Escrevi muito, o ano passado, sobre a pandemia de gripe A/H1N1/2009. Pensei, com esperança, que não precisaria de escrever este ano. Não se justificaria se a gripe H1N1 tivesse passado de pandémica a sazonal, e com menor virulência (já de si relativamente baixa, o ano passado), embora não se pudesse excluir que, como em anteriores pandemias, houvesse uma segunda vaga da doença. Ainda não sabemos, embora as estatísticas pareçam indicar que não vai haver pandemia, aparecendo apenas epidemias localizadas, de caráter sazonal, como agora em Portugal. No entanto, a situação não é de se tomar por ligeira, porque tem havido um número considerável de mortes, das quais, em Portugal, já quatro, e não em idosos.
Escrevo por outro motivo, o caso do Hospital da Guarda. Onze enfermeiros, todos do serviço de Medicina, contraíram a gripe H1N1. Como discuti repetidamente o ano passado, grande parte dos médicos e enfermeiros, por todo o país e até com apoio das ordens, deram o péssimo exemplo de se recusarem a ser vacinados, sem qualquer base científica, causando grave perturbação na opinião pública, receosa da vacinação. Como escrevi, foi a primeira vez na história das doenças infecciosas que a “net” e a moderna facilidade de comunicação e difusão da informação (boa e má) tiveram um efeito marcante na atitude pública quanto às medidas sanitárias.
Neste caso da Guarda, os enfermeiros tinham recusado a vacina, o ano passado. Agora, enquanto incubavam a doença, expuseram os doentes a um risco considerável de contágio. Ainda por cima, doentes porventura com fragilidades de saúde e com risco especial em relação às consequências da gripe. Embora com menor importância, não se esqueça a perturbação que causaram ao normal funcionamento do serviço. A meu ver, incorreram em infração grave ao seu dever de zelo, por terem recusado a vacinação.
No caso do pessoal de saúde, como vimos, a recusa da vacinação tem aspetos mais relevantes de ética, deveres profissionais e responsabilidade social. Mas, numa perspetiva mais vasta, a questão coloca-se em relação a qualquer pessoa. Trata-se de um problema importante de saúde pública, mas com larga margem de incerteza na ponderação de valores éticos, individuais e coletivos.
Começo por salientar que, ao contrário do que muita gente pensa, nenhuma vacina é obrigatória. Muitas fazem parte do plano nacional de vacinação e por isto são gratuitas e qualquer pessoa tem o direito de as pedir. Mas não a obrigatoriedade. A meu ver, este respeito pela liberdade individual tem limites rigorosos, que devem ser bem definidos. Não se trata de decisões de impacto estritamente pessoal, como a de recusa de uma transfusão por parte de uma Testemunha de Jeová (mas caso diferente é a recusa em relação a um seu filho menor). Trata-se de consequências para a saúde pública.
Sempre houve medidas limitativas da liberdade individual por razões de interesse sanitário geral: quarentenas, isolamentos, controlos de saúde para o exercício de certas profissões. As vacinas estiveram relativamente à parte, quer porque em alguns casos a relação custo-benefício (por custo entenda-se efeitos nefastos) não era indiscutível, quer porque não se tinha a noção atual da importância da vacinação, em geral. A situação hoje é radicalmente diferente.
A varíola era uma doença terrível, tendo chegado a matar milhões de pessoas por ano, antes da descoberta da primeira vacina, por Jenner, no séc. XVIII. Foi exclusivamente essa vacina a responsável pela erradicação da doença, em 1980. Foi a primeira vez na história da humanidade que se fez desaparecer uma doença. Outras doenças estão em idêntico caminho, nomeadamente a poliomielite (paralisia infantil) e o sarampo.
No entanto, os grandes progressos nos últimos anos no controlo destas doenças nos países subdesenvolvidos, pela vacinação, está em oposição ao aparecimento de um número considerável de casos, principalmente de sarampo, nos países desenvolvidos, com destaque para os EUA e o Reino Unido. Não há dúvidas quanto à causa: a recusa de vacinação dos filhos por um número cada vez maior de pessoas que formam verdadeiras seitas anti-vacinas, mormente no circuito internético. Porquê nesses países? Têm, e muito bem, uma tradição enraizada de defesa dos direitos individuais, mas isto paga-se, como se vê. E, novamente, estamos perante um dos tais casos em que o direito individual não afeta apenas a esfera individual. O vírus passeia-se pela sociedade, vai infectar os que, por qualquer razão, estão menos protegidos, viaja (os vírus hoje viajam imenso!) para as regiões em que se está a fazer o tal grande esforço de erradicação da doença.
Será legítima uma analogia? A frequência da escolaridade básica não é só um direito, é também uma obrigação legal; sou punido se não levar o meu filho à escola. Isto não é também ir contra a liberdade individual? Em que é que eu lesar a educação do meu filho e o valor social dessa educação difere de eu lesar a saúde do meu filho e a saúde pública?
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