domingo, 20 de maio de 2012

A esquerda (III)


O que vou escrever hoje resume-se assim: a convergência de esquerda é impossível no nosso quadro partidário esclerosado, exige uma rotura provocada pelo aparecimento de um novo partido, mesmo que de pequena dimensão.

O que disse ontem parece-me claro em relação a essa proposta minha essencial: a sempre desejada unidade da esquerda tem entre nós, presentemente, uma expetativa temporal que não responde à urgência de resposta à crise. Pior, mesmo que se conseguisse miraculosamente tal unidade, ela nada adiantaria em termos programáticos e de perspetiva de ação imediata. Os tempos estão de revolução, não de congresso valsante!
A “esquerda radical” está confusa (ou a confundir-nos). O PCP ao menos diz claramente que defende a reestruturação da dívida e adivinha-se facilmente que deseja a saída da eurolândia, embora nada adiante sobre como pensa atenuar os inevitáveis custos económicos de tal decisão, a curto prazo. O BE fala numa vaga renegociação que perece não ser mais do que pedir aos parceiros troikianos que tenham pena de nós, aliviem o aperto de prazos, juros, metas. Sair do euro, diz Louçã, seria uma catástrofe. Sem tão afirmativa certeza, por isto com maior ambiguidade, vão alguns “bloguistas” do BE, a protestarem a altos gritos contra a austeridade, mas sem uma ideia de solução ou, pelo menos, sem cientificidade, de bandeira de luta.
No mais, como todos os trotsquistas europeus, mesmo os mediáticos como Varoufakis, ficam sempre presos ao sonho da redenção por mudança da política europeia, sabe-se lá como, coisa que vai campeando pela esquerda europeia bem pensante. De proposta modesta a proposta mais modesta - já vai em três revisões - é sempre uma economia de conto de fadas, apenas o outro lado do espelho da Alice em que se contemplam os sonhadores do neoliberalismo. Fé no preto ou fé no branco, para mim é mesmo igual, é fé. Que nem sequer pode assegurar coisa tão primária como dar um badagaio à Sra Merkel.

Talvez por isto, por esta confusão, é que agora vejo tão boa gente se comprometer com uma posição política - mais um manifesto, já enjoa - que só aponta, na prática, para uma intervenção a nível do Parlamento europeu. Intervenção a muitos títulos mordoma e invejável, diga-se de passagem, e sem as chatices de se sujar com a mediocridade da política doméstica.
Do PS nem falar. Um ou dois socialistas - que admiro - têm posições muito avançadas em relação à crise com que nos defrontamos, mas são apenas marginais consentidos. A posição oficial, agora fortalecida pela política de Hollande, é patética. Austeridade mais crescimento?! Como escrevi ontem, eu nem exijo que os nossos políticos de hoje tenham posição sólida sobre coisas como a reestruturação da dívida, a saída do euro, a nacionalização da banca, o controlo muito forte dos movimentos financeiros. Só queria que me dissessem se, ao menos, não rejeitam isto liminarmente. Estou convencido de que o PS rejeita isto liminarmente.
E como é que partidos metidos na lógica da luta eleitoral não hão de pensar assim, sabendo-se que se movem num pântano ideológico e eleitoral - outra vez a hegemonia! - que é dominado, a 80%, pelo pensamento neoliberal, pela economia moral, pela passividade mental que ainda pesa de cinquenta anos de salazarismo?
Portanto, querer em tempo útil - isto é, o tempo necessário para não nos deixarmos ir pelo esgoto, como os nossos irmãos gregos, ou, para ser mais intelectual e cientificamente bonito, sermos sugados pelo buraco negro da recessão-austeridade - querer, dizia, construir uma alternativa eficaz batendo à porta da Soeiro, do Rato ou de nem sei onde é a sede do BE, é apenas coisa de velho viciado no jogo e que mete moeda atrás de moeda na “slot machine”.
Também há os que apostam na rua, e estes merecem-me muita simpatia, mas não a minha concordância prática. Volto sempre ao calendário. Ele aponta é para o terreno tradicional de luta, eleitoral, de convencionalidade partidária. Veja-se a Espanha. Os ativistas da Porta do Sol  transportam bandeiras de esperança em que alguma coisa mude, mas não vai mudar a tempo e, entretanto, se o país vizinho vier a ser sugado pelo tal buraco negro, não se criou a tempo nenhum instrumento político com eficácia imediata.
Diferentes, e também diferentes entre si, são os casos grego e francês. Em ambas as situações, a perspetiva de mudança do quadro político-partidário passou pelo aparecimento de um novo partido, com grande sucesso no terreno político convencional.
Sobre a Grécia, fala-se da subida espetacular da coligação Syriza. Faz-se analogia primária com o nosso BE. É verdade que, cá e lá, são ambos crentes na fada da boa Europa. Mas a Syriza diz coisa muito clara a que o BE não se atreve, porque não quer afrontar os tais 80% de hegemonizados, de bons homens honestos. A Syriza diz claramente que, desejando que a Grécia mantenha a sua integração no euro, quer rasgar o compromisso com a troika. Há algum partido português que diga isso, com tal clareza? Mas reconheçamos que a diferença essencial é que uma crescente maioria de eleitores gregos vota nisso (mesmo que nem todos queiram também a saída do euro), ao passo que o eleitorado português ainda vai nessa de que compromissos são para ser respeitados, já dizia o Salazar que pobrezinhos mas honradinhos.
O que não se tem discutido é o papel de um novo partido, a Esquerda Democrática. Com um resultado eleitoral não magnífico mas respeitável, é hoje fiel da balança. Representa o que podia ser entre nós um partido de “esquerda do PS”, embora eles tenham aparecido como cisão de direita da Syriza. Foi criado, pasme-se, há dois anos e conseguiu agora uma votação de 6%. Parece-me de esperar que, face à conflitualidade extremada com que os gregos se defrontarão nas próximas eleições, a ED ainda venha a crescer mais, tratando-se de um partido “moderado”, que rejeita a saída do euro mas que não se deixa ir em qualquer política troikiana de austeridade. Não estranho que chame muitos votos de eleitores do “centrão”.
Diferente é o caso francês. A sua novidade partidária é o Parti de Gauche (PG), o Partido de Esquerda. Também resulta de uma cisão recente, mas em sentido contrário: do PS, para a esquerda. E, jovem partido, conseguiu que o seu líder, Jean-Luc Mélenchon, fosse escolhido como candidato comum de esquerda por uma frente que até incluiu o partido comunista. Ao contrário do exemplo grego, o PG é “radical”, defende claramente a saída do euro, mas tudo com um estilo e linguagem - Mélenchon é um comunicador genial - que transmite uma imagem de sensatez, seriedade, que não repugna, à portuguesa de brandos costumes, ao “bon petit bourgeois”.
Em ambos os casos, houve um importantíssimo fator comum. Os dois partidos foram criados por pessoas que assumiram riscos mas que também tinham os meios práticos necessários para a criação de um partido. Não é nada fácil, recolher as assinaturas, criar e manter um sítio na internet, arranjar salas para as necessárias sessões de lançamento do partido, custear as deslocações, etc.
Nem devia estar a lembrar o caso histórico mais eloquente da necessidade de assegurar, eficaz e pacientemente, a base aparelhística de uma reforma partidária: Gorbachov! E já antes, embora sem sucesso, Khruchov.
Fazer um partido, hoje, é essencialmente ganhar meios numa cisão. Ou uma saída “de direita” do BE, ou uma saída “de esquerda” do PS. Mas nunca de mãos a abanar.
Todavia, não me repugna uma forma prática de “OPA” partidária que desagrada a bons amigos meus. Afinal, foi assim que nasceu o BE, que não teria sido possível só com camaradagem asiática de trotskistas e maoistas, sem a Política XXI. E esta, por ação de Miguel Portas - a que até me opus na altura, mas hoje não sei se com razão -  foi uma OPA amigável ao meu MDP.
A outra forma, como nestes exemplos grego e francês, é a dissidência ou divórcio em que o divorciado não sai com uma mão à frente e outra atrás. É o mínimo de sentido prático e de sabedoria política, que falta a tão bons amigos que tenho no PS, mas que, se sairem, vão só com a roupinha do corpo.
Da mesma forma, os meios de que dispõe um parlamentar europeu são excelentes. Estou certo de que Miguel Portas os teria sabido usar bem. Diz-se que se estava a preparar para uma convenção do BE, no fim do ano. Numa outra iniciativa que vejo agora, a inabilidade é evidente. O traquejo político, como o dos verdes anos do Miguel, ainda vale muito. E eu, apesar de simples amador em política, tive alguma experiência que me faz dizer agora que não tenho pachorra para muitas coisas.
Finalmente, e talvez a despropósito para muitos leitores - eu acho que não - falei atrás uma e outra vez em “moderação”, correspondência ao senso comum de sensatez. Acho que pode ser uma característica fundadora de um novo partido, na atual situação subjetiva do balanço da hegemonia (cá estou outra vez!). A ED grega é "sensata", o PG, em relação à “langue de bois” da esquerda radical francesa também é “sensato”. 

Será que podemos oferecer aos eleitores portuguerses da tal maioria de 80% uma alternativa razoável, sensata, "de bons costumes”, com a suprema habilidade de calmamente os fazer refletir? Não é oportunismo. Em política há sempre tempos de passos em frente e tempo de passos atrás, de “hold the fort”. E também aqueles de passos aparentemente atabalhoados, como o Estica do "Bonnie Scotland", que não se sabe bem se são para a frente ou se para trás.
À margem - porque é que os trotsquistas estão a ganhar tão bons lugares na infoesfera mundial, também na portuguesa? Não percebo. Ou estou a ser hipercrítico, ou acho seriamente que o contributo trotsquista para o pensamento político foi medíocre, como tudo o que veio da Rússia dessa época, Lenine incluído. Será que os herdeiros do homem morto no México apenas usam isto, o de ter sido assassinado a mando do psicopata Estaline? Ai, "o filósofo renano", como escrevíamos há muito tempo para despistar as bestas dos coronéis censores.

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