terça-feira, 11 de junho de 2013

Pode explicar, Rui Tavares?

Rui Tavares (RT) é um homem de esquerda, estimável, e não tenho razões para pensar que não seja um homem sério. É certo que, a meu ver, deve explicações sobre a quebra de compromisso eleitoral com o BE e passagem para um eurogrupo parlamentar rival. Que, a meu ver, não foram claros os seus objectivos na sua iniciativa congregadora de que resultou apenas um manifesto anódino e até ambíguo. Que RT se dispersa por coisas inconsequentes e de albergue espanhol (até com Veiga Simão), como o Manifesto pela Democratização do Regime. Que exprime opiniões com as quais concordo muitas vezes e na generalidade mas que, frequentemente, me parecem ter uma carga demasiada de retórica política sem boa base teórica e suficiente suporte de economia política. Em contraponto, admiro a sua motivação e militância e, por exemplo, iniciativas tão louváveis como a de criação de bolsas de estudos com parte do seu rendimento de eurodeputado.

Por tudo isto, fiquei abismado com o seu “post” recente, intitulado “A Grande Valorização”. Parece uma habilidade, um truque mental; ou então um grosseiro erro de raciocínio. Não quero crer que seja intencional, até porque RT é suficientemente inteligente para não fazer propositadamente coisa tão primária. De qualquer forma, mais uma vez, parece-me que RT deve uma explicação. 

Como introdução-resumo, escreve RT que 
“Antes de ter de optar entre desvalorização interna e desvalorização externa, seria necessário refutar a possibilidade de outra saída da crise: a Grande Valorização. Essa Grande Valorização seria prolongada, passo a passo, e teria três aspectos: a valorização financeira, a valorização da economia e, finalmente, — porque é aquela que mobilizará as pessoas para as outras duas, — a revalorização democrática.” 
Troquemos por miúdos. RT explica que, “ao que dizem”, há duas maneiras de sair da crise. Uma é a que temos seguido. A outra é a saída do euro. Passemos de lado pela incrível simplificação desta afirmação, porque é mais incrível ainda o que RT escreve a seguir. De facto, para RT, não há, à partida, razão para discutir esta dicotomia

Para RT, ambas as vias são formas diversas de desvalorização para aumento da competitividade e só assim as designa, muito sintomaticamente. A austeridade é simplesmente (RT) uma desvalorização interna: “baixar salários, cortar prestações sociais e baixar na exigência ambiental ou laboral.” O oposto, mais vulgarmente a luta anti-troika, é (RT) a desvalorização externa: “implica sair do euro para voltar a imprimir a nossa moeda e desvalorizá-la. A proposta aparece como uma rutura inevitável e até de emergência perante a brutalidade da desvalorização interna.”

Em ambos os casos, tratar-se-ia de um "retorno ao passado", numa perspectiva comum de “ambas serem económicas, num sentido muito estrito”. Percebe-se que RT continua a ter dificuldades em lidar com a economia política – e não é por não ser economista, porque muitos outros opinadores políticos consistentes também não o são. O seu terreno por excelência é o da política, numa mistura tradicional de ideologia pura e de acção institucional, em que se vê que se sente bem.

Considerar as duas políticas irremediavelmente antagónicas, pró e contra austeridade como reduzidas – afinal como que convergindo para o mesmo objectivo! – a meras políticas de desvalorização competitiva é espantoso. Não estou a deturpar. Adiante veremos que RT as contrapõe, às duas, a uma sua proposta, até verbalmente oposta em designação (parece brincadeira mas não é). 

Não cabe aqui a discussão, mas como pode um eurodeputado de esquerda omitir todos os aspectos ideológicos neoliberais do austeritarismo, a destruição propositada do estado social, o benefício, à escala europeia, dos estados ricos, o papel do capital financeiro, etc.? É só economia?

E a luta contra a austeridade, a denúncia do memorando, a reestruturação da dívida, a eventual saída do euro, a defesa do estado social e da solidariedade, reduzem-se a aumento da competitividade por desvalorização monetária? E a capacidade de emissão de moeda, de dispormos de um emprestador de última instância, de melhor regular a banca, de combater a especulação financeira, de determinar as taxas de juro e de inflação, afinal, de colocar a economia ao serviço do povo e de defender os interesses nacionais? É tudo economia?

Falando só do que mais me motiva, é rotunda falta de verdade que a alternativa à austeridade seja obrigatoriamente a saída imediata do euro, com desvalorização da moeda, embora seja eventualidade a analisar e ponderar. RT devia saber que o que diz não é verdade.

Continua RT: 
“Ambas as soluções são, de forma mais ou menos admitida, um regresso ao passado. (…)  A ideia de que a presente situação só apresenta duas possibilidades — ou austeridade ou saída do euro — empresta-se facilmente à frustração e ao derrotismo. Dificulta a criação de um programa comum da oposição e a criação de alternativa, pois paralisa o povo — quando mobilizá-lo é condição essencial para qualquer saída da crise. As pessoas querem dar a volta a isto, mas não querem necessariamente voltar para trás.”
Repare-se, novamente: ou austeridade ou saída do euro!

E como não voltar para trás, antes avançando? A resposta para RT é tão simples como tirar um coelho da cartola. É que, afinal, as tais duas desvalorizações – como o próprio termo indica! [observação minha, JVC] – não são a verdadeira alternativa. Discuti-las só faz sentido depois de discutida a oposição entre elas (presume-se que em conjunto) e a sua verdadeira antítese, a grande descoberta de RT, a Grande Valorização (com maiúsculas e tudo…). 
“Essa Grande Valorização seria prolongada, passo a passo, e teria três aspectos. A valorização financeira, através de uma reforma fiscal, de instrumentos que atraíssem capitais, e do combate à lavagem de dinheiro e à evasão fiscal. A valorização da economia, através da aposta no capital humano e na reconversão do nosso perfil produtivo. E, finalmente, — porque é aquela que mobilizará as pessoas para as outras duas, — a revalorização democrática. Para devolver às pessoas confiança na ação política como forma de resolver os seus problemas.” 
Não quis crer nisto que li, montanha que pariu um rato. Valorização como, com que meios, com que políticas, com que instrumentos económicos, reais e institucionais, com que aproveitamento de contextos internacionais, etc.? E tem RT a certeza de que a “revalorização democrática” é a que mobilizará as pessoas para as outras duas, afinal as que mais as afectam na sua crise de economia familiar, senão de pobreza?

De facto, o que RT está a fazer, com este jogo de palavras em que acaba por contrapor a “grande valorização” às duas desvalorizações, é recusar a saída do euro – mesmo como hipótese – por ele identificada como desvalorização externa e retorno ao passado. Isto é demonstrado por outro seu “post” posterior, em resposta a João Rodrigues

Outra possibilidade razoável, atendendo a muitos escritos de RT e à sua posição como eurodeputado, é que esteja também a pensar numa “grande valorização” essencialmente enquadrada, mesmo dependente, de uma revolução europeia, dos povos, (à 1848?...) ou, mais prosaicamente mas mais miraculosamente, por conversão ideológica de Merkel, Barroso, Rehn e tutti quanti. É o grande sonho da fada europeia, mas cada um lê os livros infantis de que gosta, desde que não passe a vida a recitá-los aos outros.

No entanto, afinal, RT está sozinho? Esta vacuidade de propostas está a caracterizar a posição de muitos políticos de esquerda que, em prol de uma unidade que tenho por irrealista, se arriscam a esterilizar a luta contra esta nunca vista ofensiva do grande capital. Voltarei a isto.

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