O meu avô era mestre latinista e grande amigo de outro conhecedor, o injustamente esquecido poeta micaelense Armando Cortes-Rodrigues, de quem me lembro como se também avô meu fosse. O seu filho Jorge (como o de Camilo) era uma criança grande e dizia-me sempre, na sua típica repetição de palavras. “tê avô, tê avô, ganda ponto, ganda ponto, vino bono, bono vino, vino bono, bono vino”.
Isto era coisa de divertimento dos dois grandes amigos, com muito gosto pela vida e muito humor no meio da sua grande seriedade, até religiosidade. Era nas provas da colheita anual do vinho do meu “avô” de Vila Franca. Os latinistas sabem que as muitas combinações dos casos declinados de vinum e de bonum resultam em significados muito diferentes, de que o Jorge não se apercebia.
Vem esta divagação a propósito de coisa bem mais simples, em português, a troca das palavras. Desde criança que sei o que é um “bom homem”. Conheci muitos, felizmente. Honestamente, creio que não me conto entre eles, com o grau considerável de aspereza, alguma sobranceria, irritabilidade e intolerância que tenho no meu feitio.
Ontem, a pensar num grande amigo, usei outra expressão: um “homem bom”. É outra coisa. Gostaria de me contar entre eles. Encontramo-los em todos os campos da vida, mas creio que é muito importante ter-se a dita - e o proveito - de os encontrar na política. Não quero ser maniqueista e pensar que homens bons só há num lado político. À direita, há certamente muita gente que se horroriza com ter de conviver com Miguel Relvas, e muita “esquerda” de um setor tradicional certamente também não pensa de Sócrates que ele é um homem bom.
No entanto, parece-me inegável que, em termos proporcionais, há ainda maior quantidade de homens bons na esquerda mais consequente, mais firme, mais coerente. Não é que a esquerda favoreça a educação de homens bons (mas também isto não é totalmente falso). É o contrário. Homens bons como eu conheci tantos nessa esquerda vivida e herdada da luta contra o salazarismo - muitos a serem levados já desta vida - estavam nessa luta porque, já antes, eram homens bons. Aqui fica a minha sincera e humilde homenagem a esses amigos. Perdoem-me destacar, pela importância que teve como compensação tardia de muitas frustrações políticas, os companheiros do MDP da época da sua alforria em relação ao controleirismo do PCP, na segunda metade da década de 80.
NOTA - Estranham que eu não defina o que é um "homem bom"? É que é daqueles casos de quase brincadeira de lógica: se o meu leitor sabe o que é um homem bom, dispensa que eu lhe explique. Se não sabe, não há nenhuma explicação possível que, no espaço de um ou dois parágrafos, retrate a complexidade de caráter, modo de ser, estar e proceder de um homem bom, na sua relação consigo próprio e com os outros.
E é claro que não estou a pensar na velha ideia do “homem bom” proprietário, branco e cristão...
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