quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Intoxicação mental

Dormir mal pode ser sinal de Alzheimer. É uma descoberta científica que poderá levar à detecção e tratamento do Alzheimer numa fase ainda precoce da doença (...)”. Esta notícia do Expresso pode parecer uma coisa menor nas preocupações gerais, mas quantas pessoas com insónias não ficarão preocupadas? E até, em ciclo vicioso, com mais insónias (provadamente, neste caso, efeito de a notícia agravar a ansiedade, como eu e muita gente sabe, nesta vida "stressada"), logo mais preocupação, logo mais insónias, logo mais pavor do Alzheimer ao dobrar da vida. Já estão a pensar no futuro num lar, na demência, na tristeza de vida, até no abandono pela família.

Isto não é formalmente criminoso, não aparece no Código Penal, mas é irresponsável e imoral. É como os políticos que dizem que cumprem a ética porque não cometem ilegalidades. 

Devem ser censuradas notícias destas? Obviamente que não. Só aceito a censura [ver nota 1] em casos expressamente previstos pela Constituição, como seja a apologia de crimes ou de ataque a valores civilizacionais consensuais. O que está aqui em causa é outra coisa de que muito me queixo, com frequência: a irresponsabilidade e incompetência da comunicação social. 

O nosso “quarto poder” não fica nada a dever em mediocridade aos poderes formais e institucionais que tanto  critica. E as universidades que deitam cá para fora, com muito sucesso - quer dizer, muitas inscrições de alunos, muitas receitas - toda esta nova vaga de jornalistas, assessores de relações públicas, multimediáticos, comunicativos, inventores (ou copistas) de joguinhos infantis para entretenimento grupal de reuniões de empresas, deviam pensar no que estão a fazer.

Um jornalista competente deve ser um pedagogo. Pelo menos um autocrítico consciente do que de pedagogia perversa pode ter a sua notícia, ou aquela que acriticamente transcreveu de uma agência que, por sua vez... 

Neste caso, relataria o achado mas chamando a atenção para que ele é de simples correlação (como tanta coisa na medicina); que a insónia é muito frequente e que se deve na maioria dos casos a situações sem grande ou nenhuma importância patológica; e que de forma alguma esta coincidência tem o significado, por exemplo, de expetoração com sangue, dores fortes e frequentes no peito, icterícia, sangue na urina, falta de sensibilidade nos pés, etc., sinais de alerta para doenças graves (não estou a falar de Alzheimer). Obviamente que, na constelação de sintomas e sinais do Alzheimer, a insónia, a confirmar-se este resultado, é sinal menor, a não justificar alerta ou a permitir diagnóstico precoce e de forma alguma sinal patognomónico (um palavrão médico que podem ver na Wikipedia).

Mesmo assim, não basta o aperfeiçoamento da qualidade da comunicação tradicional para nos proteger. Os meios profissionais, como o da ciência, sujeitos hoje a enormes e perversas tensões competitivas, assim como as suas instituições, têm comportamentos que vão ao encontro da quase desonestidade na informação académica [nota 2]. E a net?

No campo da saúde, não se recebem quase todos os dias (ainda não percebi porquê, é geralmente a partir do Brasil) as coisas mais inimagináveis de desinformação, mesmo perigosa ou, pelo menos, traumatizante para pessoas com problemas médicos? Como poderei classificar a perturbação de uma amiga, com carcinoma da mama, tratado e com boa evolução, que estava angustiada por “ter sabido” pela net que o seu cancro era causado pelo consumo de leite? Claro que compreendeu o que lhe disse, que, ao seu mal não devia acrescentar uma osteoporose!

Ou a campanha contra as vacinas, que já causou o reaparecimento de doenças praticamente já extintas, como o sarampo - que pode ser mortal? Ou a apologia de medicinas alternativas que, mesmo que não lesivas diretamente, têm o risco de afastar o doente da verdadeira terapia, deixando-o entregue a um simples efeito placebo? Ou campanhas de denegrimento de um produto (por exemplo, o recente alerta contra o risco cancerígeno dos desodorizantes, ou há tempos contra o SDS componente de alguns cremes cosméticos - curiosamente, é em geral na área dos cosméticos), que tresandam a ação encoberta de empresas rivais?

Os governos, as organizações internacionais de saúde, algumas grandes fundações, têm feito um trabalho notável para reduzir o flagelo das intoxicações - drogas, álcool, tabaco. Mas quem e como nos pode proteger desta “net-toxicidade”? Até porque, ao contrário do tabaco que não tem qualquer benefício, a net contrapõe a esse lado do mal, tóxico, as enormes vantagens que conhecemos. Senão, não podia estar agora a escrever-vos neste “blogue”.
NOTA 1 - No caso em que disse que aceitava a censura, até há muita gente, e meus bons amigos, que não concordam comigo, achando que a proteção da sociedade se faz a posteriori, por condenação do ato criminoso de expressão. De facto, invoquei incorretamente a Constituição, que pune mas não previne. Tenho dúvidas da eficácia disto, depois do mal estar feito. Mas também é verdade que fica sempre questão importante: quem decidiria a priori, como censura? E quem guardaria os guardas, "quis custodiat ipsos custodes?", velha questão que os romanos, pela voz de Juvenal, punham no centro da sua conceção da democracia?


NOTA 2 - Para ser justo, devo também culpar a minha comunidade científica. Um dia escreverei a sério sobre isto, mas aqui deixo alguns apontamentos. De certa forma, alegra-me já estar fora da investigação. Era coisa em que o mérito era estritamente intelectual, reconhecido pela estima dos pares, pelo significado indiscutível da autoria de bons artigos, em lista de três ou quatro autores, no primeiro lugar quando se era jovem e se fazia todo o trabalho duro de bancada, no último lugar quando se dirigia o trabalho. Orgulhávamo-nos de trabalho que era simplesmente bom, era cientificamente "bonito" e relevante, não era preciso que servisse para mais do que aumentar o conhecimento e educar cientificamente. 

Não havia conferências de imprensa antes de o artigo estar publicado, não se anunciava que um mero resultado científico modesto ia permitir curar o cancro ou permitir o seu diagnóstico precoce. Não havia comunicados a anunciar projetos que ainda nem começaram mas que já se sabe que vão dar prémio Nobel. Não se valorizava estar na 59ª posição da lista de 120 autores de um mega-artigo de "colaboração" internacional (de facto, frequentemente, de exploração internacional). Ríamo-nos de quem publicava muito porque tinha uma "caixa negra" (por exemplo, uma tecnologia avançada) por onde entrava produto químico e saia artigo, sem que o autor percebesse minimamente o que era o problema científico em causa. Enfim, a pequena comunidade científica não era a atual feira de vaidades. Em suma, estou velho e fora desta carroça. Mas também não quero estar nela.

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