segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A licenciatura do Sr. Relvas

Como parte interessada, não tenho escrito sobre o caso da licenciatura do Sr. Relvas, apesar de, a despropósito, já ter sido insultado por leitores anónimos. Não tenho escrito porque a universidade sabe defender-se, usando os meios próprios e, admito, por razões egoístas de não gostar de ser acusado de estar a "fazer o frete".

Mas já chega, tenho a minha reputação a defender. Se eu pensasse que a ULHT era sequer uma pequena amostra de tudo o que dela se tem dito, é claro que já lá não estaria.

Desculpo erros, tento situá-los no contexto, para compreender e evitar repetição. Obviamente, não desculpo fraudes. Aquilo que agora anda dito por toda a parte, que o Sr. Relvas teve equivalência a disciplinas inexistentes, seria uma fraude. Não é, é uma mentira propagada pela comunicação social, lamentavelmente com origem numa afirmação descuidada dos inspetores. Isto foi lançado pelo Expresso, retomado por Marcelo Rebelo de Sousa, por muitos mais e hoje, na sua crónica do Público, por Rui Tavares, eurodeputado. Chega. Se eu não disser alguma coisa, mesmo que já tenha havido desmentidos claros, pode parecer que estou a alinhar numa fraude que, repito, não existiu.

Começo, obviamente, pela minha declaração de interesses. Sou professor, diretor de faculdade e pró-reitor da ULHT. Não acho que tudo corra perfeitamente na universidade, como em nenhuma, e por isto lá estou, com muitos outros, a tentar dar o meu contributo para aperfeiçoamentos. Pertenço a uma equipa reitoral que significou uma grande rotura em relação a uma situação anterior, do tempo do caso Relvas. Evolução normal de uma instituição não esclerosada. O atual reitor, e líder da equipa a que pertenço, teve a humildade digna, num artigo no Expresso, há meses, de reconhecer que houve erros, mas que estávamos firmemente determinados a que nunca se repetissem.

Não houve ilegalidades. O decreto dos graus, DL 74/2006, é vago quanto à atribuição de créditos em função da experiência profissional, aquilo que se chama a “creditação de aprendizagem prévia por experiência” (APEL). Indiscutivelmente, há que rever a legislação e incorporar nela as orientações que decorrem de uma prática internacional já bem estabelecida. Ainda há dias isto foi dito pelo Prof. Alberto Amaral, presidente da A3ES e eu concordo plenamente.

Houve irregularidades formais, sem dúvida, mas creio que sem dolo. Era um período de grande confusão de competências e de funcionamento na ULHT, período que eu já só conheci de raspão, porque entretanto muito se corrigiu. Não tudo, mas Roma e Pavia não se fazem num dia. O então reitor era uma personagem incontornável, um histórico da casa, com reconhecido mérito e com um grande peso na ULHT desde a sua fundação. Nestas circunstâncias, e com voluntarismo por entusiasmo, talvez com pouca sensatez, é vulgar haver alguma menor atenção aos procedimentos e algum excesso de protagonismo. Não posso dizer que, num passo da minha carreira, não tenha cometido erros desses.

Também não havia regulamento, agora já há. Mas mandava o bom senso que não se tivesse decidido nada antes da aprovação de um regulamento e de um código de boas práticas. Era assunto delicado, envolvendo um político importante (embora, recorde-se, com muito menos projeção política nesse tempo do que agora). Foi falta de sensibilidade política, não sei de quem nem me interessa. Não estou a fazer de juiz. Só sei é que, se estivesse no lugar de quem possa ser responsável, já há muito teria aceitado publicamente essa responsabilidade e assumido as devidas consequências.

Onde houve erros indisfarçáveis foi na valorização substantiva, académica, deste caso, da sua adequação ao processo de Bolonha. São juízos de valor pessoais com que a vida académica se confronta sempre, no quadro da grande liberdade dos professores. A creditação deve ser vista como forma de facilitar razoavelmente o prosseguimento ou o retomar de estudos, não a aquisição de título universitário para “cartão de visita”. Por isto, em termos práticos, nunca deve exceder uma fração menor do número de créditos total do curso. Também não se deve dar equiparação em abstrato a currículos e cargos, mormente cargos políticos; apenas a competências específicas, disciplina a disciplina, não em pacote. Também a competências transversais. Tudo isto é hoje consensual na ULHT. Não o era, reconhece-se, há anos atrás, quando se estava a aprender o processo de Bolonha, talvez com informação e reflexão insuficientes. 

A ULHT não foi caso único. Aliás, desde há anos que venho a escrever que, em geral, por todo o sistema universitário, público ou privado, o processo de Bolonha, em Portugal, é uma caricatura.

Com a justa conta, peso e medida, a ULHT deve aceitar – e já o fez – a sua responsabilidade. Não, obviamente, quando, como agora, o que aparece como acusação é mais um exemplo da incompetência, mesmo défice de raciocínio, de alguma comunicação social entregue hoje, cada vez mais, à mão de obra barata e incompetente de jovens estagiários incultos.

Às vezes, não nesta, até os jornalistas podem ter matéria importante para “caxa”, estragam-na por incompetência. Faz-me lembrar o caso da licenciatura de Sócrates. Escrevi várias vezes ao diretor do Público, a alertá-lo para que se estavam a desviar do obviamente essencial – e que continuo a pensar, com a minha experiência, que foi fraude académica – para irem para coisas como, entre muitas outras de total desconhecimento da universidade, o lançamento de notas ao domingo (quantas vezes o fiz, online; é uma formalidade burocrática, não tem nada a ver com a data do exame). Mas o Sr. Fernandes, em dotes intelectuais, está bom para o arquiteto Saraiva. Triste jornalismo!

Agora, vem a questão das disciplinas que não existiam! Vamos lá a esclarecer.

Mal ou bem – para mim mal – o Sr. Relvas viu-se-lhe atribuídas disciplinas no total de 160 dos 180 créditos do curso. Entre elas, umas tantas optativas, isto é, disciplinas que os alunos escolhem de entre uma geralmente grande lista. Claro que isto é incongruente com o processo de creditação, em que se pode dar equivalência de competências profissionais a disciplinas bem definidas, evidentemente que não a um conjunto indefinido de optativas. Todavia, isto foi o tal processo concetualmente errado, mas não ilegal nem sequer muito irregular, processualmente.

Mal ou bem, foram-lhe creditadas essas disciplinas. Claro que a consequência óbvia é que não tinha de as fazer. Por isto, independentemente de elas terem aberto ou não naquele ano (as optativas só abrem, em cada ano letivo, com um número mínimo de alunos), ele tinha direito (formal) a essa equivalência, em relação a disciplinas que já constavam do plano de estudos, independentemente de abrirem ou não num dado ano letivo. Não eram, como se tem dito, e ainda hoje Rui Tavares, disciplinas inexistentes! 

Insista-se: inegavelmente, o Sr. Relvas não podia fazer essas disciplinas porque elas não abriram naquele ano, apesar de já figurarem, como optativas, no plano do curso. Mas porque é que ele teria de as fazer, se lhe tinha sido dada equivalência curricular a essas disciplinas? É difícil de perceber? Como é que Marcelo Rebelo de Sousa, distinto e experiente professor universitário, não percebeu? Ou ele aos domingos à noite esquece o traje académico? E Rui Tavares, creio que também universitário antes de eurodeputado?

A ULHT cresceu desmesuradamente, paga agora por isso. Teve uma doença infantil. A sua estrutura de direção académica, designadamente a reitoria, era artesanal e impreparada para a grande expansão da ULHT. Depois, a ULHT precisou de novos quadros, de muita reflexão, de elaboração de muitas normas. Isto não se faz de um dia para o outro. Que eu penso que, com muitos outros, estou a contribuir para a sua evolução e que acho que estou a ser inteletualmente e profissionalmente honesto, é coisa de que, por minha honra, não admito que se duvide.

NOTA 1 – O ministro Crato sugere à ULHT que retire a concessão de grau a quem não o merece, nos termos da creditação do exercício. Estando em causa um seu colega de governo, é claramente uma manobra política ou uma provocação à ULHT ou ambas. Não faz mal. O processo vai passar pela reitoria. Logo veremos. Mas não só o caso Relvas. Todos terão de ser analisados com equidade. Mais, tendo em conta ilegalidades ou irregularidades, não decisões do foro estritamente académico, com a sua tradicional discricionaridade. Não se pode anular ao fim de anos uma aprovação medíocre num exame de um professor por princípio muito condescendente, desde que não haja favorecimento ou nepotismo. Seria o fim da autonomia académica. A minha opinião científica e académica só se pode sobrepor à de um meu colega num processo de elaboração de códigos de boas práticas. Qual é a universidade portuguesa que os tem? Se calhar, pelo que me compete, vai ser a ULHT a primeira a tê-los.

NOTA 2 – O meu pai era o Sr. Luís Costa, homem sem mácula, respeitadíssimo. Tinha o desgosto, é natural, de não ter tido meios para tirar o curso que a sua fulgurante inteligência merecia. Sei o que foi o Sr. Luís Costa, mas ninguém sabe o que teria sido o Dr. Luís Costa. Talvez não melhor do que o Sr. Luís Costa, até porque o curso que ele tanto desejava acho que não estava muito no seu feitio. E não o ter sido em nada o diminuiu na vida, muito menos na muito bem conseguida carreira profissional que fez como autodidata.

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