quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O ódio como razão política

Declaração prévia – Pessoalmente, não gosto de Sócrates, não votei nele mas sim em branco. Acho que tem defeitos de carácter que o diminuíram politicamente. Mas as minhas análises políticas não dependem das minhas simpatias ou antipatias. Esforço-me por ser racional e justo.

As entrevistas de Sócrates, ao Expresso e à TSF, mostraram-me um homem mais amadurecido, que estudou e que se soube distanciar com alguma sabedoria daquilo que é risco conhecido de todos os vencidos – vae victis! –  o de serem massacrados sem possibilidade de defesa pelos seus substitutos mesquinhos. Quanto ao tema do seu regresso, o da tortura que trabalhou em livro, não rejeito qualquer das suas teses.

Conversámos muito sobre isto cá em casa, fazendo um exercício de advogado do diabo de toda a gente que anda embarcada no ódio a Sócrates – e começo logo por dizer que, por mais críticas políticas que faça, nunca me movo por ódio, mau conselheiro – e apeteceu-me escrever um “post”. Fá-lo-ia mais aprofundadamente se Daniel Oliveira (DO) não se tivesse antecipado, no Arrastão. Mesmo assim, creio que vale a pena algumas notas, ou de comentário ao que DO escreveu ou ao que não escreveu.

O ódio a Sócrates é talvez, entre nós, com algum afloramento prenunciador na queda em desgraça de Cavaco, o primeiro exemplo flagrante da atitude primária do eleitorado, incapaz de analisar objectivamente as políticas e, por outro lado, alienado pela ineficácia do sistema da ajuda de intermediários que o ajudariam nessa análise, bem como da desqualificação da comunicação social. Não se discute a política, discute-se o homem, com a política transformada em circo. Destroem-se as reputações e o homem da rua vai atrás, porque onde há fumo há fogo. A democracia transformou-se em demagogia.

Sou da geração que foi confrontada com o problema da tecnicidade da decisão política (lembram-se do Clube de Roma?), com a emergência da tecnocracia a dominar a política e a concepção tradicional da democracia representativa e baseada no poder, directo ou delegado, dos cidadãos, nunca diminuído por limitações de conhecimento técnico. A princípio, na segunda metade dos anos 60 (embora já antes influenciando a deriva social-democrata baseada na “evolução” do capitalismo), a questão era ainda relativamente teórica, embora com a afirmação política de quadros tecnocratas (veja-se, na nossa península, os Opus Dei em Espanha e os jovens marcelistas em Portugal, com um Salgueiro ainda a ser venerado por toda a comunicação social).

Hoje, isto não basta, em boa parte porque o 25 de Abril pôs tudo isto em questão e porque, décadas depois, temos uma boa plêiade de novos pensadores e economias que estão a repensar a economia política, numa perspectiva de esquerda. Referência obrigatória, com forte aplauso, para o Ladrões de bicicletas. A direita já não pode confiar em que a sua tecnocracia funcione sem sobressaltos, em que as pessoas não se questionem. É preciso formatarem as mentes, as opiniões, as vontades. Aprenderam Marx e Gramsci, em seu proveito. 

Para isto, dispõem da comunicação social e das universidades, como instrumentos principais. E tudo visando a construção mental, nas pessoas passivas – quantos idosos bebem horas e horas a televisão? – de ideias desonestamente prefabricadas. A televisão é a sua amiga e companheira, na sua solidão, é uma máquina de 1984. O que a televisão diz é a opinião que assimilam, sem necessidade de esforço crítico. Mas também o mesmo se pode dizer dos activos, que não deixam de ser vulneráveis a outros meios de informação, principalmente quando tudo se filtra, no caso dos jovens quadros gestores e outros, pelo enquadramento em que foram moldados pela ideologia neoliberal dominante nas escolas com nome inglês ou na esperança do MBA.

Não há qualquer pudor em falsificar a verdade. Comecemos por isto, em relação a Sócrates. Quem é que, no público amorfo, foi confirmar a informação insistente do governo, de que Sócrates foi o responsável pela actual situação? Pelo défice orçamental e consequente aumento da dívida pública? Pela diminuição do PIB? 

A percentagem da dívida pública em relação ao PIB estabilizou à volta dos 50% a meados dos anos 90 (governos Cavaco). Depois, foi crescendo progressivamente, mas de forma contínua, até 2008 (governo Sócrates), a nível de cerca de 70%. Não há qualquer variação brusca que possa indicar uma responsabilidade particular de um governo – Guterres, Barroso, Santana Lopes, Sócrates. A subida exponencial de 69% em 2008 para quase 130% previstos para 2013, é durante a crise europeia e, nos últimos dois anos, com o actual governo (subida de 102% para 130%). Subida de quase 20%, tanto como nos 20 anos anteriores. Saliente-se que o endividamento em 2008, no início da crise, se deve principalmente à política keynesiana de investimento contracíclico recomendada pela UE e seguida pela generalidade dos países da zona euro, que a Sra Merkel contrariou desde logo e que conseguiu inverter, com as consequências que se vêem.

Também a propaganda do governo, assassinando Sócrates em carácter político, é desonesta no que se refere à evolução do PIB. Houve um primeiro ciclo de descida do PIB, entre 2000 e 2003, mas que corresponde ao segundo governo Guterres. No entanto, lembre-se que é incorrecto relacionar num tempo curto a evolução do PIB com a política. Em 2003 há uma primeira queda, de cerca de 1%, e a seguir um ciclo de quatro anos com pequenos aumentos de cerca de 1,5% ao ano. Em 2009 inicia-se o actual ciclo recessivo, com interrupção em 2010. Não é fácil demonstrar que isto, consequência da crise europeia, tenha a ver, directamente, com a governação de Sócrates.

Mas isto também serve para outra coisa, por parte da direita. Culpabilizar Sócrates é muito bom mas ainda melhor se ao mesmo tempo se fizer esquecer outras culpas. As séries temporais que referi datam de 2000 ou 2002. A data é importante, é a da nossa adesão ao euro. Teve coisas que o homem comum, o tal que a TV e os seus opinadores massacram, desconhecem. O escudo converteu-se em euro com sobrevalorização artificial, o que desde logo diminuiu a competitividade da nossa economia. Deixámos de controlar uma moeda própria e de nos ajustarmos às pressões da competitividade. Deixámos de poder usar a paridade, as taxas de juro, a inflação. Passámos a ter taxas de juro muito baixas, com grande afluxo de capitais dos “países centrais” e grande endividamento (muito mais significativo do que a dívida pública). Os bancos passaram a ter muito maior liquidez e a fazer um enorme marketing a favor do endividamento dos particulares. 

Com a crise e o seu momento trágico de meados de 20011, tudo se esboroou. Os bancos alemães e franceses retiraram os capitais investidos, o BCE secou os bancos dos países periféricos, entrou-se em falta de liquidez. Então, como sabemos agora por Sócrates – sem desmentido – Passos Coelho traiu-o, Teixeira dos Santos praticamente também (mas porque foi sempre mantido como ministro?), os bancos chantagearam-no. E o “animal feroz” cedeu! Nestas alturas é que se vê o homem, que se devia ter demitido sem a cedência do resgate.  

Dito tudo isto, o que é que derrotou Sócrates? Não a política, mas o homem. As eleições cada vez mais se decidem pelo “pão e circo”, pela imagem feita por profissionais e não pelas propostas sinceras – e quem as faz?. E é patente que os rótulos são fabricados por massacre comunicacional, não por argumentos sérios. Sócrates é mentiroso. Em quê? Nas promessas eleitorais que todos fazem? Sócrates é ladrão. Mas os “trabalhos jornalísticos” que o condenaram levaram a alguma coisa daquilo que só aceito como sentença, a dos tribunais? Sócrates é leviano, como se vê no caso da licenciatura. É verdade, foi pouco rigoroso embora sem nenhuma ilegalidade (a história da nota ao domingo é total parvoíce), como já tinha sido no caso das casas da Beira. São erros, coisa pior do que crimes, e que em política se pagam caro, dizia Talleyrand.

Simplesmente, quando estava em jogo a escolha de um governo que iria ser responsável por quatro anos de negociação com a troika e de aplicação das suas ordens ao protectorado, como é possível que tantos milhares de eleitores do PS tenham ido votar no PSD? Foi ignorância? Se foi, é a democracia representativa que tem de ser repensada? Mas como se seleccionariam os “esclarecidos”? Ou como um poder popular revolucionário pode promover o esclarecimento dos eleitores? O mesmo em relação ao voto hoje determinado pela emotividade, pela manipulação dos sentimentos, pela simpatia de tipo telenovela. Pode-se mudar, com leis de controlo revolucionário dos aparelhos políticos propagandísticos e da comunicação social.

Por tudo isto, e por conversas avulsas com gente comum, verifico que muito tipicamente os actuais detractores de Sócrates são antigos votantes do PS que, em 2011, aborrecidos com aspectos não directamente políticos do homem (não digo que não importantes: a arrogância, a agressividade de discurso, o ar altivo), votaram no PSD. Como se sabe, foram muitos. 

Portaram-se infantilmente, em relação a tudo o que estava em jogo. Votaram porque não gostavam dele, assim como não se gosta de uma estrela do ecrã. Hoje estão arrependidos mas não confessam. Preferem arranjar desculpas, que Sócrates é que teve toda a culpa da crise e que por isso votaram bem, mesmo que admitindo que Passos ainda é pior. O problema é que, presos neste jogo, só têm para a próxima uma saída fácil, mas má para a democracias: a abstenção.

Concluindo, não gosto de Sócrates, mas não me verão a pontapear o animal derrotado e sem forças.

NOTA – É claro que poderia ter havido outro cenário, na selecções de 2011: o de o PS ter aparecido com outro líder. Precisava de legitimidade partidária? Havia tempo para isso? Não sei, mas creio que não foi esse o factor principal, antes a dependência do aparelho carreirista em relação ao chefe.

1 comentário:

  1. Há qualquer coisa de Mourinho em José Sócrates, e a natureza do ódio que se tem por um é a mesma que se tem pelo outro. O pilar principal em que assenta é um pecado bem português: a Inveja.

    Há também qualquer coisa de Berlusconi em José Sócrates e é também por isso que voltaremos a ter de decidir se votamos nele outra vez ou nem por isso !

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