sexta-feira, 18 de maio de 2012

A esquerda (I)


Ia escrever já - e vou fazê-lo logo a seguir - sobre coisas recentes que discutem formas de relacionamento “à esquerda”. Esquerda? Esquerda radical? Esquerda radical de nome mas de facto conservadora? Esquerda moderada? Centro-esquerda? Gente de esquerda que depois gente das minhas relações usa contra mim por serem oportunistas? Eu, de esquerda, afinal o que sou? Quando alguém muito chegado me trata simplesmente como “amigo do Louçã”? Fiquei com dificuldade, achei que, neste mundo comunicacional tão equívoco, precisava de fazer uma espécie de “declaração de interesses”.
Isto de esquerda tem hoje muito que se lhe diga. O meu mais querido grilo falante até acha que, para alcance do meu “discurso” junto de muita gente, eu nem devia usar o termo, devia inventar outro. Mas não consigo, ele está ligado a todos os meus neurónios, sai-me com a naturalidade incontrolável da respiração. 
Também ainda hoje me dizia um amigo - que nada é de esquerda, o que não tem nada a ver com ser meu amigo - que aceitava este meu entitulamento mas que não o confundia com coisas trogloditas que lê (vinha a propósito de uma incrível tomada de posição de uma daquelas coisas muito mais papistas do que o papa que o PCP criou e que ainda vão sobrevivendo por aí).
Reparo com isto que nunca me defini bem publicamente. Nem interessaria, em princípio, porque muito mais valem as posições e teses do que as etiquetas. Também porque um homem educado não fala de si próprio, deve escrever de forma a que os leitores o saibam identificar sem ele exibir a sua caracterização pessoal, os seus afetos, as suas dores de vida, as suas doenças ou dos seus queridos. Todavia, estamos em tempos muitos difíceis que justificam alguma clarificação, porque são tempos propícios a enormes confusões, de que vejo diariamente muitos se aproveitarem, aldrabando os leitores honestos mas pouco críticos. Não exijo aos outros essa clarificação, mas sinto o dever de a fazer. Quero que, ao lerem o que escrevi ou escreverei neste “blogue”, os leitores tenham o filtro que lhes permitam ver se o que eu escrevo é objetivo ou ideológico (o que até nem é incompatível). 
Sei que me arrisco à acusação de estar assim a ser um exibicionista presunçoso de pergaminhos políticos, culturais. Tudo pesado, vou pelo meu impulso talvez boçalmente primário, de simplesmente me apetecer que me saibam situar, que não me confundam com tanta aldrabice intelectual e política que por aí anda. Afinal, não será interessante que se compreenda o que pode ser o percurso de vida intelectual-política de um homem obscuro, em vez de se olhar só para as ideologico-acrobacias espertalhaças dos homens mediáticos, que deixam o cidadão comum perplexo?
Que mais não seja, isto serve para que eu me sinta tranquilo na próxima quinta feira, na magnífica hora semanal em que, com os meus alunos, divagamos por exercícios práticos  de concretização do tema “pomposo” da minha disciplina de Racionalidade Científica. Eles gostam muito e eu gosto muito de que eles gostem muito. Não são aulas, são conversas. Ainda anteontem ficamos a meio de um tema que eles é que tinham proposto, o desenvolvimento sustentado/sustentável (a conversa até começou por esta discussão de adjetivos - são sinónimos?). À socapa, tomei nota de um excelente diagrama que um dos meus alunos foi escrever no quadro sobre as esferas de interação no desenvolvimento. A propósito, senhores professores, sabem mesmo o que é o paradigma de Bolonha?
Em termos absolutamente objetivos, sou um ex-comunista, com o percurso típico, disciplinadamente assumido, de um comunista dos anos 60. Interrompi esse percurso durante alguns anos, após a derrota da revolução checa; entendi que o devia retomar no 25 de abril, até que houvesse tempo para  discutir essas coisas passadas. Nunca houve, até me ter cansado, em 1980. 
Não tenho nenhuma ligação partidária. Sou muito crítico, por razões diversas, dos dois partidos  que toda a gente identifica “à esquerda”, o PCP e o BE (claro que nem falo de uma obscenidade política que dá pelo nome de Verdes). Prefiro localizar-me por referências ideológicas, mais do que por simpatias partidárias, que não tenho (a não ser pelo partido utópico do voto em branco).
Podia fazer o brilharete de me apresentar situando-me nessa coisa muito vaga e ambígua da pós-modernidade - embora, na minha passagem pelo MDP, muito tenha escrito sobre isso, em termos de “alternatividade”. Há muitos anos que escrevi sobre os movimentos sociais, a democracia participativa, a qualidade de vida e o “desenvolvimento humano”, as sociedades de dois terços, etc., muito mais coisas que agora estão na moda. Todavia, acho, honestamente, que nunca me refugiei na defesa destas tendências de enorme importância histórica, mas ainda distantes, para esconder a minha incapacidade - ou não - de fazer a política de hoje, no lugar e no tempo concreto. Talvez porque, felizmente, não dependo na minha singeleza de vida - fora alguns gostos bem burgueses mas economicamente comedidos - de projetos, observatórios, conivências com poderes, que obrigam a artes circenses de equilíbrio entre demagogia de falas a acampados e subscrição de manifestos situacionistas, expresidenciais, bem comportados e politicamente engravatados. 
Não sou marxista, porque acho que a maior ofensa que se pode fazer a Marx é embuti-lo num sistema, numa caixa etiquetada. Foi um génio, contraditório. Quem o ler bem, notará facilmente as diferenças entre o Marx cientista (à maneira da sua época) do Capital, o Marx filósofo alemão (!) das teses, o homem com sentido prático e político do Manifesto, a mente excecionalmente plástica da Sagrada Família e outros textos. Não o sacralizo, mas, dizendo que, por coerência com ele próprio não sou marxista, deixo claro que, ainda hoje, é a matriz da minha elaboração mental, claro que aberta à assimilação de tudo o que veio depois.
Em relação à galeria habitual dos retratos icónicos, esqueço Engels, coitado, patético, generosidade sem limites mas criador fraquito. Passo ao seguinte. Leninista fui, como jovem comunista, mas logo a convulsão de Praga me fez ver que muito estava na rigidez e no esquematismo do pensamento leninista, embora pensamento de alto nível intelectual. É curioso, e discuti muito isso com um caro amigo do grupo dos seis, que, em tempos de Gorbachov, como ele fez, se tivesse querido salvar a  memória de outubro com o elogio de Lenine.  Alguém ainda se lembra de que esse grupo, com Vital Moreira em destaque, se perdia em grandes devaneios sobre Bukharin, Zinoviev ou Kamenev (alguém sabem quem foram?), as grandes vítimas de Estaline? Claro que o hoje nosso grande defensor do ordocapitalismo tem coisas muito mais palpáveis sobre que escrever, lá de Estrasburgo.
Obviamente sem uma palavra sobre Estaline ou Mao (mas devia tê-la sobre Cunhal, houvesse tempo), não posso deixar de referir outra minha grande influência magistral, creio que com grande importância para a crise que vivemos: Gramsci!
De Gramsci, como já tantas vezes aqui tenho lembrado, julgo indispensável refletirmos hoje sobre o seu conceito da hegemonia. O marxismo considerado primariamente como simples jogo de forças de poderes estruturais ou infra-estruturais, mas sempre objetivos ou materiais (no sentido filosófico do termo) - e é aqui que Lenine começa a adulteração de muito do que Marx escreveu - acaba por considerar os homens como agentes mas também essencialmente objetos históricos de uma simples racionalidade económica, com algum vício de determinismo histórico. O plano subjetivo, das ideias, das motivações, das "remunerações", dos mitos e pavores, contava pouco, talvez porque a subtileza europeia ocidental da dimensão humana tinha pouco a ver com a rudeza não humanista da tradição russa (de tal forma que Marx, não tendo tido tempo para maior elaboração, remeteu a Rússia e a China para o “modo de produção asiático” - ironia da história!).
O que Gramsci nos vem dizer pode parecer banal, mas é preciso situar na época o que era o pensamento revolucionário. Até porque esse contributo essencial foi fruto da época, com Gramsci no cárcere a assistir à influência meteórica do fascismo na classe operária e em outras camadas sociais desfavorecidas (e Mussolini tinha sido um socialista destacado! Assim como Hitler usou o termo socialista na sua designação nazi). O poder do proletariado posto ao serviço dos possidentes, em “cultura de massas”, que triste ironia para um Gramsci no cárcere! 
Pode haver uma situação objetivamente revolucionária, em que os oprimidos não podem mais sê-lo e os opressores já não conseguem sê-lo. É o que estamos a viver. Mas, e aqui é que Gramsci inova, um impasse destes, de crise, só se resolve revolucionariamente se a vanguarda dos oprimidos tiver a hegemonia noutro plano: o domínio das ideias, a conquistar a simpatia ou pelo menos a não-resistência da enorme multidão dos amorfos.
O que mais me atormenta é ver como, entre nós, a hegemonia está indiscutivelmente nas mãos da direita, com a potencialização de todos os meios pós-gramscianos de construção do domínio das ideias (comunicação social, net, ligação entre a universidade e os poderes, formatação mental dos jovens de maior qualificação educativa, com a seguinte alienação das elites profissionais jovens pela pressão do “ou és bem sucedido ou vais à vida”, etc.). E, até se ver, a austeridade troikiana em Portugal (troika externa mas também troika interna) teve o voto de 80% dos portugueses.
Já chega de conversa que muitos dirão sulista, snob e elitista. Acho que vale a pena para me compreenderem melhor nos escritos seguintes. Não tardam, provavelmente ainda hoje.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Obrigado pelo seu comentário. Os comentários de leitores não identificáveis não serão publicados.