quinta-feira, 10 de maio de 2012

O amor


Pensei muito antes de escrever isto, porque tenho “mixed feelings”. Vou tocar no centro vital de uma pessoa muito conhecida. Mas os mediáticos lucram com sê-lo, devem em contrapartida aceitarem um estatuto excecional de sujeição ao escrutínio público. São construtores de opinião, influem no coração da democracia, da escolha esclarecida. Já me criticaram eu escrever às vezes “contra-ad hominem”. Mas, afinal, “quosque tandem…?”, Cícero não continua a ser exemplo? Ou a crítica que me fazem não é afinal reflexo da dificuldade de outros de, passe o plebeísmo, “agarrar o boi pelos cornos”?
Miguel Esteves Cardoso (MEC) é pessoa que não prezo muito. É para mim exemplo - sou injusto? -  de diletantismo, de frivolidade intelectual, de versão disfarçadamente anglo-saxónica do velho “épater le bourgeois”. Devaneia também, pouco a sério, por terreno que muito prezo, o da gastronomia.

Até aqui, agarrei o boi pelos cornos, agora vou acariciá-lo.
Nos últimos tempos, MEC escreve diariamente sobre a sua situação íntima, pessoal, conjugal, afetada por uma doença grave da sua Maria João. Faz uma espécie de “striptease” afetivo muito contrário ao sentido da privacidade do que gosta de ostentar da sua influência de cultura inglesa, até familiar. 
Dói-me lê-lo. Sinto que, sem querer, estou a ser chamado a invadir um terreno que devia ser muito defendido de reserva da intimidade. Ao contrário do que muitas vezes se passa hoje na net, não sou eu, leitor, a prevaricar, é o próprio autor quase a pedir-me que lhe dê o braço neste passeio pela sua vida íntima.
No entanto, acabo por não reagir negativamente. Faltando-lhe o sentido crítico, obviamente isto vem de uma grande dor e de um grande amor. E há coisa mais bonita do que uma carta de amor? As crónicas que MEC tem estado a escrever são como que uma publicitação de cartas que, em primeiríssimo lugar, ele está a escrever à Maria João. Podia dignificá-las mais, como ainda hoje escreveu, na solidão partilhada a dois? Direi mais, com crueldade: não seria mais sublime passá-las a escrito só como escrita derradeira quando, inevitavelmente, a sua amada lhe ficar apenas como saudade?
Talvez sim, a estas perguntas. Mas também a comoção de quem, ao lê-las, está a sentir que o seu-meu grande amor tem companhia em outros grandes amores. É bonito, principalmente quando isto vem de pessoas com quem não temos outras afinidades. 
Eu tenho grande cuidado com a minha privacidade. No entanto, isto é contradito por meus grilos falantes que acham que me exponho muito nestas escritas. “O poeta é um fingidor”? Talvez, mas hoje este espaço de nova atmosfera informática tudo mudou, ninguém consegue reservar-se, toda a gente se expõe, ninguém finge sem ser facilmente desmascarado. Afinal, eu cuidadoso, quantas vezes me descaio a falar da minha morena?
No fim, uma nota que me faz estranhar-me: nunca apreciei muito MEC, mas sinto-me empático com ele nesta sua fase dolorosa de vida. Como é que eu atuaria no seu lugar? E reforça a escolha do meu lema, o conhecido verso de Terêncio, "Humani nihil a me allienum puto", nada do que é humano me é alheio (a resposta de Marx ao célebre questionário de Proust). Também o lema da minha atual universidade.

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