Há uns meses atrás, não havia dúvidas sobre o que significava a reestruturação da dívida. Era tempo em que só falavam disso alguns economistas estrangeiros, nomeadamente os Nóbeis heterodoxos Stiglitz e Krugman. Entre nós, só perigosos extremistas, porque a discussão estava polarizada entre aceitar ou não (com que alternativa ao não?) o resgate FEEF/BCE/FMI. Avizinhando-se eleições, era o PCP o partido que inscrevia o tema no seu programa.
Nessa altura, restruturação, coisa que a gente bem pensante e a maioria dos eleitores a ir por eles chamava de calote, como se a economia política se regesse pelas normas morais da economia familiar, era entendida como em qualquer texto básico, como em qualquer história de tal coisa, por exemplo o caso muito falado da Argentina. É um conjunto de medidas, tomadas total ou parcialmente: diferenciação de atitudes em relação a tipos de dívida (“odiosa” - considerada crime pela lei internacional -, ilegal, ilegítima - por exemplo, a dos bancos nacionais que a compraram com empréstimos externos de muito menor juro -, institucional, de pequenos credores, etc.), substituição por novos títulos com novos montantes e condições, redução do montante (“haircut”), redução da taxa de juro, prolongamento do prazo de maturidade, etc. “Googlem” que encontram milhares de páginas a dizer isto mesmo.
Contra a mais elementar regra da racionalidade e do espírito científico, começou a partir de certa altura a manipulação do termo, o que vicia irremediavelmente qualquer discussão rigorosa. Denunciei isto aqui e aqui. Infelizmente, para quem se coloca à esquerda, mesmo que não tendo nada a ver com os respetivos partidos, essa manipulação, voluntária ou não, começou e continuou com Louçã. Como mostrei, foi patente no próprio programa eleitoral do BE. Depois, até as mais notáveis personagens europeias o fizeram, confundindo o cidadão leigo entre reestruturação, renegociação, reescalonamento, “reprofiling”, toda uma confusão propositada de termos, em que até se inventou uma coisa talvez não muito caloteira mas totalmente ambígua que é uma possível “reestruturação suave” (“soft”). Nada disto é sério.
Também é possível outra confusão, que tem aparecido mais recentemente, no caso dos três países que receberam empréstimo de resgate da trindade UE/BCE/FMI, Grécia, Irlanda e Portugal (enquanto não se segue a Espanha). Renegociação de que dívida? Da dívida externa total ou apenas dos termos e condições do resgate da “troika”, o “reprofiling” que até a sargenta prussiana começa a admitir em relação à Grécia?
É muito diferente. Por exemplo (dados de 2010, segundo o ministro Álvaro Santos Pereira), a dívida total portuguesa vai para cima dos 380 mil milhões de euros (mais de 220% do PIB) e a dívida pública para cima dos 151 mil milhões (87%) ou quase o dobro se incluindo as empresas públicas e os encargos assumidos com PPP, enquanto que o resgate foi de 78 mil milhões (46% do PIB).
Agora, ficou tudo muito mais claro cá neste canto, com as propostas de resolução parlamentar do PCP e do BE em relação à renegociação da dívida (abrindo estes links, pode-se descarregar cada texto em formato .doc ou .pdf).
Para além de uma ofensiva diplomática e negocial, junto dos países em iguais circunstâncias e no sentido da revisão da política económica e financeira da zona euro, bem como da diversificação das fontes de financiamento, o projeto de resolução do PCP propõe a “renegociação imediata da dívida pública com os credores do Estado português, (…) uma avaliação formal, completa e rigorosa da dimensão da dívida, identificando a sua origem e processo, bem como a natureza e tipo de credores, (…) um serviço da dívida que, pela renegociação dos seus montantes, prazos e taxas de juro, seja compatível com um crescimento económico pelo menos da ordem dos 3%, (…) a salvaguarda da parte da dívida dos pequenos aforradores.” Note-se bem que tudo isto se refere sem dúvidas ao total da dívida, especificando-se a terminar “no âmbito do empréstimo do FMI e da UE, recusando qualquer tipo de ingerências ou imposições políticas, a reconsideração dos prazos, das taxas de juro e dos montantes”.
O projeto do BE só se refere à dívida contraída por via do empréstimo de resgate. “A dívida ficará em grande medida, se bem que não totalmente, concentrada nessas três instituições. Esse facto modifica as condições da sua renegociação e assegura um carácter mais político dessa renegociação necessária.” É circunscritamente com a “troika” que o BE pretende a renegociação, mais "política" (?). “A renegociação é necessária para evitar a precipitação da bancarrota ou a ameaça da saída da zona euro (…). De facto, o juro atribuído a estes créditos é excessivo e impagável, e os prazos são demasiado curtos. (…) Para salvar a economia e para pagar o que é devido, a renegociação é o único plano razoável para a economia portuguesa. (…) uma renegociação da taxa de juro e dos prazos do empréstimo contraído, de modo a que essas condições sejam, pelo menos, equiparáveis à de outros contratos estabelecidos em condições semelhantes e nunca mais prejudiciais.” Quais são estes outros contratos?! O europeismo romântico com que o BE se quis desmarcar desde a sua fundação vai-lhe sair caro.
A incongruência não fica por aqui. Ambos os partidos propõem uma auditoria à dívida. Percebo muito bem essa auditoria; é obviamente indispensável, como primeiro passo de uma reestruturação como a proposta pelo PCP. Mas não percebo de todo para que serve uma auditoria para basear uma renegociação "política" principalmente com a “troika”, ao estilo BE. Para convencer essas boas criaturas trinitárias de que devem ser mais compreensivas connosco, que não somos gregos, que temos dívida de que não somos culpados?
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