sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A “Iniciativa Cidadã da Dívida”

Há dias, partilhando com um amigo críticas a algumas atuações de esquerda, dizia-me ele que não as divulgava porque, em guerra, não dava armas aos seus (nossos) inimigos. Tem razão, mas há o reverso da medalha. Mostrar que a esquerda é plural, que desperta e aceitas críticas no seu seio, sem que isto afete a unidade para a luta pelos objetivos comuns, são coiusas que só podem fazer a esquerda ser mais respeitada.
Isto vem a propósito da Iniciativa para a Auditoria Cidadã à dívida (IAC), que vai ter como lançamento a Convenção de Lisboa, no próximo sábado, 17. Sou um dos promotores iniciais, coisa que não renego, mas a proposta de declaração política merece-me algumas observações. Como o sítio da IAC não permite um texto tão longo como o meu, o que de forma alguma critico, aqui ficam as minhas observações.
Não são impeditivas do meu apoio à IAC, dado desde a primeira hora, mas, honestamente, e com o sentido do respeito e valor da pluralidade de opiniões, gostaria de as deixar registadas.
A IAC uma importante iniciativa política, convergindo com outras novas formas de intervenção política, participativa e alternativa. Não havendo ainda condições para uma unidade orgânica dos novos movimentos sociais ou dos movimentos políticos alternativos, a convergência no protesto contra políticas específicas, mesmo sem uma perspetiva global das lutas, é o passo possível mas promissor. 
Por outro lado, a IAC enquadra claramente a sua motivação e razão de convocatória da iniciativa numa visão  da crise financeira e da dívida, no quadro da crise geral do euro, que acolhe sem dificuldades diversas hipóteses de solução - com exclusão óbvia do austeritarismo e da atitude de economia moral de punição - o que pode e deve originar o diálogo entre as diversas opiniões alternativas no campo do “não ao austeritarismo neoliberal”.
Como escrevi, (“Hoje sabe-me a pouco!”), estamos em tal situação que é absoluta a fronteira entre o “sim” e o “não” ao austeritarismo e ao fanatismo ideológico dos economocratas neoliberais. Simplesmente, como sempre, o campo do não é muito mais diversificado do que o simplismo do sim.
Por isto, pessoalmente, apoio todas as iniciativas parcelares, mesmo que com perspetivas limitadas, que convirjam para o fortalecimento do não, mas não deixando de manifestar eventuais discordâncias, desde que não sejam de fundo e portanto impeditivas da minha adesão.
É neste sentido que noto que me parece haver uma importante diferença do projeto de resolução em relação ao manifesto de lançamento da iniciativa, que subscrevi. No ponto 2.5 do projeto, parece-me claro que se considera a auditoria como prévia à reestruturação. No 3.1, fala-se de ilegalidade e de ilegitimidade a par de insustentabilidade. Novamente se diz, neste ponto, que a reestruturação é em função dos resultados da auditoria.
Parece-me haver nisto três riscos principais, pelo menos para quem, como eu, defende uma abordagem radical da nossa crise, com reestruturação da dívida a curto prazo e/ou preparação da saída do euro. Não rejeito que a reestruturação deva diferenciar tipos de dívida, mas os critérios dessa diferenciação devem ser definidos no imediato, com a decisão de reestruturar, ficando a auditoria para a fase seguinte, de apreciação casuística das dívidas. Parecendo ser quase a mesma coisa, é muito diferente em eficácia e clareza política.
1 - Há um tom que me parece evidente de “economia moral”, para mim tão errado como o da punição dos incumpridores e coisas do género, do outro lado. A meu ver, decisões como a reestruturação ou a saída do euro são objetivamente determinadas. A auditoria é muito importante como ação política, como bandeira, no quadro geral da luta do “não”, mas é instrumental, não é um componente obrigatório do eixo principal do processo de luta contra a política de austeridade. Quem ganha as batalhas são os infantes, cavaleiros e artilheiros, não os porta-bandeiras nem os tambores. 
Porque, corrigindo, nem sequer é a luta contra a política de austeridade que é central, mas sim a luta contra o processo bem definido na prática que é o plano consagrado nos memorandos e exagerado pelo governo. Essa luta, repito, é norteada por critérios políticos objetivos, não morais (claro que não estou a dizer que não haja uma dimensão moral na política).
A auditoria insere-se nesse processo de luta mas a par de muitas outras iniciativas possíveis. Só por si, não resolve o problema, todos concordamos, mas parece que discordamos em que ela seja condição prévia e necessária. Voltando à questão “moral”, deixo um exemplo que me parece demonstrar as ambiguidades deste processo: a dívida para com a troika. Quando recebermos a totalidade dos 78 mM €, representa 45% da atual dívida pública. Não é dispiciendo. Mas vamos falar dela em termos de legitimidade ou ilegitimidade? É evidente que é um problema estritamente político, considerando a natureza muito especial desses credores. Até porque, em termos morais, ela foi legitimada, a posteriori e na prática, pelo resultado das eleições.
Da mesma forma, vamos discutir o valor moral da dívida pública esquecendo a dívida privada, mormente a da banca? E como se discute o valor moral da atuação bancária fora de uma perspetiva ideológica sobre o capitalismo nesta fase moderna da supremacia do capital financeiro e da especulação não produtiva?
2 - Outro risco é o de formulações como as que exemplifiquei reforçarem posições suaves ou “modestas”: i. “renegociação” limitada à troika e aos prazos e juros (posição do BE); ii. crença eurofílica na fada da boa Europa, com que todos os problemas sistémicos da crise do euro se resolverão por um avanço de um projeto que cada vez mais se mostra errado e certamente a agravar-se, com estes governos e dirigentes europeus, se não houver, pelo contrário, um retorno radical às raízes (idem, BE); iii. posições de compromisso quase nada como da hoje célebre “proposta modesta” de Varoufakis e Holland. 
Claro que respeito estas opiniões e, na perspetiva que defendo para mim próprio da convergência hoje necessária, não as critico, mas tenho pena que, a meu ver, distraiam do essencial.
  
3 - Talvez mais importante seja o problema do tempo. O euro está a desmoronar-se, já é truismo dizer isto. O que será de propostas “modestas” ou baseadas na fada da boa Europa se o euro se for pelo alçapão daqui a um ano ou dois - e nem digo semanas ou meses (ou a partir de hoje, se falhar a cimeira), como prevêm reputados economistas, chamem-lhes pessimistas? E em que fase de trabalho e com que resultados estará qualquer auditoria? E entretanto a esquerda preparou e propôs algum plano de emergência ou de contingência, como já estão a preparar os grandes bancos, confessadamente o Banco de Inglaterra? Como somos poucos e não podemos ir a todas, não era bom pensarmos em prioridades?
Também o tempo nacional. Quais as consequências, vistas no tempo, do plano da troika? Lembram-se de que a Grécia, a da grande tragédia, do desatre, só vai com ano e meio de troika? Podemos arriscar afirmações do tipo “antes do mais a auditoria”, sem darmos tanto ou mais atenção a outras atuações?
E não é só um problema do tempo, é também um problema de “quem”. Obviamente, a mesma auditoria é completamente diferente se da iniciativa de um governo do “não”, a reforçar a sua posição política, ou se da iniciativa da oposição da rua. E o “quem” aqui também é tempo e eficácia.
Dito tudo isto, claro que não nego a importância e alcance político da IAC. Senão, não estava nela nem a gastar o vosso e o meu tempo com estas reflexões. Receio é que estejamos a subalternizar outras intervenções. Ou será porque esta iniciativa parece estar a permitir facilmente a convergência de variados movimentos e pessoas, ou que se esteja a pensar no fator internacional como favorecedor? Ou a contar com o apoio logístico do BE, que há muito tempo vem a propor esta ação política, na moda internacional, coisa que conta sempre muito para o BE (os outros que puxem pela cabeça)?

(Imagem: Lucas Cranach, o Velho, "Adão e Eva" ou o pecado original)

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