradação crescente da base de apoio do governo, contradições na coligação, conflitos entre poderes formais e fáticos, propostas para alternativas “vindas de dentro” do sistema, etc. Interessam-me mais agora as subjetivas, essencialmente tudo o que tem a ver com o sentimento do eleitorado, muitos mais milhões do que o milhão que sai à rua.
Não é garantido que dessas tensões resulte que a necessária queda do governo conduza a eleições antecipadas. Mas é a solução democrática e que evita coisas perigosas, como reforços de poder de quem não tem confiança popular indiscutível, ou predomínio da tecnocracia sobre a política. Por isto, vou basear-me, confiando, na previsão de eleições antecipadas.
Os que saem à rua, os que assumem militância política, os responsáveis por organizações e movimentos políticos, têm de dar resposta urgente a esta pergunta básica do Zé eleitor: “votei contra o Sócrates por ser aldrabão, não quero votar outra vez neste gatuno Coelho. Em quem vou votar?”.
Antes do mais, prevenção contra algumas ilusões. Uma, que parece influenciar em particular o BE oficial, é o mimetismo com a Syriza. As situações são muito diferentes, até na rua. Na Grécia, o PASOK foi cilindrado, ultrapassado pela Syriza. Em Portugal está longe de se passar isto com o PS, que beneficia de, apesar de ter assinado o compromisso com a troika, não o ter executado e sofrido as consequências, ao contrário do PASOK. A Syriza competia eleitoralmente era com a Nova Democracia, taco a taco (2% de diferença, contra 23% cá entre PS e BE) e beneficiando o vencedor do bónus de 50 deputados. Ora o BE está em recuo – vejam-se as eleições nos Açores – e muito longe de, só por si, ao contrário da Syriza, poder ser o eixo de uma alternativa de governo.
Segunda ilusão, a da conquista fácil de parte significativa dos tais 80% de apoio à troika. Na Grécia, muito eleitorado – não estou a falar só de manifestantes – já diz não aos dogmas que lhes têm impingido e que as pessoas compreendem já que são a causa da sua desgraça. Não é assim em Portugal.
Muita gente com quem falo e que não sabe nada de finanças nem tem biblioteca está zangada, queixa-se (diante da televisão), mas continua a pensar em termos morais provincianos – que temos de pagar as dívidas porque somos honrados, que reestruturá-la era ficar sem financiamento para pagar salários e pensões, que mesmo tentar mudar prazos e taxas é perigoso. Muito mais, claro, pensar sequer em coisas mais radicais. Estão é perplexos. Sabem que não querem mais este governo e o que lhes roubam, mas não veem alternativa à política de austeridade e ao cumprimento rigoroso dos compromissos.
Não nos iludamos, porque no momento do voto próximo, os tais 80%, talvez reduzidos a 70%, talvez até 60%, mas sempre maioria, continuarão a oscilar de voto mas sempre no âmbito do “grupo respeitável”. O beneficiário desta situação, obviamente, é o PS, que até poderá ter maioria absoluta em próximas eleições.
Também poderá beneficiar do efeito de subjetividade que se viu nas últimas eleições. É certo que Passos Coelho não parecia ir fazer o que tem feito, mas certamente toda a gente sabia, pelo menos, é que era mais à direita, mais conservador (ou as pessoas do centrão não ligam a isto) do que Sócrates. O que derrotou Sócrates não foi a sua política (até nem má de todo) mas o caráter vicioso, a aldrabice, a mentira. No caso atual, para além do descontentamento com a política, também jogará a rejeição do extremismo sectário, do fanatismo gaspariano, de que o Zé não gosta.
O voto no PS será portanto de alternância, mas por razões não totalmente políticas e programáticas, e por isto não um voto de alternativa. Como estou a referir-me ao CDA e a toda muita gente que tem uma posição radicalmente oposta ao “grupo respeitável”, é errado traduzir como alternativa de esquerda, em termos de curto prazo, uma alternância personificada pelo PS. Não faço a injustiça de pensar que o PS oficial governaria sem diferenças em relação a este governo de fanáticos ultra-neoliberais, mas, em menor grau, o PS adota a perspetiva austeritarista e os pressupostos básicos da escola de economia dominante.
Obviamente que isto não quer dizer que, como consensual no CDA, um objetivo imediato essencial, a par da movimentação social e da pedagogia política, não seja o de tentar ajudar a uma plataforma comum eleitoral PS-PCP-BE. No entanto, como se viu no congresso, posições consensuais dos participantes, nomeadamente a denúncia do memorando e a reestruturação da dívida, vão obviamente contra a posição do PS oficial e até de socialistas participantes do congresso.
O que me parece mais provável – e não creio ser preciso ter muitos dotes divinatórios – é uma evolução em dois ciclos, à grega. O PS (e não só o PS) não corresponderá ao esforço de convergência em que o CDA se empenhará, ganhará as eleições ou com maioria absoluta ou coligado com o CDS ou eventualmente com o BE (se este tiver vocação suicida). Como na Grécia, haverá a seguir um ciclo eleitoral de implosão do PS, com uma desejável diferença importante: na Grécia não houve evolução ou cisão dentro do PASOK, o que pode acontecer com um PS em frangalhos por uma próxima governação mais ou menos obediente à troika e ao “establishment” europeu.
Por isto, estou certo de que a sabedoria do CDA e da sua comissão vai privilegiar, desde já, é o diálogo e a convergência com as margens do PS. É preciso é que elas também se afirmem.
Também a questão de um novo partido. Por tudo o que já aqui tanto escrevi, creio que é indispensável, mas não me parece hipótese de trabalho para próximas eleições. Para as seguintes, já entramos em zona crepuscular, de incerteza. Muita água passará entretanto debaixo da ponte, talvez em inundação.
O que me parece fácil de entender é que a atual movimentação social, com destaque particular para um CDA que, entretanto, certamente crescerá e se afirmará - mais tarde direi porque estou convencido - é um novo enquadramento facilitador, até em termos de condições estruturais, financeiras, etc., da criação de um novo partido.
A ideia não foi aprovada pelo congresso, mas porque apresentada em termos de vinculação imediata. Eu próprio também votei contra isso, mas com a certeza de que uma coisa não significa outra, que o CDA nunca se comprometa com isso. Hoje é hoje, amanhã é amanhã.
E seria curiosa a inversão do que é vulgar, um partido criar uma frente ou movimento. Aqui seria uma frente a criar um partido. Mas não é caso único. Lembremo-nos da Índia ou da África do Sul.
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