segunda-feira, 21 de maio de 2012

Uma peça em três atos

1º ato, 2010-2011.
A crise é fundamentalmente de indisciplina governativa, do défice orçamental, de países periféricos laxistas. Diziam isto os do núcleo duro do neoliberalismo ou ordocapitalismo, infelizmente também muitos portugueses com osteoporose vertebral. A seguir, mais especificamente, a crise é da dívida. No caso da Espanha e da Irlanda, só a sotto voce se admitia que essa malfadada dívida era principalmente da banca, embrulhada na bolha imobiliária. Em todo o caso, como vamos sempre precisar de dinheiro, o primeiro objetivo é recuperarmos a confiança dos mercados, dos Gekkos, dos predadores, gente que, por natureza, atua sempre com base em coisas morais como a confiança, a lealdade, a solidariedade.
Os abandalhados do sul têm de pagar e aprender. As lições e os castigos dos alemães nunca custarão a estes próprios. A populaça alemã aceitou acarneiradamente uma considerável redução do seu poder de compra - a desvalorização interna - mas agora não admite pagar para os gregos (e portugueses) porque, apesar de isto ser essencial para garantir o euro, os alemães não percebem minimamente como dependem do euro, que é o que têm porque o velho marco se acabou. Pior, os portugueses também não o percebem e não usam isto a seu favor.
Uma senhora quadrada e medíocre que veio do frio tem feito neste tempo um percurso balizado pela indoutrinação dos seus economistas de serviço e pelo taticismo pequeno-partidário das suas eleições. Nada pior para quem mexe o motor europeu e para quem dá a mão a beijar a uns rapazitos periféricos. Portanto, ordens de serviço militar, com a flexibilidade intelectual que por natureza essas ordens têm. Défice orçamental máximo de 3% do PIB, dívida pública máxima de 60% do PIB, inflação máxima de 2%. Claro que todos estes parâmetros são “religiosos”, até a querer-se que fixados nas constituições. Por exemplo, os EUA, com a política expansionista e neo-keynesiana de Obama, acham muito aceitável, temporariamente, um défice orçamental de 10%.
Uns “tontos”, até na onda bem comportada de “propostas modestas”, propuseram mutualizações da dívida, integração dos sistemas bancários europeus, emissão de “eurobonds”, taxa Tobin, realocação dos fundos europeus, etc. No entanto, “nein”, “nein”, “nein”! Patético! A Europa só será Europa quando a Alemanha, como jangada de pedra, se for para o Ártico com a temperatura que lhes vai no genoma, exceto quando vêm gozar o clima destes seus devassos companheiros sulistas.
A par de tudo isto, a hegemonia ideológica da economia moral. Pobrezinhos mas honradinhos. Um país governa-se como uma casa de família de S. Comba Dão. Os mercados, gente tão séria, cuidado, não os enervemos! O Estado é a corrupção e a incompetência, viva a iniciativa privada. Vivemos acima dos nossos meios. Não há dinheiro, ninguém nos empresta (como se o dinheiro viesse do crédito e não da produção). O nosso poder político importante é que ainda estamios em democracia e podemos dizer que o passos Coelho tem melhor aspeto, veste melhor e aldraba menos nas licenciaturas videirinhas do que o Sócrates, ou vice-versa. Etc.
Entretanto, já então conversava com alguns mais esclarecidos ou preocupados, mesmo que muito longe da minha posição revolucionária. Coisa típica, disse-me alguém muito próximo, que respeito, que em 2011 votaria CDS porque ao menos  tentava conciliar austeridade com crescimento. Elogio a premonição, quando só agora, com Hollande, se põe isto na discussão, mas não consigo perceber como é que  se imagina algum crescimento na espiral recessionista de empobrecimento, desemprego, perda de poder de compra, contração da “procura agregada”, “solução” do défice essencialmente por redução da despesa, donde incapacidade de investimento, diminuição do PIB e portanto do denominador de todos os índices (daí aritmética elementar).
Há dias, confesso que como quem atira barro à parede, dizia em conversa de amigos que isto era coisa para um buraco negro de pelo menos 30 anos. O meu grilo disciplinou-me, “talvez estejas a exagerar, como é que podes adiantar com rigor um número desses tão exagerado?”. Afinal, é exatamente a previsão posterior de um grande comentarista económico (e alemão!), Heiner Flassbeck. 
Finalmente, nesta fase, começou o BCE de Trichet a avançar um pezinho. Muitos saberão que, no negócio Miterrand-Khol do euro, a Alemanha ganhou o desenho do sistema à imagem e semelhança do Bundesbank. O BCE não é minimamente um instrumento de política financeira, não apoia e garante um orçamento federal, não emite dívida nem sequer a monetariza, e tem por regra absoluta controlar a inflação, o pavor histórico dos alemães, pensando em Weimar. Quanto aos investimentos e ao seu banco, o BEI, nicles.
No entanto, este jogo de “clarezas” jurídicas e políticas (dos tratados) e de "real politik" tem muito que se lhe diga. O BCE não pode subscrever dívidas nacionais mas fartou-se de as comprar nos mercados secundários.
Isto mostra, como muitas outras coisas, que a política é uma comédia de enganos, não é coisa para quem quer lê-la com a seriedade da Bíblia. Que, tal como a economia de um estado não é a economia de uma família, a moralidade da política também não é, nem pode, nem deve ser o aperto de mão de "gentlemen". “Politics: it’s fight, stupid!”. Voltarei a isto.
2º ato, 2011-2012.
Começa a abrir-se uma frecha na frente ideológica ou religiosa da receita austeritária derivada do catecismo neoliberal, tão devoto, dogmático, intelectualmente indigente como qualquer outro catecismo. As TVs, olhinho esperto para as audiências, começam a perceber que o homem comum já desconfia da certeza ducal ou cantigueira. Os jovens economistas das minhas relações, pretensamente formatados pelas escolas que agora têm nomes ridículos em inglês, metem-se em brios, querem pensar por si.
O BCE admite finalmente, mesmo que só para si próprio, que o centro da crise é o sistema financeiro e desata a financiar os bancos, a taixa de juro baixíssima, quase nula, com que eles vão comprar, a juro muito superior, a dívida soberana dos seus próprios países. Há séculos, um traidor destes seria decapitado. Mas é coisa indiscutível: a banca é coisa sagrada, garantia da sobrevivência dos povos e dos seus estados. Alguém imagina Portugal sem Ricardo Salgado? Eu imagino! “Without you”.
Os nobéis americanos falam em uníssono, espantando-se, envergonhando-se, com os seus colegas académicos europeus. De forma alguma estranha, se formos ver os percursos profissionais de Gaspar, Draghi, Monti, Papademous, etc. Todos a passarem pela porta giratória de governos / organizações internacionais / Goldman-Sachs. Foram fadados como apóstolos de uma religião, têm de cumprir essa missão. Não são obrigatoriamente más pessoas, como talvez não fossem Torquemada ou Savonarola. Já agora, em termos de apreciação meramente psicológica, de devaneio intelectual, bem gostaria de testemunhar uma conversa dos dois primos, Gaspar e Louçã. Deve ser tristemente divertido. 
A Grécia tem papel principal neste ato, a prenunciar o próximo. Uma personagem gorda e pomposa avança e destila discurso troikiano convencional, mas há um coro ainda um pouco silencioso, dramaticamente clássico, que percebe que tudo aquilo soa a falso, que não vão cumprir.
No fundo do palco, enquanto o tal ator grego entra em “pathos”, o coro europeu entra em sinais subtis de pânico. Desde logo passa uma fila de banqueiros que cantam coisa triste, “já pagámos, já reestruturámos e não vai dar nada”.
Ao mesmo tempo, uma fila de soldados gritando “nein, nein, nein”.
Entreato, 2012-2012. 
Enquanto os espe(c)tadores comem um croquete, alguém lembra algumas coisas:
Houve eleições na Grécia. Eleições são eleições, indiscutíveis, mas bem houve quem arrotasse contra a falta de sabedoria dos gregos, que chatice, mais a necessidade de eleições daqui a um mês. Estes gregos irresponsáveis que nos lixaram a tranquilidade germânica do euro vão continuar a olhar de soslaio para nós portugueses, tão bem comportados, tão admiradores dos fritzes (Hotel Palácio do Estoril!)?
3º ato. 2012.
Sobe o pano e mostram-se numa tela imagens da eleição de Hollande e das eleições gregas. Também do discurso da Bastilha de Mélenchon. Com a projeção da imagem de Hollande, alternam dois gritos: “austeridade” e “crescimento”, coisas claramente compatíveis para efeitos de comício, mas tão só. As pessoas ficam confusas, mas tudo isto é circo e espetáculo, mesmo quando, lá ao cantinho, vem Seguro dizer que também dizia o mesmo cá na parvónia. Tratado da disciplina orçamental com um anexo de um parágrafo anodino sobre crescimento. Não há pachorra!
Ligação a Washington, ao FMI, à Sra Lagarde: “austeridade mais crescimento”. Ligação a Timor, a Cavaco: “austeridade mais crescimento”. “Estamos a brincar ou quê?” (desculpa, Carlão angolano, não pensava vir a citar-te tanto!).
Entretanto, passa à boca de cena uma coluna militar em passo de ganso, dizendo que a Alemanha estará sempre contra, “nein, nein, nein”. Sai pela direita alta e espreita uma cara à Draghi que diz com elegância italiana “tá, tá, a senhora diz que manda, mas aqui de Francforte/Paquetá eu decreto que a morena é linda e que me vou derramar, em sua honra, em injeções nos bancos, trincando uma coxinha de frango ou de galinha”.
Depois de uma fila confusa de gregos mais ou menos gordos e bigodaços, vem um atrevido que diz que a Syriza vai dar uma volta nisto. Para já, vai rasgar o memorando com a troika embora sem sair do euro. Será isto possível? Isto ou outras formas de usar a nosso favor que os grandes perdedores da crise do euro serão os alemães? Fica para o próximo capítulo.
Claro que é epílogo importante, aquele em que o autor quer dizer que a tragédia pode não ser farsa, pode ter dimensão heróica.
P. S. - Faltou dizer que também entram no espetáculo, pelas coxias de ambos lados, a Argentina e a Islândia.

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