quarta-feira, 6 de julho de 2011

Um murro dói, mas puseram-se a jeito

Já aqui escrevi e é nem é nada de novo que os provérbios dizem muito sobre a cultura geral. Com amigos falantes diferentemente, acho graça a que, quase sempre, eles me dizem a sua versão nacional de um provérbio português. Todavia, para minha tristeza, acho que nunca vingou na nossa cultura ancestral um velho provérbio inglês: You can't have the cake and eat it. Não se pode ter o bolo e comê-lo.

Hoje, desde os títulos dos jornais até aos protestos dos homerns da rua que participam nos debates da rádio, desde os grandes gestores e economistas de serviço até ao PR, toda a gente clama contra a Moody’s e o "murro no estômago" que deu a Passos Coelho. Acho muito bem o protesto, claro que alinho, declaro solenemente que para mim é criminosa tal manipulação do sacrossanto mercado, mas é coerente este coro de protesto?
Todos estes protestos vêm da esmagadora maioria que nem discute a inevitabilidade do que nos está a acontecer, com o acordo com a "troika" e que vai acontecer cada vez mais gravemente e cada vez mais previsivelmente. Estamos com toneladas de dívidas às costas, temos de pagar porque não somos caloteiros, não há outra solução senão a das duas troikas, a externa e a interna. A dívida cresce com os juros, tivemos de pedir “ajuda”aos “amigos” porque os juros eram incomportáveis, embora os dos amigos não sejam muito menos. Os bancos ajudaram à crise, receberam a 1 e cobraram-nos a 10, mas os bancos são intocáveis, são o coração da economia. Os terríveis e invisíveis mercados, sem nome, nem têm muita culpa, porque os governos e principalmente os povos (quem manda ao zé beber uisque caro, comer caviar e vestir Armani, bem diz o arquiteto Saraiva?) é que são irresponsáveis despesistas. Neoliberalismo, o que é isso senão a "ordem natural das coisas", como Deus manda? O que se sabe é que não há que piar, porque felizmente “os russos já não vêm aí”, portanto a ordem vencedora venceu e tem de ser acatada e se toda a Europa vai a passo marcado (comecei por escrever passo de ganso, mas admito que era exagero) está muito bem, porque a maioria tem sempre razão. E em quem vamos votar, se todos (?!) os partidos defendem o mesmo? Etc., etc.
Com tudo isto, não faz parte natural do sistema que a “regulação” seja nula ou viciosa, como é este poder escandaloso das agências de “rating”? Que elas façam batota e dêem murros contra as regras quando o outro lado, os governos, os bancos, UE, BCE, FMI, etc., fazem batota de desinformação em relação aos cidadãos? Onde é que há "fair play" neste campeonato violento e selvagem da finança internacional? Onde é que há algum valor ético, sentido social, até dignidade (embora eu não goste de termos morais ligados à política) e até mesmo pragmatismo de noção da necessidade objetiva de regulação, como em qualquer sistema, onde é que há tudo isso no desvario desta fase última do capitalismo em que a riqueza é grandemente virtual, em que o capital financeiro domina largamente o capital industrial e a criação de riqueza real

Quem protestou antes contra este absurdo de a regulação ser feita por três empresas privadas sem qualquer transparência e certamente com interesses estreitamente dependentes dos próprios resultados dessa “regulação”? Alguém jura que não há por lá “inside trading”? E Durão Barroso, hoje a protestar, ou os nossos dirigentes políticos, fizeram alguma coisa, nestes três últimos anos, para a criação de uma agência europeia de “rating”, tanto quanto possível escrutinável democraticamente?

Não me basta que muita gente proteste contra um peão do jogo porque os interesses dessa gente foram atingidos por esse peão. Quero é que digam que o jogo é inaceitável e que é preciso derrubar todos os seus peões, para o lixo com tabuleiro e tudo.
Depois, protesta-se à nossa maneira, de lado, com "indignação virtuosa". Ainda não ouvi refutar objetivamente as justificações da Moody´s, que, só por razões de argumento!, vou considerar que “tem razão”: Portugal, mesmo com o resgate, não vai poder voltar aos mercados em prazo razoável; provavelmente, o resgate vai ter de ser reforçado, como na Grécia; os bancos estão afogados; a recessão vai agravar cada vez mais o défice, sendo duvidoso que se possa reduzir o défice; vai ser necessária a participação dos credores na atenuação da dívida ou em futuros empréstimos; não há perspetivas de crescimento. Afinal, não é isto o que se contrapõe ao acordo do resgate mas sempre negado pela grande maioria? Quero ver irem discutir isto com as agências. Quando muito, ouvi a queixa de que a agência não tinha contado com a “nossa” diligência de bem comportado, do imposto dito sobre o subsídio de Natal, da corrida para ultrapassar a própria trindade externa. A Moody’s diz que contou, em que ficamos? E se amanhã for a S&P, depois de amanhã a Fitch?

Não deixa de ser irónico que quem, como eu, tentou argumentar nas últimas entradas, esta e esta, contra a aceitação acrítica das posições trinitárias possa agora pura e simplesmente dizer "vão discutir isso com as agências de rating" (embora eu não goste nada de usar as razões dos meus adversários, mas quando valem...)? Apesar de tudo, é problemático, porque agora vai entrar em jogo o patrioteirismo primário, açulado por quem nada tem de patriota.
A Moody’s deu-vos (-nos) um murro no estômago? Se querem ser coerentes, aguentem, que eu e muitos também estamos a aguentar (mas com a coluna direita) a vossa vassalagem ao sistema dominante. Lamentavelmente, também a da grande maioria do povo português, de forma passiva. Espero é que, com coisas destas, comecem a ver, antes que nos “vejamos gregos”.
À margem - Disse hoje o ministro espanhol Alfredo Pérez Rubalcaba: “Não somos Portugal, não somos a Grécia, não somos a Irlanda”. Não previ que ia ouvir isto? Lembram-se do célebre poema de Brecht, em que “Primeiro levaram os comunistas, / Mas eu não me importei / Porque não era nada comigo. (…)”?

1 comentário:

  1. Perfeitamente de acordo, caro companheiro!
    De repente, muitos economistas da nossa praça (incluindo o mais alto representante da nação!), que até agora achavam que não se devia insultar os "mercados", acham que eles, afinal, não são tão "bons" quanto pensavam!...
    Onde estava o seu (deles) patriotismo antes? Cambada de hipócritas! Já conseguiram o que queriam e, agora, vêm chorar lágrimas de crocodilo!...

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