Hoje vai tema pouco tratado nestas escritas, a estética e, mais especificamente, a arquitetura. Afinal, a política não é tudo na vida. A pergunta que faço parece-me raramente suscitada: qual é a responsabilidade profissional de um arquiteto? Ninguém duvida da responsabilidade do médico, do advogado, do engenheiro. Em contraste, ninguém coloca esta questão em relação a criadores, músicos, pintores, escultores, escritores.
Se um músico compõe uma obra imprestável, mal dele, vai condenado ao esquecimento da sua obra. O mau pintor não vende ou vê os seus quadros remetidos para a arrecadação. O escritor, idem. São atividades artísticas sem implicação social direta. Claro que a têm, indiretamente, por exemplo se um romance for de apologia racista sem aviso ao potencial comprador ou se um quadro em local público permanente retratar Hitler a subir aos céus transportado por anjos. Mas a condenação é fácil e retira a obra da esfera possível de influência. No limite, pode ser destruída.
Por isto, em geral, recuso obviamente qualquer “ditadura estética”, em relação às artes em que eu ou qualquer pessoa é o único juiz de gosto pessoal, o que não quer dizer que não procurando o auxílio da crítica. Até tenho defesas fáceis, como arrumar um livro lido só até meio, nem olhar para um quadro numa exposição, sair do cinema a meio (e tudo isto me acontece, embora, no último caso, por razões práticas, me aconteça mais dormir uma boa soneca).
A arquitetura é diferente. A obra arquitetónica raramente pode ser escamoteada e muito menos destruída depois da construção e, para o bem e para o mal, é uma presença ostensiva, no circular de uma cidade, para milhares de pessoas por dia. Pode ser uma lição de estética, um prazer de contemplação, um anúncio de evolução do gosto. E pode ser uma agressão que nos é imposta ao nosso prazer de bem ver a cidade. Temos direito ao bom ambiente. O que quer isto dizer? Bom ar e espaços verdes? Só? E bom ambiente estético?
Para mim, as torres das Amoreiras (confesso que já as banalizo) ou a sede aguitarrada do BNU na Av. Berna, bem como outras taveirices, insultam o meu sentido estético. Mas tenho o direito de falar no “meu” sentido estético? Quantos discordam dele? Quem é o juiz? Ou não tem de haver juiz? Perguntas de resposta difícil, todavia importantes.
O arquiteto não trabalha só para si e para o cliente, tendo este até pleno direito individual, de pagante, ao mais horroroso mau gosto (e não me venham com o “gostos não se discutem”). Ele impõe as suas obras à sociedade, ao contrário, como disse, dos seus relacionados pintores e escultores. A sua obra é pública (em relação ao aspeto exterior, ao volume, à ocupação de espaço público); a dos pintores e, em parte, a dos escultores, é privada.
O arquiteto não trabalha só para si e para o cliente, tendo este até pleno direito individual, de pagante, ao mais horroroso mau gosto (e não me venham com o “gostos não se discutem”). Ele impõe as suas obras à sociedade, ao contrário, como disse, dos seus relacionados pintores e escultores. A sua obra é pública (em relação ao aspeto exterior, ao volume, à ocupação de espaço público); a dos pintores e, em parte, a dos escultores, é privada.
Claro que não falo de obras controversas mas de indiscutível qualidade, problematizantes. Eu gosto do CCB e da Casa da Música, do pavilhão de Portugal na Expo, dos edifícios de Byrne no Estoril; não gosto das coisas de Pardal Monteiro depois do Técnico (mas este acho magnífico, até às torres novas); detesto o Areeiro do grande Cristino (o do Éden) e ainda mais a cidade universitária de Coimbra; não gosto da Caixa Geral de Depósitos em Lisboa; falando de África ex-portuguesa, gosto da racionalidade de Vieira da Costa, não gosto do artificialismo de Pancho Guedes; mas respeito inteiramente as opiniões contrárias. Porque são opiniões que têm em comum o reconhecimento da qualidade.
Afinal, como responder a tudo isto? Podemos arrasar a Brandoa? Vamos destruir os milhares de casas de emigrante espalhadas por todo o país, mormente no norte? Mas esse exagero impraticável é impeditivo de haver juízes de mínima qualidade artística antes da aprovação dos projetos? Mas, novamente mas, com que padrões e critérios? A democracia é complicada…!
Tudo isto vem a propósito da nova igreja do Restelo, de Troufa Real, que se vê na imagem, e que ele diz, sem que eu perceba minimamente, que, no Restelo, representa uma caravela. Estão mesmo a ver a caravela? Sem palavras.
Nota pessoal - Quase nenhum amigo meu, a não ser os dos tempos de liceu, sabe que hesitei bastante na escolha de curso. Deixadas para trás algumas coisas de dúvida efémera, como matemática - sinal da minha incontornável incapacidade idealista de lidar com o concreto - ou direito - só pelo prazer da retórica e da argumentação - ficaram duas coisas que não têm nada de comum, medicina e arquitetura. Ou melhor, têm uma coisa em comum, que me gabo de ter e que me foi muito útil no terrível estudo da anatomia do peritoneu, a intuição do espaço, da geometria tridimensional, o que faz que ainda hoje só falhe por poucos por cento quando digo que "esta parede mede 5 metros". Não levem a mal o gabar-me, é brincadeira ou então elogio de coisa herdada de avô e pai. Afinal, não fui na vida nem médico nem arquiteto. Sobre medicina ainda vou escrevendo de vez em quando. Hoje saiu-me a arquitetura.
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