quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Investigação universitária

Como já aqui discuti, houve durante muitos anos uma situação ambígua em relação aos centros de investigação reconhecidos pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e à sua articulação com as universidades que eram as suas “instituições de acolhimento”. Pagavam o pessoal, suportavam custos gerais, mas os centros geriam-se feudalmente à margem – ou até em conflito – da estrutura hierárquica da universidade. Chegavam a abrir conta bancária e emitir meios de pagamento sem terem personalidade jurídica e comprometendo legalmente o dirigente da unidade universitária. 

Isto foi invenção de Mariano Gago, então presidente da JNICT (precursora da FCT) e director de um dos centros incluídos neste esquema. Seria intolerável em qualquer universidade de qualidade, com grande sentido da coerência institucional. Até tem efeitos práticos, ao confundir a situação da investigação universitária para efeitos dos tão gabados rankings, coisa essencial na nossa feira das vaidades.

Por isto, algumas universidades estão a exigir aos seus docentes que só se possam filiar, em princípio, em centros da própria universidade. A meu ver, é inteiramente legítimo. No entanto, não me surpreende que isto desperte a oposição dos mandarins da investigação, infelizmente apoiados pelos sindicatos, com argumentos esfarrapados tais como a garantia da flexibilidade de constituição de equipas ou a obtenção de massas críticas ou de sinergias, ou o impacto internacional. Blá-blá, nada objectivado, modismos de língua de pau em que não apanham um investigador com muitos anos de ofício. Não tenho tempo nem espaço, agora, para rebater, o que seria fácil. O que realmente não se quer é a obediência à disciplina e controlo da transparência de gestão imposta às entidades públicas, como as universidades.

De tudo isto falei há pouco tempo, mas ocorre agora um dado novo sobre a investigação universitária, como veremos adiante. É indiscutível que os professores devem ter bom currículo científico, mas é obrigatório que a sua actividade de investigação seja praticada dentro da universidade ou podem adquirir esse currículo em outras instituições de investigação?

É uma questão já com algum tempo, a das universidades de ensino (teaching universities), com professores na segunda situação e contra o velho paradigma da universidade humboldtiana (com actividade própria de investigação, relevante). Então, não seria indiscutível que as universidades obrigassem os seus professores a pertencerem exclusivamente aos seus próprios centros.

Há muitos exemplos de universidades de ensino nos EUA, mas a mais conhecida é a Universidade Estadual da Califórnia (não a Universidade da Califórnia). É uma enorme universidade, com um corpo docente altamente qualificado, mas tem uma característica essencial: dá muito mais atenção à formação pré-graduada do que à graduada (mestrado e doutoramento). Reconhece-se que a formação graduada exige uma prática de investigação no contexto e em situação real, com total disponibilidade dos estudantes e dos professores, pouco compatível com a sua partilha entre a docência na universidade e a investigação em entidades externas.

Em Portugal, até recentemente, a perspectiva era a de valorizar a investigação intra-muros, praticada por professores profissionalizados, em regra em regime de dedicação exclusiva. Isto causava problemas às universidades privadas, com reduzido corpo docente em plena profissionalização e sem recursos para o suporte financeiro do funcionamento de base dos centros de investigação. Mesmo assim, tentavam apresentar centros à FCT, principalmente porque isso era essencial para a acreditação de novos cursos de mestrado e de doutoramento, segundo o decreto dos graus (DL 74/2006).

O DL 74/2006 impunha que as instituições “desenvolvam actividade reconhecida de formação e investigação ou de desenvolvimento de natureza profissional de alto nível”. Na prática, a A3ES (a agência de avaliação) sempre considerou isto como exigindo a existência de centros próprios com avaliação mínima pela FCT.

O DL 115/2013 altera significativamente essa disposição, introduzindo uma válvula de escape que sublinho: “desenvolvam atividade reconhecida de formação e de investigação ou de desenvolvimento de natureza profissional de alto nível, por si ou através da sua participação ou colaboração, ou dos seus docentes e investigadores, em instituições científicas externas, com publicações ou produção científica relevantes”.

Pode-se supor que a A3ES tenha de flexibilizar o rigor que tem tido, permitido pela legislação anterior. Não é questão menor, porque a acreditação de cursos de doutoramento tem grandes efeitos legais, até para a própria sobrevivência das universidades, que são obrigadas a facultar pelo menos seis cursos de mestrado e três de doutoramento, em áreas diferentes (Lei 62/2007). O DL 115/2013, aliviando a exigência de investigação intra-muros, vem claramente facilitar isto e sem que tenha havido um debate sério sobre o modelo universitário, a saber se se permite ou não universidades de ensino. Eu até concordo, em princípio, mas com  muitas cautelas.

Estranho não ver isto discutido, bem como o papel dos centros de investigação no contexto universitário, público e privado, tanto mais que vai começar dentro de poucos dias um novo processo de registo e avaliação de centros.

3 comentários:

  1. Tudo isto acaba por ser bizarro, conheço docentes investigadores que estão ligados a centros de investigação e laboratórios de outras universidades porque a sua casa não dispõe sequer de um projecto de investigação para a sua área científica.
    Estas medidas vão feudalizar ainda mais as universidades.
    Vai ver que o passo seguinte vai ser proibir o docente de se inscrever noutra universidade para fazer a agregação ou mesmo o doutoramento.

    "Pagavam o pessoal, suportavam custos gerais, mas os centros geriam-se feudalmente à margem – ou até em conflito – da estrutura hierárquica da universidade"

    Isto não é verdade, quando o CI não tem personalidade jurídica é a universidade a barriga de aluguer da investigação, com prejuízo desta, não porque seja tudo à balda, mas porque a disciplina financeira é a de qualquer repartição pública, o que acaba por determinar um rigor por vezes pouco compatível com as necessidades da investigação. Sei do que estou a falar.


    Saudações

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  2. Claro que há de tudo. Não disse que concordava com uma eclusividade total de pertença a um centro da própria universidade, mas penso que, como regra geral, deve haver clareza institucional e não se permitir que a estrutura de investigação seja uma fuga à disciplina hierárquica. E que é, muitas vezes, sei eu bem que sim, por experiência própria.

    Quanto ao argumento da rigidez administrativa, de facto é muitas vezes, e com razão, o argumento da má gestão e da rotina burocrática. Para combater isto, não é preciso enviesar o sistema. Por exemplo, quando director de uma instituição universitária, pu-la a pagar todas as facturas no prazo máximo de um mês, o que resultou num plano de descontos consideráveis com os fornecedores. Também dei prioridade absoluta a tudo o que era processamento administrativo de projectos.

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  3. Os Conselhos Científicos têm por resolvida a afectação do tempo de trabalho do docente: actividade lectiva, apoio à comunidade e investigação. Na primeira e na segunda não há fuga à disciplina hierárquica, na investigação não tem de haver sequer hierarquia, na vida de cada docente/investigador há um momento em que presta contas do que andou a fazer ou seja a prestar contas do bom ou mau uso que andou a dar à sua autonomia científica. O que acho estranho é que sejam as universidades a querer esta exclusividade e abdiquem de avaliar a qualidade da investigação dos seus. Naturalmente que sendo feita entre muros, por muito má que seja, será sempre muito boa.
    Em relação aos CI e ao projectos, essa questão resolve-se criando centros de custo, pode-se até permitir que as próprias unidades tenham meios de pagamento tipo cartão de crédito (a maior parte da investigação implica compras online) prestando contas da sua actividade. A questão é a estrutura saber agilizar-se, nao fazendo sentido centralizar todos os processos.

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