segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A responsabilidade pela dívida

Enquanto escrevo, ouço Paulo Portas, a desafiar-me a desmentido que me torce um pouco. Porque me vão dizer que estou a defender Sócrates, coisa que me deixa agoniado. No entanto, sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade. Neste caso, diria, inimigo de Sócrates, mas mais amigo da verdade. Desavergonhadamente, PP acusa o atual governo de ser o responsável pela dívida, ainda por cima misturando dívida pública e dívida privada. Não é verdade. Desde os governos Cavaco, passando por Guterres, pelas coligações PSD-CDS (os submarinos!), todos os governos alimentaram alegremente a dívida. E fizeram-no em alegre aliança, atenta, veneradora e obrigada, com a banca. E permitindo que a taxa de aumento do endividamento da banca, nos últimos 10 anos, tenha sido sensivelmente o dobro da do aumento da dívida pública.
O euro deu aos governos e aos agentes económicos uma almofada de aparente segurança, quanto ao crédito e às taxas de juro, sem que, com raríssimas exceções, se tenha visto o outro lado da moeda, o da sobrevalorização, da perda de competitividade, a juntar-se à desproteção - quando não à destruição - do sistema produtivo, com destaque para a agricultura (a PAC) e as pescas. O capital fundiário e industrial foi derrotado pelo capital financeiro. Ou é preciso lembrar o que toda a gente sabe, mesmo sem os números na ponta da língua? Os maiores lucros são os da banca, os menores impostos sobre as empresas são os da banca. 
Entretanto, como aqui já disse e redisse, há muita gente que me confrange quando, apesar de gente comum, que vive do seu trabalho, engole e se penitencia com a conversa de que a culpa é dos “portugueses” (o que é isto, em termos económico-políticos? não sei) que vivem acima das posses, que não são ovinamente disciplinados como os alemães que, nos últimos 10 anos, aceitaram sem protesto a degradação do valor real dos seus salários e das prestações sociais (a “desvalorização interna”). 
É verdade, mas só parcialmente verdade. O crédito e o endividamento têm sido impostos pela banca ao homem comum da forma mais agressiva. Isto é elementar: a banca só lucra a emprestar, para isto tem de se endividar, e endivida-se no estrangeiro, para ter fundos para emprestar ao Zé doméstico, a chamada dívida das famílias. Afinal, a dívida das famílias é, em última instância, dívida da banca. Quando recebo comentários de leitores meus que prezo mas que me acusam de diabolizar a banca, fico transido. Desculpem, mas não andam a pensar economia política, não percebem o que é hoje o capital financeiro, coisa aberrante que cria “riqueza” (isto é, enriquecimento pessoal dos especuladores) sem criar riqueza real, isto é, produção, acumulação de bens. O capitalismo, hoje, é um jogo virtual. Se não se perceber isto, merece-se o aviso de Clinton, “it’s the economy, stupid!”
É verdade que, ao contrário da Espanha (a bolha imobiliária e as caixas) e principalmente da Irlanda, da necessidade (?) de resgatar a banca, de não a deixar ir à falência - como os islandeses tiveram a coragem de fazer, sob a forma da nacionalização (que horror, nacionalizações, já chegámos ao 25 de Abril?) - não houve em Portugal uma crise de ameaça de falência da banca (exceto os casos de polícia do BPN e do BPP, mesmo assim tratados com total subserviência pelo governo). Mas fica a lição perversa do papel da banca nesta crise.
Os bancos foram os causadores primários da crise, nos EUA, também na Europa. Sopraram as “bolhas”, não conseguiram evitar que elas rebentassem, como rebentam todas as bolas de sabão. Os governos do “consenso de Washington”, agora “consenso de Berlim-Bruxelas”, tremeram com o risco de derrocada do sistema do capital financeiro. Tremeram também nas suas relações ideológicas, de afinidades, de projeção psicológica, de promiscuidade de financiamento partidário, de negócios privados, com os banqueiros. Isto tem tanta força que, há tempos, me dizia alguém, que sei que tem sentido crítico, que vive estritamente do seu ordenado, mas que, conversando casualmente, em breve encontro, com um dos principais banqueiros portugueses, tinha logo visto que ele era “um grande senhor”. “O charme discreto da burguesia”.
Para não falirem e implodirem todo o sistema económico (que sistema?), os bancos foram financiados desmesuradamente pelos estados, isto é, pelos contribuintes. Só na Irlanda, isto fez subir o défice orçamental para cima de 30%. Entretanto, estes bancos refinanciados, com o seu poder recuperado, estão a jogar nos tais “mercados nervosos” pondo em risco a dívida dos estados que os salvaram. E a influenciarem, pelo menos ideologicamente, as agências de “rating”, bem como todos os amigos do enorme clube FMI-Bruxelas-BCE-Davos, etc. E, como vimos em Portugal, nas vésperas da discussão do OE 2011, se mostrarem ufanos em visita aos veneradores primeiro ministro e ministro das Finanças, a quem foram dar “conselhos”.
Chega-se à coisa obscena de, em Davos, há dias, ter havido um coro de banqueiros a protestar, como relatado pelo Finantial Times: “Os governos de todo o mundo devem fazer parar a culpabilização dos bancos, acabar de nos atirarem paus e pedras e criar o ambiente adequado para que os emprestadores apoiem o desenvolvimento económico”. Que mais ambiente querem?

P. S. (23:50) - Aqui está um bom exemplo do que escrevi acima, dado pela governadora do Banco de Portugal, Teodora Cardoso, segundo o Público“Fomos adiando e adiando, agora temos de mudar de vida”. "Fomos", "temos", quem é esta 1ª pessoa do plural? O Governo? Este ou os anteriores? Salgado, Ulrich, etc.? Constâncio, Teodora Cardoso e seus colegas que falharam na supervisão? Amorim, Belmiro, Soares Santos, os homens das empresas não financeiras? Eu? Tu, tu e tu, meus leitores? O meu vizinho que comprou casa como a minha quando ganhava metade do que eu ganho mas a quem o bancário telefonava hora a hora? O jovem licenciado que, cansado de não arranjar emprego compatível, se meteu em esquemas e não cobra IVA na consulta ao desbarato? Estou farto da superioridade sobranceira e arrogante de Teodoras bem instaladas.


P. S. (2.2.2011) - Leio hoje um texto de João Rodrigues em que se refere ao "consenso de Bruxelas". Usei a expressão, acima, sem conhecer o seu uso por João Rodrigues, ou tê-lo-ia citado. Coincidência, e coincidência agradável, tanto mais que, como tenho dito, sou leigo em economia. Isto não me impede é de estudar e refletir.

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