sábado, 19 de maio de 2012

A esquerda (II)


Há dias (16 de maio), exemplarmente, o Público trouxe dois artigos de opinião convergentes na tese de que o objetivo central da política portuguesa, mormente nesta crise, deve ser a união da esquerda. Vá lá, ambos deixam expressa a ideia de que entendem por isso a unidade de ação da esquerda e do centro-esquerda. Já parece ter-se ido o tempo da caracterização do PS como esquerda, tout-court.
Um dos artigos é de simples opinião, embora de um dirigente de uma associação política mas com pouca expressão e, a meu ver, depois de sucessivos fracassos de intervenção - o último dos quais, por sua grande culpa, a recém-autodefuntada Convergência e Alternativa, com que alinhei. Parece-me estar condenada a ser cada vez mais um grupo de amigos a envelhecer em alegre convívio, o que até é ótimo, se o vinho e os petiscos forem bem escolhidos. Afinal, esquerda caviar também pode ser esquerda Poliphonia 2008, muito bom, mais "piplar" e mais acessível.
Diferente é o outro artigo, porque a sua defesa da mirífica solução da aliança de esquerda, agora de esquerda e centro-esquerda - mas na prática sempre o mesmo, PCP-BE-PS - vem claramente como substrato de mais uma nova proposta de manifesto.
Em primeiro lugar, acho que já ninguém com senso político (onde estão os políticos traquejados da minha geração?, “onde cantan los poetas andaluces de ahora”?) liga a estes manifestos que aparecem como cogumelos em manhã húmida, à esquerda ou à direita ou ao centro ou em cima ou em baixo, mas sempre de gente bem comportada. Coisas amorfas, banais, que eu não assino mas que amigos meus muito caros me dizem assinar porque mal não faz, estão de acordo com o essencial (quase 0,00001), contribui para espírito de “hold the front”. É verdade, mas é seguro que tudo isto é inocente? Que estas coisas vegetais não são elementos de construção de projetos políticos com agendas pessoais?
No caso mais recente, nem me senti muito defraudado, porque não fui chamado a intervenção direta. No entanto, interessei-me, porque alguém muito meu estimado me dizia que a perspetiva era a da criação de um novo partido, coisa que quem me leu aqui, aqui, aqui e aqui, sabe como me é importante. Até suspendi iniciativas que tinha combinado com excelentes amigos políticos, para não prejudicar esta, que tinha sustentação prática mais sólida. Afinal, tudo resultou num zero à esquerda de documento político, a apelar à construção de uma “esquerda livre” - a última descoberta propagandística, que não consigo perceber o que é, a não ser para uma magra minoria de militantes socialistas maltratados ou por ressentimento pessoal em relação à atitude de um partido com que se rompeu, em termos de "legitimidade eleitoral". Afinal, coisas pequeninas.

Eu sou de esquerda e sou livre. Muitos amigos meus são de esquerda e são livres. Essa centralidade "manifestariana" numa esquerda livre não nos diz nada. E se eu fosse de esquerda e não me sentisse livre creio que nada me impediria hoje o que fiz há trinta anos, libertar-me. Claro que respeito e até admiro quem, por sentido de eficácia da sua ação política, queira permanecer na cadeia.  Mas é coisa pessoal e grupal que não deve ser bandeira de um manifesto político de âmbito geral. Este tipo de coisas fazem-me sempre lembrar o célebre manifesto dos soldados do RALIS: uma lista de reivindicações de inegável significado político e militar, onde pelo meio vinha a exigência de usar sapatos em vez das botas.
Mais importante são duas coisas, uma dita e outra não dita no manifesto. Primeiro, sempre o mito da tal unidade de esquerda, coisa que nunca foi possível mas que será possível agora a cada iniciativa ou manifesto de um novo grupo de protagonistas ou de quem vai reverencialmente bater à porta do Rato (sobre isto, conto um dia destes um dos melhores ditos políticos de que me lembro, de um homem tido como bisonho mas de quem eu conheço o humor desde criança, Jaime Gama).
A coisa não dita, e que me tinham “prometido” era a iniciativa de construção de um novo partido de esquerda, alternativo, consequente. Venho a saber, por fonte bem informada, que afinal o que se vislumbra da grande influência prática do mentor desta iniciativa não é de todo em todo um novo partido - ufa! que trabalho e que despesa, mesmo com todos os recursos do parlamento europeu - é apenas a possibilidade de uma candidatura independente às mais importantes eleições que temos no calendário próximo: claro que para o parlamento europeu. Como diz a cada minuto como bordão o animador das festas de ex-liceu tropical da minha mulher, “estamos a brincar ou quê?”
É óbvio que não me passa pela cabeça subestimar a importância estratégica da unidade de esquerda (dou de barato a extensão do termo). Mas há coisa mais elementar na cultura política do que a distinção entre a estratégia e a tática ou, relacionadamente, a gestão do calendário, em função da dinâmica temporal das crises com que nos defrontamos?
Não me parece que possa passar pela cabeça de alguém minimamente sério em política a dúvida de que, hoje, tudo gira à volta do programa de austeridade dito “memorando da troika” (duplicado em agravo pelo governo). Ao mesmo tempo, a relação disto com a política do euro. No entanto, pasme-se, o novo manifesto, embora falando na desunião europeia, não tem uma única proposta sobre a crise, a austeridade que nos foi imposta. Muito menos, claro, sobre a questão essencial, a que define as águas, e que até vou formular da forma mais defensiva, menos assertiva: podemos recusar o programa da troika? Podemos desafiar o poder  germânico? Podemos invocar as cláusulas de emergência do tratado europeu para adotarmos uma política soberana? Aceitamos, mesmo que só em princípio, a reestruturação da dívida sob nosso controlo de devedores? Aceitamos, em princípio, a eventualidade de termos de abandonar o euro? Reparem que só estou a formular perguntas (em próximo escrito proporei respostas). Mas eu não assino nenhum manifesto nem me comprometo com políticos que nem sequer tenham a coragem de dizer que, ao menos, estão abertos a discutir essas questões.
Estas questões são obviamente as cruciais. Austeridade mais suave, mais um ou dois anos de benefício, um pouco menos de juros, não são significativos. Austeridade mais crescimento é disparate que nem um leigo em economia entende, porque sabe que ninguém engorda a fazer dieta. No entanto, com variantes, esta é a proposta de "diferença" do PS. Nem Hollande valerá. Austeridade mais crescimento, a última descoberta "redentora" da vergonhosa rendição blairiana da social-democracia ao neoliberalismo, é querer homogeneizar azeite com vinagre, coisa que qualquer patego sabe que é impossível.
E qual é a do PCP? Uma coisa que me valeu o voto, a reeestruturaççãio da dívida, mas que nunca consegui ver minimamente definida e entendível. E a do BE? Pior ainda, no caso de um partido chefiado por um professor de economia. Como na generalidade dos partidos trotskistas, um discurso sonhador de crença numa fada europeia que tudo resolverá, ou “propostas modestas” de um grego mediático de quem os seus compatriotas se riem nas urnas (os milhões que o homem já ganhou nos media era bom que tivesse entregue sei lá a que organização social ou política grega).
Como se as decisões europeias, numa mescla de estados ainda com grande força individual, e polarizada na Alemanha e seus satélites (ó holandeses, já esqueceram Anne Frank?) não dependesse essencialmente do poder político interno, de cada estado. Se Louçã fosse primeiro ministro, qual seria o seu comportamento no primeiro conselho europeu a que fosse? Fazer uma sabatina académica sobre a reforma da UE e as virtudes do euro, como se Sto Anacleto fizesse um daqueles repetitivos sermões sobre a necessária reforma hélas redentora da santa madre igreja? Afinal, há diferença essencial no espírito religioso-económico dos dois primos, mesmo que com cara para diante ou para trás, à Janus?
A alegre (o termo é propositado) procissão das “esquerdas” portuguesas é coisa que eu muito espero que aconteça um dia. Mas condicionar o hoje e o amanhã a esta utopia é o risco de todas as utopias. Tanto servem para iluminar o nosso horizonte mental, e muito bem, como para desculpar a falta de alternativa de luta no dia presente.
Qual é essa alternativa? Fica para amanhã.
NOTA 1 - Com este escrito, este é mais um passo para o que disse acima, “não fui convidado”. Claro que cada vez serei menos, mas já assumi que, neste nosso panorama em que até gente que tenho por excelente vai a tudo, a minha missão, solitária, chata, provocadora, detestável para muita gente, vem da passagem muito sublinhada do meu querido livro de juventude, “Memórias do cárcere” (de Graciliano, com vénia ao de Gramsci): “Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze”. Ou, em jeito mais simples e plebeu, quero ser aquele que diz que o rei vai nu! Doa a quem doer. Mesmo a um querido amigo que me diz sempre que eu não devo esquecer que, em guerra, não posso criticar os meus aliados.

NOTA 2 - Parlamento europeu. Por razões certamente logo percetiveis, dedico esta crónica, por diferença, à memória de Miguel Portas, com quem até tive agrestes discordâncias políticas. Mas era um homem de carácter, íntegro, em quem se podia confiar, um homem superior. Afinal, um adversário imensamente estimável e respeitado, como foi comigo. Não é, à maneira de hoje, o adversário político que é um gajo porreiro e com quem se vai trocar conversas brejeiras sobre umas gajas. É, como eu e o Miguel, relação digna entre duas pessoas que, no fim da luta, como dois campeões de xadrez, se cumprimentam até com a solenidade que simboliza um afeto especial, com o olhar que transmite ao outro o respeito e a consideração. Até admito que um dia me aconteça isto com o seu irmão Paulo. Eu não preciso que concordem comigo, o que exijo é que as discordâncias estejam ao meu nível. E do Miguel.

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