domingo, 11 de dezembro de 2011

Nova esquerda, é urgente

Há muita gente em orfandade política. Mais conscientemente, porventura com angústia - falo por mim - gente de esquerda que só vê nela hoje becos sem saída ou estreitas veredas que ninguém sabe aonde podem ir, mas certamente a parte nenhuma a curto prazo, nem sequer em termos de calendário eleitoral.
E também muito mais gente, que nem se consegue identificar com categorias políticas estabelecidas - como, por exemplo, esquerda e direita. Para estes, que cada vez mais se indignam, mas numa indignação de homem comum que não podemos pretender que seja a dos “indignados” com vagar e cultura política (?) para indignação na rua. Falo antes é dos muitos que, tendo estado nos tais 80% das últimas eleições, hoje me dizem - e dizem mesmo, porque é gente boa e honesta que conheço, não são invenção - que, se houver eleições ou qualquer outra chamada às urnas, foram enganados pela última vez há meses. Mas em quem podem votar, se também têm total descrença - em parte preconceituosa, em parte justificada - nas atuais alternativas de esquerda?
Tendo até protagonizado (confesso que sem muito entusiasmo) um grande exemplo de abnegação partidária, a entrega do MDP ao que a seguir veio a ser a Política XXI, e porque isto radicava num profundo processo partidário interno de necessidade de construção de um partido alternativo de esquerda, creio estar bem posicionado, vinte anos depois, para dizer algumas coisas com clareza, porque não sou diletante de clube político nem guru de discursata demagógica a acampados no Rossio. Falta-me já tempo de vida, cada dia é dia a não desperdiçar com flisterias. E cada vez me é mais importante, sentindo-me coitado do Álvaro de Campos, eu dizer-me, à mesa do café ou na plateia embevecida com alguns debates, com alguns dislates de infantilização política de gente serôdia, “merda, sou lúcido”. Isto vale para a política, oh se vale! 
Porque não divagar sobre este tema na minha idade tão sentido, o Tempo?
Começo pelo tempo zero. Ironicamente, é o de muitos jovens hoje em protesto. Saem à rua porque alguma coisa os motiva, protestam limitadamente contra coisas que lhes dizem muito, mas não têm qualquer noção do valor político do tempo. A manif tanto pode ser hoje como daqui a um ano, tem aparentemente o mesmo valor porque o protesto é o mesmo. Cada coisa vale por si própria, não há um fio condutor de estratégia política. O que vale é a catarse. Pode parecer que é qualquer tempo na hora seja qual for, mas que afinal se esgota ao fim do dia.
Depois, o tempo do pequeno universo, que não se sabe se se vai expandir se colapsar. Iniciativas pontuais, circunscritas, em quantas alinhei ou até promovi, como dirigente estudantil, mas sabendo que eram mais uma pequena peça na construção de uma grande luta. Hoje não, perdeu-se o sentido estratégico do eixo norteador da luta, cada iniciativa mobiliza os seus entusiastas (o que é muito bom) como se essa iniciativa esgotasse redentoramente o fim da luta (o que é muito mau). Já escrevi sobre isto.
Não sei se ainda pior, mas pelo menos mais triste e menos entusiasmante, o tempo do pousio sobranceiro. “A situação objetiva é desfavorável, as pessoas estão pessimistas, não se consegue mobilizá-las, ao menos nós, como clube bem pensante, vamos trocando ideias semanalmente”. E nem sequer se dando ao trabalho desta coisa, talvez patetice, de escrever em blogue com traço de metal fulgente, como dizia Graciliano, “quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas”. Nos círculos de bem pensantes?
A vida não espera! Para mal dos que estão à espera de fadas.
Da fada da sua autoconfiança política, esperam os que fazem grandes planos como se a vida obedecesse aos seus neurónios. Por exemplo, “é preciso mudar o BE, mas temos um grande plano, vai ser coisa para uma convenção lá para o fim de 2012”. Claro que a estão já a preparar, com os dados de situação real do fim de 2011. E no fim de 2012, será a mesma recessão, a mesma dívida, a mesma política europeia, a mesma atitude dos cidadãos em relação ao sacrifício que hoje ainda acham que vem de “o que tem de ser tem muita força”? O mundo vai parar até à milagrosa convenção? Não têm a noção do tempo?
Ou a fada do entusiasmo de “hoje é que sim, não interessa amanhã”. Iniciativas obviamente muito importantes politicamente, se enquadradas numa luta com eixo estratégico, mas parecendo muitas vezes auto-confinarem-se. Por exemplo, como critiquei, “primeiro a auditoria cidadã à dívida, depois a decisão de reestruturação da dívida e/ou saída do euro”. Tolice! Auditoria à dívida muito bem, mas é apenas um instrumento político. Melhor é usado por um governo empenhado na reestruturação, não como ação de oposição, sem prejuízo de ela valer muito, como outras ações de oposição. Mas não é um objetivo político, em si, muito menos passo prévio, necessário, a outras decisões de fundo.
Ou ainda a fada do “todos unidos”. Central é unir as “esquerdas”, coisa que ouço desde que se começou a não se saber muito bem o que são essas esquerdas. Estrategicamente, historicamente, é inegável como grande objetivo político. Mas faz-me lembrar a anedota dos escuteiros que queriam ajudar a atravessar a rua a velhinha que não queria. Concordo inteiramente com que os escuteiros se propusessem um longo trabalho de convencimento da velhinha, mas de forma alguma quando defrontados com a situação de vir ou não na rua o autocarro a desafiar quem tem pernas para correr e o cruzar. A velhinha certamente morreria atropelada.
Há dois tempos na política, o da estratégia e o da tática. Há o do trânsito calmo com calmo atravessar da rua e o do tal autocarro a alta velocidade. Neste momento, o autocarro é a eurozona em crise, é a loucura da política neoliberal do austeritarismo, é o da sujeição “de traição à pátria” em relação ao eixo Merkozy, é a reverência abjeta em relação ao capital financeiro, os grandes senhores.
Tendo isto em conta, é importante que se apoie todas as iniciativas que convirjam para o objetivo central de luta. É importante entusiasmar os velhotes políticos acomodados, mesmo que os seus alibis sejam criticáveis. É importante dialogar com todos os que, nos aparelhos existentes, se estão a colocar nas suas margens, com destaque para contestatários, mais ou menos firmes, no PS e no BE.  É importante acompanhar os que acreditam em fadas, mas fadas em que eu já não vou.
Todavia, sempre, é essencial ter em conta os tais dois tempos da política.  O das fadas é o tempo do sonho e das boas intenções. O outro tempo, das gentes com pés na terra, é o da crise, da acelerada caminhada em vórtex para a espiral recessão-dívida-recessão. É o do euro a colapsar sabe-se lá quando, mas ninguém a poder garantir que não antes da tal convenção do BE ou de os clubes nas margem esquerda do PS deixarem de ser só clubes de bom jantar. Por bonito e romântico que seja lembrarmo-nos de “le temps des cérises”, não é o tempo real. O tempo real é difícil de apreender, mas talvez isso seja a maior sabedoria política.
O tempo obriga a coisa tão simples e tão difícil, ao mesmo tempo: para corresponder eficazmente aos anseios ainda tantas vezes mal formulados por milhões de pessoas, é preciso urgentemente uma alternativa no plano político institucional, porque a arma política única dessa gente não é a saída à rua, é o voto. A rua é fundamental, indispensável como forma de luta, mas não vai dar nenhuma revolução em tempo útil, o tempo da provável implosão do euro, o tempo da certa miséria portuguesa.
Urgente é a oferta de uma alternativa partidária, de uma nova esquerda, consequente, e por isto capaz de ser apelativa, pela sua seriedade, ao voto de muita gente séria que acha que “assim não vamos lá”. Para toda esta gente, uma nova alternativa tem identificações essenciais, que são transversais, coisa comum a toda a gente bem formada: é honesta, incorruptível, não demagógica e com sentido da democracia real, participativa. Não é fácil, mas nada tem tanta força como ser necessário.

4 comentários:

  1. João, ao ler isto senti-me como diante do quadro do Munch. É um grito vindo das mesmas entranhas que me incomodam. Não consigo desfazer-me de toda a tralha inútil, só consigo acreditar quando ouço algo no silêncio dos inocentes. Afundam-nos em diagnósticos e matam-nos com as terapêuticas. Mas não consigo identificar a verdadeira doença. Suspeito que ela seja sobretudo o esvaziamento total da legitimidade democrática de que alguns se apoderaram invocando o bem dos que há muito deixaram de representar civicamente.
    Talvez que neste tempo esteja em gestação um levantamento, no mesmo sentido em que a tectónica de placas engendra uma alteração da geografia.

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  2. João, ao ler isto senti-me como diante do quadro do Munch. É um grito vindo das mesmas entranhas que me incomodam. Não consigo desfazer-me de toda a tralha inútil, só consigo acreditar quando ouço algo no silêncio dos inocentes. Afundam-nos em diagnósticos e matam-nos com as terapêuticas. Mas não consigo identificar a verdadeira doença. Suspeito que ela seja sobretudo o esvaziamento total da legitimidade democrática de que alguns se apoderaram invocando o bem dos que há muito deixaram de representar civicamente.
    Talvez que neste tempo esteja em gestação um levantamento, no mesmo sentido em que a tectónica de placas engendra uma alteração da geografia.

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  3. Caro, concordo e partilho a mesma inquietação.

    A minha questão agora é saber se havendo tanta gente como nós inquieta, existe ou não finalmente vontade efetiva de união, a que historicamente somos tão pouco dados, que nos permita ir mais além do que versões mais ou menos modernas das tertúlias de café.

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