terça-feira, 4 de junho de 2013

It's politics, stupid

RESUMO. No início da crise, chamei aqui a atenção para a necessidade de um novo discurso político bem alicerçado em estudos económicos. Hoje talvez esteja a acontecer um pouco o contrário. Uma parte considerável dos blogues, dos textos de opinião e dos manifestos políticos são de natureza predominantemente económica e da autoria de economistas que, principalmente à esquerda, têm tido assinalável protagonismo político (ninguém pode levar isso a mal), como independentes ou como membros conhecidos de um partido. Ao contrário do que se podia entender erradamente que defendia antes, como predomínio da necessidade de uma grande reflexão económica, creio que ela deve ser condicionada à política e, para o cidadão comum, espelhar-se em propostas políticas. A discussão económica é fundamental, como é fundamental a informação dos cidadãos. Mas não dispensa a mensagem de que a solução é sempre, no fim, política e social. Social também no sentido de que não se esgota na política institucional e partidária. Estão em causa – e com riscos – grandes bandeiras das lutas populares e da esquerda, e as suas conquistas.

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No primeiro texto deste blogue, “Escrever à esquerda, hoje”, em 5.1.2011, escrevi que 
“(…) um ano que promete muito pouco. E que vai ser, palpita-me, o primeiro de um ciclo de anos “en la calle”, novo ciclo de 1848. Por isto, um enorme desafio à esquerda, que entre nós - veja-se o tom do debate presidencial - continua a ter um discurso tradicional. Veja-se a quantidade de gente do meu tempo que anda a escrever posts em blogues no mais velho estilo de política retórica. Ainda não perceberam que hoje o discurso político domina bem a economia política ou não tem credibilidade contra esse horroroso emprenhamento pelos ouvidos que os "economistas" de serviço estão a fazer?”
E, sobre os economistas e opinadores de serviço que já então formavam (ou deformavam) a informação:
“O que está aqui em causa, nesta enorme coligação de mediocridade e cobardia política, de submissão aos poderosos - desde os banqueiros a nível local até à chancelerina a nível europeu - é pura e simples aldrabice descarada, em que tudo o que há de pior na qualidade intelectual e ética se mistura: falta de sentido ético e da solidariedade social, conservadorismo, interesses pessoais e grupais, deslumbramento com a riqueza, mentalidade de escudeiro (à Gil Vicente), falta de rigor e de profundidade de pensamento, ir com a moda, cobardia, chico-espertismo.”
Assim, repetidamente chamei a atenção para a necessidade de a esquerda ter posições bem fundamentadas cientificamente na economia política, vendo-se que era a área de malabarismo retórico da direita, tirando partido da falta de informação da maioria das pessoas. A grande maioria dos blogues políticos descurava a abordagem de problemas económicos, quando não os menosprezavam abertamente. Também é sintomático, pelo que me toca, que este blogue tenha inserido desde o início, na barra lateral, uma coleção de ligações a sítios e blogues de economia, parodiando (com sentido diferente) a célebre frase de Clinton, “it’s the economy, stupid”.

Talvez tenha havido uma viragem exagerada. Com a agudização da crise, a discussão política à esquerda passou a ter um conteúdo cada vez mais económico, centrado na crise e no combate à política austeritária. Mesmo no que a política tem de mais essencial, a sua base programática, o que está hoje em confronto é a escolha entre duas propostas marcadamente económicas, de tal forma que até podemos usar uma nomenclatura económica para opor os dois lados: monetaristas ou neoliberais de um lado; neokeynesianos, marxianos e outros, no outro terreno. Com isto, uma parte considerável dos blogues, dos textos de opinião e dos manifestos políticos são de natureza predominantemente económica e da autoria de economistas que, principalmente à esquerda, têm tido assinalável protagonismo político (ninguém pode levar isso a mal), como independentes ou como membros conhecidos de um partido.

Note-se que, como acontecia com o debate político tradicional, pré-crise, a direita é mais homogénea do que a esquerda. Difere em pequenos aspectos tácticos, mas nada que se compare com escolhas tão radicalmente opostas, à esquerda, como o europeismo utópico com manutenção numa eurolândia recuperada e a denúncia do memorando com risco de eventual saída do euro. A supervalorização, natural, do económico levou também à diminuição do debate “das políticas”. Quando há considerável diminuição e desmotivação dos recursos humanos, quando há corte de 10%, a eito, nos consumos intermédios, imagina-se que a dimensão e qualidade da prestação de serviços não se ressinta, nos hospitais, nas escolas, nos transportes, nas infra-estruturas? No entanto, tudo isto que enchia jornais banalizou-se porque, obviamente, mesmo para os sindicatos e outras forças que lutavam por essa qualidade, há hoje prioridades sistémicas muito mais agudas.

Por isto mesmo, ao contrário do que se podia entender erradamente que eu defendia antes, como predomínio da necessidade de uma grande reflexão económica, creio que ela deve ser condicionada à política e, para o cidadão comum, espelhar-se em propostas políticas. Veja-se um exemplo: propor a saída do euro tem a oposição clara de cerca de 60% dos inquiridos. É natural, quando bombardeados com o anúncio por especialistas de todas as desgraças que daí virão, quando todos esses inquiridos não fazem a mínima ideia do problema. Mas terão de ser eles a decidir, directa ou indirectamente, para o que o contributo esclarecedor dos economistas de esquerda é imprescindível mas de forma alguma dominante, nem sequer por via da influência interna nos seus partidos.

Ressalve-se que a discussão económico-política à esquerda é, a meu ver, mais honesta do que à direita. Neste segundo campo, a economia, apresentada quase que dogmaticamente ou como uma cadeia de fatalidades, escamoteia a ideologia política. A austeridade é apresentada como uma política financeira e orçamental para redução da dívida (principalmente pública) e do défice orçamental, tidos como a principal causa da recessão (veja-se o recente caso Reinhart-Rogoff). Não é assim. Muito mais do que uma política económica, é uma ideologia política, que impregna difusamente a formação académica dos economistas modernos, como entre nós na forma(ta)ção na Nova e na Católica. 

O neoliberalismo (e a sua variante alemã, o ordoliberalismo) não é apenas a visão económica da supremacia absoluta dos mecanismos de mercado, tidos como “inteligentes”, a defesa da total liberdade do mercado, com intervenção reguladora mínima do estado. De facto, e como claramente defendido pela escola austríaca, com Hayek como expoente, é uma filosofia política, uma ideologia e um programa, concebidos como contraponto ao “welfare state”, estabelecido em Inglaterra e nos países escandinavos, com influências do keynesianismo. A versão americana do neoliberalismo, levada para o palco político por Reagan (assim como por Thatcher no Reino Unido) é personificada por Milton Friedman e escola de Chicago, os que ajudaram a implantação da política económica de Pinochet.

À defesa da total liberdade dos mercados é inerente a correspondente redução do papel do estado, com apropriação privada de tudo o que é essencial ao estado social (o “welfare state”): educação, saúde, segurança social, rendimento mínimo, protecção ambiental, garantia dos recursos naturais e das fontes de energia, etc. Ninguém mais claramente o afirmou do que o próprio Hayek. A vitória trabalhista depois da II Guerra retomou o relatório Beveridge, propondo um conjunto de leis fundadoras do estado social – educação, serviço nacional de saúde e segurança social. Contra o programa trabalhista, escreveu Hayek, no seu livro principal, “O Caminho da Servidão”, que o programa levaria a civilização ao colapso, à perda da liberdade, à submissão ao Estado e até ao caminho para o nazismo! Repito: não são posições exclusivamente baseadas na economia científica – aliás posta em causa nesta crise – antes incorporam, essencialmente, um grande componente político-ideológico.

Não quero carpir, não quero induzir em desânimo, quero pelo contrário transmitir o entusiasmo, talvez ingénuo, que desde jovem me moveu. Mas com lucidez. Nunca, desde o fim da II Guerra, o capitalismo (sem eufemismos; deixo a “sociedade de mercado” para quem não tem coragem de chamar os nomes aos bois) foi tão ofensivo, tão arrogante e também tão hegemónico, alienando (outra das tais palavras) as pessoas, roubando-lhes a cidadania, estiolando a democracia, nesta pós-democracia. A canga dos sacrifícios, o medo de perder recursos vitais mínimos, a incerteza do futuro, está a fazer temer, 30 anos depois do ficcionado ano de 1984, uma sociedade de zombies, anestesiados, desesperançados, desanimados.

A discussão económica é fundamental, como é fundamental a informação dos cidadãos. Mas não dispensa a mensagem de que a solução, no fim, é sempre política e social. Social também no sentido de que não se esgota na política institucional e partidária. Estão em causa – e com riscos – grandes bandeiras das lutas populares e da esquerda, e as suas conquistas: os direitos dos trabalhadores, desempregados e reformados, a justiça social, a garantia de subsistência e benefício dos direitos sociais e económicos, a luta contra as desigualdades, a garantia do exercício da cidadania, a solidariedade intergeracional, a inclusividade social, o respeito pelos direitos da mulher e das minorias, e até a dignidade nacional.

Isto é a democracia, é o programa mínimo de esquerda. Mas que meios para o concretizar? Como pescadinha de rabo na boca neste “post”, entra aqui novamente a economia, também no quadro de um programa político de esquerda. Voltaremos a isso.

2 comentários:

  1. Uma vez mais, sem descabida lisonja, uma profunda e lúcida análise, mesmo que seja um prefácio do muito que falta dizer das linhas com que o nosso futuro tem de ser costurado.
    Sonhar é preciso! Sim, com os olhos bem abertos, acima da linha do horizonte.

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  2. Nunca pensei gostar de ler um texto teu, mas este está interessante.
    No entanto, tem alguns erros importantes:
    a) Logo a imagem que usaste no início é falsa. Gostava que fosse correta, mas infelizmente o Estado está sempre a tentar elevar a economia, em vez de dormir enquanto as pessoas a carregam, como está ilustrado e deveria ser .
    b) Concordo que a austeridade é uma forma indireta de impor aos países periféricos o neoliberalismo, e não a cura orçamental tão frequentemente anunciada. Simplesmente vejo isso como uma coisa boa. Isto é, se fosse apenas uma cura de curto-prazo, os países depressa voltariam ao keynesianismo e acontecia tudo de novo (como já aconteceu 3 vezes em Portugal). Porque eu não quero uma quarta, gosto da ideia de um plano a longo prazo e de reformas estruturais que impõem um Estado menos interventivo na economia e na vida das pessoas.
    c) O que o Hayek disse é confirmado pela base empírica que ele tinha. Não te podes esquecer que "O caminho para servidão" foi escrito em plena 2ª guerra mundial.
    d) Dizes que o estado social garante os recursos naturais, no entanto, não há sistema que consiga gerir os mesmos de forma tão eficiente como o mercado livre. Já quando a economia é planificada há sempre escassez de recursos.
    e) Não sei como afirmas que o capitalismo enfraquece a democracia, quando na verdade o capitalismo é uma condição necessária à liberdade politica- tida através da democracia.
    f) Tomas como conquista da esquerda uma das maiores conquistas do capitalismo- o respeito pelos direitos das minorias.
    g) E por fim, o que eu vejo como maior ponto de discórdia. Dizes que está em risco a dignidade nacional, eu digo que não interessa a dignidade nacional. A dignidade que é fundamental para qualquer sociedade é a do indivíduo, a sua independência, esta dignidade é a que realmente importa, e ao longo da história a esquerda sempre tomou como conquista destruí-la através do coletivismo. Um país perder a sua soberania pode ser mau, mas ser o indivíduo a perdê-la é que se pode tomar como uma tragédia.

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