Finalmente, tenho tempo para escrever alguma coisa, sempre prometida e adiada, sobre o quadro político numa dimensão muito bem definida: o quadro parlamentar, eleitoral, a breve prazo, com atores que provavelmente serão só os atuais partidos. Começo por isto. Defendi, a seu tempo (?) a criação de um novo partido que desencravasse mesmo que minimamente o impasse do nosso sistema político parlamentar. Por razões que compreendo bem, e até diferentes de grupo para grupo, não me parece viável a tempo de ir às próximas eleições (2015, mas muito provavelmente antes). Não vou discutir isto, porque poderia criar tensões entre pessoas bem intencionadas mas com visões e até interesses pessoais diferentes sobre esta questão.
Ainda hoje recebi mensagens de amigos com textos excelentes sobre a necessidade de propor aos cidadãos novos modelos de sociedade, novas perspetivas de felicidade coletiva, novas regras de cidadania. Claro que alinho, mas, neste momento, e contra muita coisa que tem sido escrita, a prioridade vai para a reflexão e o discurso teórico e prático da economia política, articulada com as soluções práticas e a curto prazo da intervenção política, bem como o grande fundo de movimento social, só indiretamente e em grau menor influenciando a decisão política do calendário quadrienal.
Parece-me importante distinguir três grandes campos, político-ideológicos e com efeitos no eleitorado, com nuances que discutirei a seguir: o troikismo, a recusa, o nim.
Começou por ser o arco da troikismo, 80% do eleitorado: 1. os governos anteriores deixaram-nos cheios de dívidas; 2. não há alternativa; se não conseguirmos ir ao mercado em breve não temos dinheiro; 3. além disto somos honestos e temos de pagar as nossas dívidas; 4. a formiga não tem culpa da cigarra, etc. Falácias! Vejamos, coisa coisa, e muito mais haveria.
1. Até à grande crise de 2008, os nossos indicadores (balança de pagamentos, défice orçamental, dívida pública) eram muito satisfatórios, em alguns casos e anos, sabem?, melhores do que os da Alemanha. Porque é que hoje toda a gente “emprenha pelos ouvidos” e não vai ler as estatísticas, tão fáceis de obter na net? Não gastamos mais do que podíamos, gastamos o que o sistema do euro nos impôs.
O que se passou a seguir – e ninguém que me tenha lido suspeitará de que eu tenha simpatia pelo execrável Sócrates – é que o seu governo, seguindo uma linha geral, neo-keynesiana e fortemente inspirada por Obama, decidiu investir dinheiro público na economia, principalmente por intermédio do apoio à banca e às novas tecnologias. Foi o seu erro fatal, porque foi a banca que acabou por lhe dar o beijo de Judas. Lembram-se de quem fez a grande pressão sobre Teixeira dos Santos para a vinda da troika? Pudera, em 78 mM €, 12 eram para recapitalizar a banca!
A Alemanha, a princípio, também alinhou na política do fomento público da economia, embora não se sentisse muito pressionada, dado o enorme excedente de balança comercial de que gozava. Por isto, e porque esta política keynesiana repugnava aos seus dirigentes políticos e financeiros, fanaticamente neoliberais como fanático só pode ser um alemão, e porque entretanto a pressão dos mercados, dos ratings, dos juros, começou a pôr gravemente em risco os ativos dos bancos alemães em dívida dos países meridionais, rapidamente se virou para o modelo oposto, o do austeritarismo que estamos a viver.
2. “Não há alternativa”. Isto é o máximo da manipulação política e ideológica, impede qualquer discussão. Foi, parece-me que indiscutivelmente, a razão do quase unanimismo da votação de 2011, independentemente do resultado, coisa de menor, de cada partido do “arco”. Seria longo discutir aqui como isto já está posto em dúvida pelo homem comum. Na TV, no jornal, na net, cada vez mais ouve e lê coisas alternativas, contraditórias, que talvez não perceba mas que lhe mostram que aquele coro unânime desafinou. Afinal, Manuela Ferreira Leite e Paredes não são do PSD? E Bagão Félix não é do CDS? E o inefável perito João Duque já não começa a dar uma no cravo e outra na ferradura?
3. “Somos honestos e temos de pagar as nossas dívidas”. Sabem, vocês gente ainda com fundas raízes camponesas, que esta mentalidade indiscutivelmente honesta mas primária, foi a base da “economia moral” de Salazar? “O país governa-se como uma família”. Estupidez! Ou melhor, coisa inteligente do beirão rural que tinha uma grande intuição sobre a natureza do Zé Povinho. A economia familiar é fechada, o investimento é mínimo, não há circulação financeira de mercado, não há relações internacionais, etc. E a economia do Estado obedece a deveres essenciais, os do desenvolvimento e bem estar do seu povo. Porque não se ver isto numa família? Os pais têm o seu “povo”, os filhos; há dívidas a pagar que passem à frente do mínimo de pão para os filhos? Há pai que vendo filho à fome não diga "não pago"?
4. “A formiga alemã não tem culpa da cigarra portuguesa”. Só um bom economista, não eu, é que consegue o poder de síntese para, num parágrafo, desmentir esta falácia. Primeiro, na década de 90, a Alemanha, ainda por cima sobrecarregada com a reunificação (que os outros europeus também pagaram!), só foi formiga porque os seus trabalhadores, com sindicatos que até tinham mentalidade empresarial, com grandes empresas deles dependentes, aceitaram uma enorme degradação do seu poder de compra, da sua segurança social, sem comparação com sacrifícios dos patrões, para uma competitividade de “desvalorização interna” que permitiu um grande excedente de balança de pagamentos.
Esta liquidez bancária serviu para uma campanha agressiva de crédito barato nos países da periferia europeia. Os bancos alemães (e franceses, bem como os holandeses na Islândia, por exemplo) ganharam fortunas. Em geral, foram movimentos especulativos, relativos a finanças e a bens não transacionáveis, que não acrescentaram valor às economias periféricas. Antes as tornaram mais frágeis quando, vendo-se a crise, os capitais voltaram aos bancos alemães. Se fomos cigarras, foi porque a riqueza das formigas exigia que houvesse cigarras. Com tudo isto, os mercados predadores da dívida pública viram a sua oportunidade. Não porque ela fosse grande, não porque o défice orçamental também o fosse, mas só porque tudo isso tinha resultado numa economia fragilizada, em que muito mais grave, como problema, não é o gasto público mas sim a dívida privada.
Afinal, só em prolegómenos, isto já vai longo. Nem passei do primeiro dos tais três campos ideológicos de que falei. Vou fazer uma pausa e continuarei.
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