terça-feira, 25 de junho de 2013

Estar meia grávida

RESUMO: Já é recorrente: a culpa do actual impasse político à esquerda, cada vez mais dando espaço à direita ultra(neo)liberal, é de os partidos de esquerda não se entenderem para uma alternativa credível (o que é credível e para quem?) de esquerda. Há dois grupos de pessoas a espalhar essa virose. Uns são verdadeiros doentes da crise e merecem toda a simpatia e compreensão. São a gente anónima que sofre, que protesta, que dá a cara na rua mas que, sabendo que quer ver este governo pelas costas, não vêem outra forma que não a eleitoral, resultando esta, realisticamente e na melhor das hipóteses, num governo de alternância, do PS, senão do PS coligado à direita. É natural que estas pessoas, confusas e perplexas, manifestem o desejo de uma verdadeira alternativa, independentemente de saberem ou não se ela é viável a curto ou médio prazo. Os outros são tipicamente os independentes de esquerda, de quase tantas esquerdas quantos os independentes, alguns julgando-se com mandato para obrigar os partidos a se entenderem. Mandato que lhes será conferido pelos movimentos inorgânicos, pelos jovens, pelos desempregados, pelos justamente enraivecidos, etc. São os messias da esquerda.
Assim, a meu ver, qualquer acção realista de independentes de esquerda ou de novos movimentos e grupos de pressão deve considerar que, neste ciclo político, com ou sem eleições antecipadas, os protagonistas institucionais – os actuais partidos – não mudarão, manterão as suas divergências (até para individualização eleitoral) e não farão qualquer esforço de unidade. Pensar em contrário parece-me “wishful thinking” irracional. Muito menos assinarão qualquer forma de programa comum, ou de programa mínimo. Como é possível haver qualquer aproximação entre posições radicalmente opostas em relação ao essencial de hoje, a crise, a austeridade e a questão do euro? Dir-me-ão que é sempre melhor fazer metade do caminho do que nada. Nem sempre é possível. Uma mulher pode estar meia embriagada, mas nunca pode estar meia grávida. E será que essa unidade teria resultados a curto prazo, por exemplo eleitorais? Não estou convencido. 
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Já é recorrente ou, como está na moda dizer-se – moda tonta, como em geral são as modas – já é viral:  a culpa do actual impasse político à esquerda, frustrante e desmobilizador, cada vez mais dando espaço à direita ultra(neo)liberal, é de os partidos de esquerda não se entenderem para uma alternativa credível (o que é credível e para quem?) de esquerda. Alguns, mais subtis, omitem a referência aos partidos. É a esquerda que não se entende, o que permite a leitura de que são tão honestos e humildes que confessam a sua corresponsabilidade, como homens de esquerda, nesse impasse. Joguinho infantil.

Há dois grupos de pessoas a espalhar essa virose. Uns são verdadeiros doentes da crise e merecem toda a simpatia e compreensão. São a gente anónima que sofre, que protesta, que dá a cara na rua mas que, sabendo que quer ver este governo pelas costas, mais os seus patrões da troika externa, o mais urgentemente possível, não vêem outra forma que não a eleitoral, resultando esta, realisticamente e na melhor das hipóteses, num governo de alternância, do PS, senão do PS coligado à direita. É natural que estas pessoas, confusas e perplexas, manifestem o desejo de uma verdadeira alternativa, independentemente de saberem ou não se ela é viável a curto ou médio prazo.

Os outros são tipicamente os independentes de esquerda, de quase tantas esquerdas quantos os independentes, cada um com a sua, e por isto com coesão de fio de costura. Especialistas em discursos redondos de homem de estado com sensatez senatorial, em redacção de manifestos, em proclamação de propostas políticas sem fundamentos objectivos e com evidência de reduzida experiência das artes e ciências da política. Felizmente, são a minoria deste amplo campo da esquerda.

Quando protestam contra a incapacidade de os partidos de esquerda se entenderem estão é a dar a entender que toda a impureza dos partidos só será lavada e transformada em nova força unida pela sua pureza de independentes que, com a sua típica arrogância de intelectuais, vão receber um mandato para obrigar os partidos a se entenderem. Mandato que lhes será conferido pelos movimentos inorgânicos, pelos jovens, pelos desempregados, pelos justamente enraivecidos, etc. São os messias da esquerda.

Claro que estou a caricaturar e seria injusto não reconhecer que a maioria dos que têm apoiado as variadas iniciativas e tomadas de posição – eu próprio – são gente de esquerda empenhada, convicta e coerente. Mas também sabemos que há sempre nestas coisas oportunismos, vaidades, protagonismos, carreirismo, dor de orfandade política. Por isto também, e por grandes diferenças de experiência e coesão, o sucesso de algumas das iniciativas dos últimos anos tem sido tão díspar

A Convergência e Alternativa, saída em boa parte da candidatura de Manuel Alegre, apareceu antes do tempo e não considerou a natureza diferente em relação àquela candidatura. O M12M desvaneceu-se, com os seus principais activistas absorvidos por partidos, o 15 de Outubro e os acampados foram um fiasco, o Que se Lixe a Troika tem altos e baixos. A Iniciativa Cidadã da Dívida vai indo com segurança, mas não pretende mais do que pode realisticamente fazer. O Congresso Democrático das Alternativas tem tido alguma acção e com o bom senso de não hostilizar os partidos, embora deixando-se conotar demasiado com o BE. Já o esquecido Manifesto para uma Esquerda Livre não dá sinal de si desde há bastante tempo. 

Também não era difícil adivinhar o desfecho deste Manifesto, em relação a uma iniciativa que começa por caracterizar os seus membros como as pessoas de esquerda livres, como se todos os restantes fossem cúmplices ou prisioneiros “do sectarismo e do feudalismo político”. Ou que proclama vivamente, nestes tempos de escuridão europeia, o empenho na sua “transformação numa verdadeira democracia, apoiada na solidariedade e na coesão”. 

Em muitos casos, os promotores destas iniciativas estão em posição privilegiada para exercer pressão efectiva, podendo chegar com sucesso ao que continuo a entender sumamente desejável, a criação de um novo partido de esquerda (ver nesse "post" ligações a anteriores). Ou, para os muitos que ainda não se revêem nesse qualificativo mas que a crise faz olharem o novo partido como a alternativa eleitoral que agora não têm, um partido dos trabalhadores, reformados e desempregados, um partido das forças populares.

Com efeito, as grandes dificuldades práticas de criação de um partido quase que limitam isso à iniciativa de centros de poder muito pessoalizado (caso do PRD), a cisões nos partidos ou a iniciativa de pessoas especialmente bem colocadas institucional e mediaticamente. Cisão no PS, que esteve na criação, por exemplo, do Parti de Gauche francês, ninguém está a ver. A ala esquerda do PS está amorfa, a perder toda a credibilidade que ainda lhe vinha de nomes históricos hoje abafados pelo aparelho. Em relação à área tradicionalmente comunista, as cisões alimentaram o PS ou deram na Renovação Comunista, de velhos amigos que muito estimo mas hoje bem sentados no sofá de uma boa cavaqueira política.

Assim, a meu ver, qualquer acção realista de independentes de esquerda ou de novos movimentos e grupos de pressão deve considerar que, neste ciclo político, com ou sem eleições antecipadas, os protagonistas institucionais – os actuais partidos – não mudarão, manterão as suas divergências (até para individualização eleitoral) e não farão qualquer esforço de unidade. Pensar em contrário parece-me “wishful thinking” irracional.

Muito menos assinarão qualquer forma de programa comum, ou de programa mínimo. Tão mínimo que me faz logo recordar a anedota do agachar. A discussão fica para depois, mas desde já registo o essencial da minha opinião. Como é possível haver qualquer aproximação entre posições radicalmente opostas em relação ao essencial de hoje, a crise, a austeridade e a questão do euro? Pode-se recusar liminarmente a lógica do euro, defender a reestruturação da dívida, estar pronto a estudar a saída do euro e, ao mesmo tempo, tentar pontes programáticas com quem defenda apenas uma tímida renegociação dos prazos e das metas, mas sem pôr em causa o pagamento escrupuloso da dívida e vendo o diabo na simples ideia da saída do euro? 

Dir-me-ão que é sempre melhor fazer metade do caminho do que nada. Nem sempre é possível. Uma mulher pode estar meia embriagada, mas nunca pode estar meia grávida.

E será que essa unidade teria resultados a curto prazo, por exemplo eleitorais? Não estou convencido. Podem dizer que é mero palpite, mas creio que o fiel da balança, em próximas eleições, será um grande número de pessoas que dificilmente se podem chamar de esquerda nem são sensíveis a uma unidade de esquerda que não compreendem, que consideram irrealista. Mais, aos olhos desses eleitores gente comum, de classe média (precisaria de definir isto; será noutro dia), habituados às regras de uma sociedade capitalista, com que não querem romper, nem sequer com o euro – vejam-se as sondagens, também na Grécia do Syriza – para esses eleitores essa frente, coligação, plataforma, chame-se o que quiser, inclui partidos “insensatos”, “radicais”, que ainda podem indispor os “nossos amigos”.

O protesto e a indignação com o que estão a sofrer é cada vez maior mas todas as conversas que tenho com pessoas comuns me mostram que, apesar disso e da angústia em relação à falta de alternativas eleitorais, dificilmente votarão, a curto prazo, fora do arco a que estão habituadas. Do PS para o PSD, porque já não podiam com as aldrabices de Sócrates e não perceberam as desavergonhadas mentiras de Passos Coelho. A seguir no sentido inverso, do PSD para o PS, porque já não suportam Passos, Gaspar e “todos os gatunos” e porque, sabe-se lá porquê, só lhes resta acender uma velinha por Seguro. Isto não significa derrotismo, da minha parte. Creio que é lucidez, admitindo que possa estar errado. E tendo alternativa, como direi no fim.

Também o que escrevi não significa menosprezo pelas movimentações sociais ou iniciativas não institucionais, muito menos que devam deixar mãos livres aos partidos. O que acho é que uma revolução – não tenhamos medo da palavra – que se prepara não se faz com estereotipos lidos nas revistas pernósticas de teoria social, nem com experimentalismos imaturos, nem com ataques inglórios contra entidades com grande força institucional. A gente da esquerda, toda, tem de contribuir seja de que forma for e preferir, partidariamente, em movimentos, em acções pontuais, na luta comunitária, na defesa de causas, mas com empenho, humildade, sentido democrático, aquisição progressiva de maturidade ideológica e política e de capacidade de diálogo.

Nada disto é para amanhã, mas tem de começar hoje, sem que a falta de efeito hoje justifique o desânimo. Os grandes revolucionários sempre perceberam que o factor momento é crítico no rebentar uma crise revolucionária. Julgar que tudo se pode fazer em qualquer momento é voluntarismo.

No imediato, a tarefa é derrubar este governo, porque seja o que vier depois não pode ser pior. Contra a posição de Cavaco e provavelmente as pressões da troika, isso exige – aqui concordo – uma forte unidade.

Quanto às eleições seguintes, como já aqui escrevi, creio que o próximo ciclo eleitoral pode e deve ser visto como bifásico. Só assim poderá fazer sentido muita coisa de que duvidei nesta crónica: a possibilidade de um novo partido, a aliança para-eleitoral entre partidos e movimentos, eventualmente uma plataforma política democrática, popular e anti-ultra(neo)liberalismo, um programa económico concreto com fundamentos científicos sólidos articulados com pressupostos ideológicos de defesa dos trabalhadores, reformados e desempregados.

De forma “politicamente incorrecta”, não receio dizer que, em minha opinião, o PS, tal como é actualmente e com toda a sua história e compromissos com o capitalismo, em particular com o sector financeiro e das grandes empresas, com o seu clientelismo sempre factor de corrupção, com o seu carreirismo limitante da escolha dos mais capazes, é parte do problema e não parte da solução. Não sei mesmo se é justo fazer como muitos, atribuir de forma salomónica iguais culpas de falta de entendimento ao PS e ao PCP (curiosamente, esses habitualmente deixam de fora o BE).

Creio que o PS ficará em primeiro lugar e a formar governo, mas sem maioria absoluta, aliando-se à direita. Espero que a restante esquerda, institucional ou não, evite a imagem de oposição por tudo e por nada, com vitimização do PS, mas sem prejuízo de “encostar às tábuas” o PS perante o grande eleitorado moderado mas queixoso, mostrando que austeridade com açúcar não é muito diferente de austeridade com picante. A pasokização ou hollandização do PS não será hipótese irrealista e poderá ser então tempo mais favorável ao aparecimento de novas alternativas partidárias, inclusivamente a partir do interior do PS.

Claro que tudo isto se, entretanto, a economia não rebentar. Ou se o povo entretanto não se zangar a sério. E muitos outros ses.

P. S. – Há dias critiquei Rui Tavares, hoje também chamado à pedra por Nuno Teles, que lhe apontou alguma ignorância económica. Para mim, não é nenhum "ódio de estimação" (há outros messias de esquerda mais acacianos e oportunistas), mas é um bom exemplo, felizmente raro, do que critiquei neste texto. Para além do tal epíteto de "esquerda livre", tem vocação para o insulto a outras esquerdas, que pecam por "moleza" ou "inconsequência" ou por não terem coragem. Convenhamos que não é bonito para quem tanto quer a unidade.

2 comentários:

  1. Quando propoe um novo partido, creio que bastaria que defendesse a dignidade do trabalho, a classe media defensora dos valores democraticos,e que tem sido tão atacada,tendo como pressuposto a defesa dos reformados,e dos desempregados,e lutasse definitivamente contra as várias formas de corrupção que sangram o país.

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  2. Notável, a sua reflexão.
    Concordo com ela em absoluto. As nuances que sou capaz de distinguir entre o seu pensamento, profundo, experimentado e documentado, e o meu, provavelmente superficial e jacobino, são de nula importância face ao essencial.
    Mas não posso deixar de referir aqui que, na hora de partir da reflexão para a acção, todos precisaremos de uma ideia estruturada do todo e dos vectores do desenvolvimento que será indispensável apresentar como sérios e credíveis para motivar a vontade de mudar que assenta na confiança e na fé.
    Eu tenho para mim que um desses vectores, pelo seu real potencial organizativo (rompendo com o caciquismo municipalista que alimenta o centralismo) e de desenvolvimento (pelo envolvimento em termos de proximidade dos cidadãos na construção do seu próprio futuro) e de suporte para uma redefinição do modelo representativo, é a regionalização, corajosa, ambiciosa, visionária, a revolução cujo embrião ficou a secar na Constituição, que ninguém ousa remover mas que "todos" (leia-se poder político instalado em Lisboa) vêem inquinados dos maiores vícios e, por isso (com a formação política nos tempos do fascismo), para "mais tarde".
    Acredito profundamente que se vai descobrir que sem regionalização se vai assistir à descolonização, desertificação, do interior, terra de ninguém entre Lisboa e as Comunidades de Galicia, de Castilla la Vieja, de Extremadura, de Andalucia. e acredito do mesmo modo que ela pode ser a plataforma nova em torno da qual é possível conjugar vontades e conciliar projectos.
    Sem uma plataforma realmente nova não haverá novo partido que sobreviva ao nascimento.

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