quinta-feira, 29 de março de 2012

Cerimonial académico

Para descontrair da tensão política, hoje vou falar de coisa estranha, cerimonial universitário. Poucos saberão que um dos meus encargos na Universidade Lusófona é o de chefe do protocolo. Gosto, porque foi um desafio fazer de raiz o código de traje e cerimonial, equilibrando o respeito pela tradição e a lógica das origens com algum sentido da modernidade. 

E gosto porque confesso que sou entusiasta pela encenação, fanático da ópera, amante de alguma pompa e circunstância, tudo talvez recordações do maravilhamento pela grande liturgia dos meus tempos infantis ainda tridentinos. Lembram-se do que era o "momentum" do Gloria pascal, em que a negritude da paixão se desfazia em campainhas, sinos, cantos, para o abrir dos cortinados negros, a revelar todo o esplendor de luzes, brancos e dourados, velas e flores já preparadas por detrás? 

Ainda por cima, o meu avô era um excelente tenor gregoriano e nessa escola escrevia em latim e compunha salmos, hinos e coisas do género. Eu devo ser o mais religioso dos incréus! E homem moderno, esquerdalho, mas que ainda consegue ler razoavelmente em latim. Que foi encontrar no selo da sua casa académica atual o seu velho lema, também só no latim de Terêncio, "Homo sum, humani nihil a me alienum puto" (Sou homem, nada do que é humano me é estranho). Não liguem, sou assim parvo, que hei de fazer?
O cerimonial da Lusófona é, segundo creio, o único cerimonial académico português codificado e que vai chamar as raízes coimbrãs. Quando escrevo único, evidentemente que não esqueço o cerimonial de Coimbra, mas consuetudinário e não regulamentado formalmente. Ao contrário de muitos países, até os EUA, a tradição escolar portuguesa tem sofrido tratos de polé, entendida como símbolo de conservadorismo que novos cerimoniais têm de renegar, mesmo que algumas cerimónias universitárias atuais pareçam entrega de óscares de Hollywood. 
Em Espanha, todas as universidades usam o mesmo traje académico, com fundas raízes históricas embora só consagrado em meados do séc. XIX. No Reino Unido e nos EUA, as novas universidades criam trajes distintos, mas com respeito por uma tradição comum, até codificada por entidades interuniversitárias. Diferentemente, o traje coimbrão de séculos de evolução foi completamente renegado por Lisboa e Porto, que, querendo apresentar-se como modernas e laicas, adotaram, ainda na época das escolas suas precursoras, o traje de tipo judicial que se conhece. Depois, com as novas universidades dos anos 70 e com as privadas, foi o delírio. Trajes de opereta, fantasias de domínio deste mercado por artistas ou alfaiates respeitáveis mas desconhecedores da tradição e da lógica do traje académico.
Veja-se este vídeo do cortejo académico que, da biblioteca joanina à sala dos capelos, passando pelo belo pórtico manuelino da capela henriquina, ao som da charamela com fundo do redobrar do “cabrão”, precedeu o doutoramento honoris causa de Lula da Silva pela U. Coimbra. Deixo algumas notas, para quem tiver curiosidade e nunca tenha assistido a uma cerimónia académica (há muito mais a ver, a cerimónia propriamente dita, mas fica para outra vez).
O traje académico coimbrão é duplo. Nas cerimónias simples usa-se o chamado hábito talar: capa e batina como estamos habituados a ver nos estudantes, mas com a batina fechada no pescoço, à eclesiástico, e com a capa caída. É o traje que se usa em provas de doutoramento e de agregação e, por isto, muitos doutores só têm este traje. Em cerimónias solenes, usam-se sobre o hábito talar as insígnias doutorais, as bem conhecidas borla e capelo. Assim completo, considero-o dos mais elegantes trajes académicos que conheço.
A minha universidade seguiu este uso tradicional (ver foto inicial), que nenhuma outra universidade segue, fora nós e Coimbra: um traje preto simples (toga), para atos simples, e sobre ele, em ocasiões solenes, um capelo com cores variadas de doutoramento mais o azul real da universidade, e um “barrete” inspirado na velha tradição dos barretes doutorais-eclesiásticos como a borla coimbrã ou a “birreta” espanhola.
No vídeo, começamos por ver a charamela, conjunto de metais. Tentei isto, mas é difícil porque, com exceção das velhas filarmónicas, perdeu-se o hábito de tocar andando. Na Lusófona, há um uso único em Portugal, mas com antigas raízes históricas, em cortejos reais ou festivos: dois gaiteiros, a tocarem uma marcha solene. A seguir (tempo 00:32), os archeiros. Isto só em Coimbra. Como é que convenço os seguranças da minha universidade a vestirem-se assim?

A seguir (01:17), vemos desfilarem os doutores pela ordem tradicional, começando pelas faculdades mais novas (Educação Física, castanho e marfim; Psicologia, cor de laranja; Economia, vermelho e branco). Também alguns doutores por universidades estrangeiras, com os respetivos trajes (01:40). Ao tempo 01:48, note-se que começam a aparecer professores só com hábito talar, sem insígnias. Isto era impossível antes, em Coimbra, e também só é permitido na minha universidade o traje solene, a menos que se use também uma medalha da universidade pendente de cordão dourado no caso especial de trajes judiciários ou eclesiásticos.
A 01:58, Farmácia, de roxo. Aos 02:10, mais um grande grupo contra a tradição, com hábito talar sem insígnias. A partir de 02:31, Ciências, de azul claro (com a exceção da matemática, azul claro e branco, como determinado por Pombal ao criar a Faculdade de Matemática). A seguir, por antiguidade, Medicina, de amarelo forte (03:13), depois Direito, de vermelho (03:32) e finalmente Letras, de azul ferrete (04:03), incluindo um professor espanhol, na primeira fila (com cores trocadas relativamente a nós: em Espanha, Letras é azul claro e Ciências azul forte).
No fim, os atores principais, o reitor, o doutorando e o seu padrinho (05:01). Repare-se que o reitor não usa capelo, só a borla. Há versões diferentes de explicação deste velho uso. Eu prefiro pensar que, seja qual for a explicação correta, isso simboliza que o reitor é de toda a universidade, não vinculado à sua própria faculdade.

Repare-se que os dois chefes de estado, português e brasileiro, desfilam no fim, já depois do cortejo. Lá dentro, vão-se sentar na primeira fila, porque para presidência só há uma cadeira. Na universidade, manda o reitor. E lugares destacados, no cadeiral, só para os doutores.
Antes, aos 04:50, vestidos de preto com um meio mantéu, um derivado da antiga capa de grande oficial à portuguesa, veem-se os bedéis, transportando as maças, símbolo do poder autónomo da universidade e das suas escolas. No caso da minha universidade, bastante recente, pensou-se que não se justificaria isto. Em sua substituição, mas com o mesmo significado, desfila no início do cortejo a bandeira da universidade, que depois é solenemente colocada no palco.
Faz sentido tudo isto, nos tempos de hoje? Creio que sim. Como na magistratura, na Igreja ou nas forças armadas, o ritual é identitário, reforça o espírito de corpo (no que ele tem de positivo) e, em termos modernos, faz marketing. “Gaudeamus igitur”.

NOTA - Leiam o verso de Terêncio que cito acima, e que é o lema da minha universidade. Sabem quem é que também o tinha como lema pessoal? Karl Marx!

(Editado em 2.4.2012, tendo em conta valiosas sugestões do Dr. António M. Nunes)

1 comentário:

  1. Gostei muito do seu texto
    O meu pai era catedrático e em pequena fui ver o doutoramento honoris causa do Presidente do Brasil Café Filho. Nunca mais me esqueci. Achei lindo, mas muito demorada.Acho lindo o capelo e borla. Só não gosta quem o não viu de perto. Um trabalho notável.
    O do meu pai era azul - Letras e emprestou-o algumas vezes até a senhoras doutoras.

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