Escrevi que nada do que é Esquerda me é alheio. Mas, não sendo militante de nenhum partido, até que ponto posso escrever sobre eles, criticá-los, fazer propostas? Claro que tenho total direito de expressão sobre tudo e todos, mas lembro-me da máxima de um grande amigo meu e “bloguista” muito lido: tudo é política e, criticando o que está do meu lado, estou a dar armas aos meus adversários, do outro lado.
Não concordo inteiramente. A esquerda é plural, fez-se muito com base em conceções globais de que derivaram experiências práticas diferentes, muitas vezes lesivas de um mínimo de possibilidade de convergência, muito mais de unidade. Isto levou a caricaturas dos mais nobres ideais de esquerda e à ideia bem infiltrada na opinião pública de que toda a esquerda é um grupo de lunáticos e/ou facínoras em que não se pode confiar. Assim, uma crítica serena, objetiva, não sectária, da esquerda por parte de gente de esquerda parece-me muito importante.
Há limites para essa crítica? Creio que sim, no que depende da ideia que temos do grau de posição dos partidos na dualidade público-privado. São associações de cidadãos livres, que a eles aderem por convicção ou por comunhão de interesses, que têm o direito de não serem condicionados nessa sua esfera de ação privada. Neste sentido, como não tenho de criticar a associação dos jogadores de matraquilhos ou o clube das gravatas de rato Mickey, também só deveria criticar os partidos se lá estivesse ou, claro, penalizá-los com o meu voto.
É óbvio que estou a caricaturar. Os partidos fazem parte do nosso sistema político, figuram na constituição e não é possível debater política sem os criticar. Os seus programas, as suas propostas a cada dia, as suas posições públicas devem ser escrutinadas por todos os cidadãos. Afinal, é a todos os eleitores que eles se dirigem, não só aos seus militantes. Elementar, Sr. La Palisse.
Esta é a sua natureza indiscutivelmente pública. Mas os seus estatutos e organização, os seus procedimentos eleitorais, as suas normas de funcionamento, os seus debates internos, as moções ou propostas em confronto, são matéria do público ou do privado? À primeira vista, muita gente pensará que é matéria privada dos partidos e dos seus membros. Se não sou membro, não vou interferir na casa de outros. E até acho ridículo que, como se tem visto, se levem a decisão do Tribunal Constitucional coisas internas e tricas partidárias.
No entanto, parece-me que tudo isso, no caso especial dos partidos, não é matéria privada, decorre, como coisa semi-pública, da sua natureza como alicerces do sistema democrático representativo. Para mais, muito deste semi-público tem grande importância política, porque a vida interna de um partido exemplifica muito o que seria uma sociedade dominada por esse partido. O comportamento, seriedade, rigor intelectual dos dirigentes; a conceção das regras de convivência, respeito, liberdade, afirmação de diferenças, etc., na vida interna de um partido podem ser transpostos para o modelo de sociedade que o partido defende.
Isto é tanto mais importante quanto hoje o eleitorado é cada vez menos sensível às propostas programáticas – que nem lê – muito menos a quadros ideológicos globais e suas etiquetas. Quem é se rala com Louçã ser trotsquista ou Fazenda ser maoista em versão final albanesa? No entanto, para quem está mais metido dentro da história política e a viveu, cada um deles traduz ainda, transparentemente, os tiques, o estilo, os comportamentos que bebeu em jovem dessa influência de seita iluminada.
O que conta hoje é a imagem mediática, antes das eleições, e a avaliação da governação, depois das eleições. Da mesma forma, para muita gente, infelizmente, até “esquerda” é já uma etiqueta. Já houve tempo em que se julgava, acertadamente, que dizer que já não havia esquerda e direita definia logo quem o dissesse como pessoa de direita.
Hoje não é assim. Para muita gente, as dicotomias são de outro tipo, revelando em muito uma crise do sistema democrático tal como o temos. É sério ou é aldrabão. É coerente ou é oportunista. É verdadeiro ou é mentiroso. É generoso ou é oportunista. Interessa-se pelos desprotegidos ou é lacaio dos ricos. É honesto ou é corrupto. Etc. Infelizmente, há de tudo em todos os partidos. A questão essencial é que há partidos em que um dos termos é dominante, outros em que esse termo negativo é exceção. Para mim, isto ainda coincide bastante com a velha dicotomia esquerda-direita. Não me parece velho romantismo meu. É que a esquerda ainda é fundamentalmente o campo da utopia e a direita o campo dos interesses. Ou se calhar, talvez para ser mais honesto, da esquerda são os meus amigos e da direita são os outros...
Vinha tudo isto como prólogo a uma nota sobre o que me parece estar a ser alguma evolução positiva (a meu ver) do Bloco de Esquerda: a convenção e as duas moções em confronto, uma muito instrutiva entrevista de João Semedo. Como isto já vai longo, continua na próxima entrada.
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