terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O que pagar e a quem pagar?

Pagar ou não pagar? Há tempos, esta pergunta não fazia sentido para muita gente. Hoje começa a fazer. Pagar o quê? Há tempos, esta pergunta não fazia sentido para muita gente. Hoje começa a fazer. Pagar a quem? Há tempos, esta pergunta não fazia sentido para muita gente. Hoje começa a fazer.
Como a questão se põe só recentemente para muita gente, que agora começa a questionar, até dentro do seu partido, a posição ambígua e de “proposta modesta” de uma renegociação cordata de prazos e taxas de juro, é bom lembrar algumas coisas bem simples.
Há um discurso moral sobre a dívida, esquecendo que a economia moral é tão má à direita como à esquerda. “Paga-se a que é legítima, moralmente correta”. Claro que isto exige o juiz da moralidade. Por onde campeia a ideia, o juiz é um pequeno coletivo de cidadãos, com juízos que ficam em grupo de amigos e que não chegam aos milhões dos seus concidadãos.
Pode-se chegar a uma situação limite. Portugal tem uma dívida total de cerca de 400 mil milhões de euros (mM€), cerca de 217% do PIB, da qual menos de metade (170 mM€, 93% do PIB) é que é dívida pública. Na prática, só esta é que é analisável, porque se pode, pelo menos em princípio, obter os dados oficiais. Como é que se pode auditar a dívida privada?
Em relação à dívida pública é fácil, mas como analisar moralmente, por exemplo, a dívida  em relação à troika, com grande peso na dívida pública? E, em relação à dívida pública, simplesmente, só coisas irrelevantes podem vir ao de cima por esta análise, uns submarinos ou uns truques contabilísticos. A dívida não é consignada, é encaixe genérico e obscuro para cobrir as necessidades de pagamentos do Estado. Afinal, tudo está bem visível no orçamento de Estado. O Estado recebe x, faz despesa de y. Tem ainda de pagar o serviço da dívida, tem de amortizar a que chega ao fim do prazo, tem de a substituir por nova dívida. Com isto, y passa a y'. Para cobrir a diferença z=y'-x, o Estado emite dívida z. Elementar, meu caro Watson.
Isto é elementar. Onde é que se pode aqui fazer juízos morais sobre a dívida, o que é legítimo, moral, sobre esse bolo amorfo que é z? Os juízos são políticos. Se pensarmos só no acréscimo de dívida decorrente do défice primário (isto é, a diferença entre receitas e despesas públicas sem contar com o serviço da dívida), o juízo moral não é sobre a dívida, é sobre a política orçamental do governo.
E não vale discutir as PPP. Ou melhor, não vale discuti-las na análise da dívida, porque ela não é dívida atual. É coisa politicamente muito importante, compromisso para o futuro, mas só se fizeram tantas abusivas PPP exatamente porque não contam para as contas da dívida.
Diferente é discutir a dívida privada, mormente a da banca. Aqui até aceito bem juízos morais: como é que a banca comprou dívida pública a juro de 7% ou mais com dinheiros emprestados pelo BCE a 1% de juro? Do mesmo BCE que cobra 5% de juros no resgate a Portugal, aquilo que as pessoas conhecem como o plano da troika? Mas pergunte-se: não se paga esta coisa ilegítima? Deixa-se falir os bancos nacionais, enquanto se respeitam os grandes credores bancários europeus? Não se pensa nos efeitos no financiamento da economia? Ou - o que não se diz nas propostas modestas, nas auditorias - pura e simplesmente se nacionaliza a banca e se vai à origem desta crise mundial, a desregulação total do capital financeiro? Isto não tem nada a ver com moralismos resultantes de auditorias de “legitimidade”, é pura e simples política.
Esta coisa de “economia moral de esquerda” está na moda. É claro que é muito importante como bandeira política, os seus trabalhos e conclusões esclarecem os cidadãos dominados pela outra economia moral, a de direita, a das culpas dos devedores, da inevitabilidade de pagar de rastos o preço dessa culpa.
Mas nunca a política foi só isto. Como ouvi há dias, “a minha família sempre pagou as suas dívidas, só não as que eram ilegítimas, que não eram da nossa responsabilidade; é o que temos de fazer como país” (não consegui perceber o que são, no caso de uma família, as dívidas que não são da sua responsabilidade). É a tal economia moral, da dívida legítima ou ilegítima. Isto é a mais retinta herança da ideia salazarista indigente (ou não, que o homem não tinha nada de pobreza de inteligência) de que um país se governa como a sua casa beirã. 

A política, e a sua economia, é a gestão das responsabilidades coletivas. A de cumprir compromissos, pagar o que se deve, é uma responsabilidade, é a tal de como nas famílias. Mas há outras responsabilidades a pesar, a do desenvolvimento, do bem estar do povo, da segurança social e da facultação dos direitos elementares. E mesmo que se aceite a analogia da família honesta, há pais que ponham as filhas na prostituição para a família cumprir o dever sagrado de pagar as dívidas?
A auditoria à dívida começa com o caso do Equador. E muito bem e com sucesso, mas tendo de se ver porquê. Caso único. Foi numa iniciativa do governo que, antes ou em concomitância, tinha decidido reestruturar a dívida. Não esperou pelo resultado da auditoria, decidiu por critérios exclusivamente políticos e económicos que faria um enorme “corte de cabelo”, 70%. A auditoria serviu principalmente de justificação política e propagandista das medidas políticas, junto da opinião interna e internacional. Foi usada por num governo que a facilitou, não contra um governo que lhe vai secar as fontes.
No caso português, o que conta é saber se vamos e como reestruturar a dívida. E, no “corte de cabelo” inevitável, que critérios usar para decidir quem vai sofrer e quanto. Insisto: critérios políticos, não morais. Por exemplo, dos tais 400 mM€, 78 são de dívida à troika. Parece-me evidente que, politicamente, esta dívida tem de ser paga. Mas porque é legítima? Muito escreveria sobre a moralidade deste recurso ao resgate troikiano.
A reestruturação de uma dívida faz-se num fim de semana, com critérios estritamente objetivos, políticos e económicos. Devemos x, só podemos pagar y, é tudo. Faço corte de cabelo, não me interessa, em primeira fase, se é mais na testa ou se na nuca. Mais ainda quando se coloca outra questão essencial, também obrigatoriamente a decidir num fim de semana: reestruturamos no âmbito da eurolândia ou começamos por sair do euro? Não há nada de moral nisto. “It’s politics, stupid!”
Dito tudo isto, mantenho que toda e qualquer iniciativa que vá contra a hegemonia do pensamento neoliberal e da suas tradução de prática política, do eixo merkoziano até aos lacaios do nosso espaço doméstico, me merece apoio e simpatia. Mas, porque acho que me sabe a pouco, que fica sempre a faltar o essencial, a alternativa política que aponte para milhões de eleitores perplexos, não deixo de dizer que, entretanto, o rei vai nu.

P. S. - Em homenagem ao comentário de JMCP, aqui fica como imagem a lembrança de alguém cuja leitura se recomenda.

(Nicolau Maquiavel, por Santi di Tito)

1 comentário:

  1. Sim, obviamente. Essa coisa de misturar a moral com a política é uma coisa perigosa. Mas será que há agora uma esquerda pré-maquiavélica? O primeiro grande nome da filosofia política moderna do Ocidente! Que regressão...

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