quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Um novo partido, precisa-se (II)


A política é multilinear, no sentido em que tem de atender a múltiplas dinâmicas de “processo histórico” interrelacionadas mas com velocidades e calendários próprios. Mais, e porque a dialética ainda vale, há interações entre as várias linhas que lhes modificam o percurso, a fluidez, a velocidade. Não é preciso ir à cosmologia moderna, à teoria das cordas, para perceber isto, mas até é engraçado, intelectualmente.
Velocidade e calendário, é o fator tempo. Nenhum político vinga se não dominar isto. Estamos defrontados, à esquerda, com muitas propostas interessantes. Iniciativas de cidadania, protestos de base, mais ou menos anárquicos, movimentações “tribais”. Nada novas, também as movimentações temáticas, ambientalistas, de direitos da orientação sexual, de defesa de culturas em risco, etc. Também antigas - meu MDP falido dos anos 90 - a nova sociologia de esquerda, a nova urbanidade desumanizada, os anseios individuais de sucesso, a qualidade de vida, a mudança geracional, o envelhecimento da população.
São por ora apenas sinais do que penso ser coisa para uma ou duas gerações, uma nova revolução. Nunca ninguém prevê exatamente o que é uma revolução. Vê-se e compreende-se na altura e assim se a controla. Mais frequentemente, segue-se apenas e ninguém a controla, para o bem e para o mal. Os partos da História são difíceis e dolorosos, respingam de sangue quem os está a ver. Mas deixemos agora isto, porque está numa dimensão temporal que não tem a ver com a nossa situação atual de crise.
Em todo o caso, nesta perspetiva, tudo o que pensarei convosco, a seguir, tem um eixo essencial. A luta política, sob que forma for, tem sempre e obrigatoriamente o objetivo da tomada de poder. Quando falar de ações pontuais, de movimentos grupais, de novos partidos, é sempre nesta perspetiva. Resistir por resistir, protestar apenas, como cultura política, é passo a passo para  a derrota final.
Em situações de crise, avulta a incapacidade dos políticos de lidar com a complexidade dialética do momento histórico a ser obrigatoriamente situado no processo histórico. Veja-se a situação europeia. Desde há muito que não há uma formulação política oficial em que possamos ler uma ideia grande sobre o significado histórico, civilizacional, da União. Tudo é reduzido a mentalidade e linguagem de guarda-livros. 
A mentalidade científica, o rigor intelectual, são coisas desconhecidas para os governantes. A economia é o que lhes é soprado pelos eunucos pequinenses da corte da finança. Os esquemas mentais alarves de moralismo económico e de punição são de mentalidade de aldeão da Pomerânia ou do nordeste transmontano. Por toda esta Europa fora, muito em Portugal, tudo isto é amplificado pela máquina da mistura catalítica da desinformação mediática, da aparente concordância de autoridade da opinião académica, da desvirtuação demagógica do senso comum.
A esquerda está a combater isto? A meu ver, não. A sua pedagogia política, no bom sentido, é quase nula, substituída pela agitprop, que a maior parte das pessoas topa logo e de que desconfia. Para pessoas mais informadas, os erros técnicos e a falta de rigor intelectual são motivo compreensível de antipatia. A arrumação habitual até é compreensível: o PCP é sério e coerente mas é fossilizado. O BE é mais atual e menos troglodita mas é oportunista e videirinho.
Repare-se que nada disto tem a ver diretamente com a estrutura económica, com a luta de classes. Tem a ver, mais diretamente, com a ideologia dominante e como ela é revolucionária - raramente - ou como abafa a dinâmica da luta de classes e o sucesso das lutas populares. O último grande pensador de inspiração marxista, Gramsci, desenvolveu tudo isto na sua discussão da hegemonia. Estamos a viver uma situação gramsciana, com uma crise europeia em que a situação económica, a exploração, a perda de conquistas fundamentais de direitos sociais reais, podiam despertar lutas políticas, mas em que a hegemonia do pensamento europolítico, ordoliberal, intelectualmente provinciano, mesquinho e egoista, trava a consciência da necessidade de revolta. 
O nosso processo revolucionário do 25 de Abril soçobrou, a meu ver, neste domínio. Dominou na superestrutura política, controlou temporariamente as bases da economia, mobilizou elites instruídas das camadas trabalhadoras, mas não conseguiu vencer a hegemonia ideológica da aliança entre o primitivismo cultural provinciano, a herança do obscurantismo salazarista-eclesiástico e o “liberalismo à europeia” difundido pelo duo PS e PSD. Afinal, como dentro das forças armadas, a mentalidade pequeno-burguesa. Todavia, a pequena burguesia, a "classe média", é hoje a classe social dominante. Potencialmente revolucionária, porque tende a ser a mais "esmifrada", mas ainda não tem consciência. Como resolver isto?
Voltemos às várias linhas de dinâmica de esquerda. Se não as destrinçarmos, ficamos confusos. Se olharmos para o horizonte distante, ressalta a inevitável mudança de paradigma da própria democracia. A democracia representativa está a morrer dos seus vícios, mas a democracia direta é tecnicamente muito problemática, podendo gerar vícios de “infocracia”. A democracia participativa é para mim o futuro, mas depende de uma nova configuração dos corpos intermédios, assimilando movimentações sociais novas, ainda não muito claras.
Mas há quem confunda linhas e desvie generosamente para propostas dessa tal linha estratégica as suas capacidades de esforço. É ótimo que coisas ainda em embrião tenham sopro de crescimento dado por pessoas motivadas, relativamente inexperientes politicamente (o que tem as suas vantagens...) e que não sentem apetência para lutas mais convencionais ou mais comprovadas.  Estão na luta, é o que interessa. Menos compreensível é que pessoas com maior experiência política prejudiquem o seu contributo para a ação política, ao nível em que podem ser mais eficazes, por uma espécie de complexo de idade, infantilizando-se em coisas à distância importantes mas hoje apenas confluentes e a cargo de quem para isso tem vocação.
À distância, estes novos movimentos inserir-se-ão nos corpos intermédios, coisa essencial a ter em conta na teoria política. Em termos gerais, corpos intermédios são tudo o que fica entre os cidadãos e as suas áreas próximas (família, amigos, colegas próximos) e o Estado: coletividades, autarquias, sindicatos, grupos de intervenção, irmandades, clubes, etc. Hoje também redes sociais na net, blogues. Voltando à hegemonia, creio que a sua construção e difusão pela comunicação institucional é dificilmente combatível. A esquerda só conseguirá combatê-la se puder atuar eficazmente a nível dos corpos intermédios. Não estou a inventar nada. Tudo isto fez parte da ação anti-salazarista, mas parece que ficou esquecida.
Outra conjugação essencial de linhas de ação é a que é determinada pela nossa atual crise económica e financeira, no quadro da crise do euro. O quadro geral é adverso. Os governos europeus são todos de direita, impera a visão da economia do ordoliberalismo centro-europeu, para já não o caracterizar como típico neoliberalismo à Reagan-Thatcher. Não se sente qualquer solidariedade europeia, para além dos egoismos nacionalistas. As subregiões naturais, como a latino-meridional, dividem-se em atitude de aluno da escola, aquele menino é que se portou mal. A Alemanha europeia de que falava Thomas Mann é o sargento da ordem prussiana da Europa alemã.
Como se articulam as linhas de ação? Vejamos o exemplo grego, que estou convencido que nada, objetivamente, tem de diferente do caso português, com a vantagem de podermos tirar lições com um ano de antecedência. Os partidos gregos não têm o mesmo fervor ideológico de mais papistas que o papa. O povo está a dar luta, em greves e manifestações, muito mais do que em Portugal. No entanto, isto não tem valido muito. Ou talvez sirva para serem empurrados para fora do euro, com uma experiência que adivinho ser muito instrutiva para nós. Uma grande semelhança, até há pouco, como escrevi, é a do quadro político e partidário. Também o facto de a ação de rua ser fortemente impulsionada e controlada pelas centrais sindicais, lá pelo KKE, cá pela tutela do PCP sobre a CGTP. Mas sem esquecer que a CGTP, como se viu sábado, mobiliza muito mais do que o PCP.
As diferenças são importantes. Não há na Grécia uma ideologia dominante de que "devemos cumprir, não sermos caloteiros". Em Portugal, são 80% dos eleitores. Em Portugal, alguma esquerda, por razões de certidão de nascimento, é utopicamente europeista e relega para uma vã luta europeia de esquerda a solução dos nossos problemas. Na Grécia, o maior expoente desta corrente, Yanis Varoufakis, hoje vedeta dos media internacionais, começa a derivar da sua “proposta modesta” de solução no quadro institucional europeu e já defende o incumprimento da Grécia e de Portugal. 
Estamos a um ano e meio do momento crítico - a ida ao mercado primário da dívida - em que se vai ver se o modelo de “austeridade com crescimento” imposto a Portugal resulta, em absoluto. Quer dizer, se resulta porque Portugal foi cumpridor, atento, venerador e obrigado. Mostrando que não resultou na Grécia, como toda a gente já viu, mas segundo os ortodoxos ordoliberais apenas porque a Grécia foi incumpridora e não teve a sorte de ter um ministro formatado como Gaspar. Ou mostrando, como penso, que é o modelo que é vicioso e contranatura e que não resultará nem na Grécia rebelde nem em Portugal submisso.
Entretanto, o relógio da crise acelera. Nessa marcha contra o tempo, uma diferença da Grécia - não sei o que vai dar - foi a subida a segundo lugar nas sondagens de um novo partido anti-troika, destacado da imagem tradicional de mera resistência da esquerda. Mais uma diferença para Portugal. Não podemos colmatá-la? Já escrevi sobre isto.
Voltando às linhas de tempo, como conciliar esta, a da superestrutura política, com a da movimentação social, com a da revolução? Simples. A da revolução, neste momento, dá valores, ideais, objetivos históricos. Dá a ideia central da história de que no princípio está o poder. Dá o que é preciso para a coerência das outras. A movimentação social é essencial para quebrar a rigidez partidária e a sua hegemonia e para, como na Grécia, tirar partido da lógica essencial do sistema partidário, o ponto vulnerável do seu  eleitoralismo. A Nova Democracia diz “nim” à troika porque quer garantir a vitória eleitoral. 


Cá, possivelmente será a atitude do PS, em próximas eleições. Não é brecha importante na muralha da política dominante do austeritarismo e da sujeição ao ordoliberalismo germânico. Mas é ponto fraco e, numa batalha, é sempre decisiva a ponta de lança, a tropa que se consegue infiltrar primeiro nas linhas inimigas. Isto é, no parlamento, na luta partidária. Para isto, um novo partido.

3 comentários:

  1. Tem a minha total concordância, João. Acrescento que acredito que a esquerda "clássica" tentará obstruir e, se mal sucedida, empalmar um novo partido - que em muito terá que ser uma nova concepção de partido - que lhe dispute a hegemonia partilhada.

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  2. De facto a esquerda (com representação partidária) deixou há muito tempo de apresentar um guião próprio para quem pretenda ser pelo menos figurante do filme da história.

    Actualmente os partidos como o PCP e BE reagem como mulas empancadas, fazendo grande ruído sem caminharem para lado nenhum. O PS tem funcionado como pastor liberal e agora nem politica de oposição parlamentar consegue fazer.

    A comunicação social faz o necessário ruído de fundo para que tudo que é essencial fique sepultado pelos pequenos escandalos e apoia-se em convidados que seguem as correntes dominantes.

    O problema da economia esconde outro muito mais importante que é o do modelo de desenvolvimento em vigor que embora impossivel e absurdo dá espaço aos financeiros.

    Um novo partido, quanto a mim, deveria preocupar-se com a construção de um novo paradigma de felicidade, como bandeira e meta a perseguir e poderia conviver com os partidos de esquerda actuais sem passar o tempo a gastar as suas energias a combater os seus desvios. Simplesmente considerar que esses partidos podem estar mais próximo do novo paradigma a construir e por isso, porque influir no poder é de facto essencial e tem de ser o objectivo a atingir, caminhar a seu lado sem perder a identidade - a única forma viavel de ganhar visibilidade.

    Sem visibilidade não há apoio popular e sem apoio popular não se alcança o poder. Por isso defendo que o novo partido nasça para afirmar novos valores, demonstravelmente mais coerentes e sustentáveis que este capitalismo predador e desregulado.

    Se a mensagem passar o resto virá por acrescimo.

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  3. Acredito que um dos passos a transpor para uma nova política é a assunção sem ambiguidades de que o papel dos grupos intermédios só será viabilizável através da afirmação e da institucionalização de regiões, estruturas com definição política por definição mais participativa. O centralismo lisboeta é o território da ficção representativa e de todos os logros que lhe andam associados. A concentração do combate político em Lisboa é a concentração de meios pelos que detêm o poder, designadamente o poder sobre os media. A pulverização de frentes é, necessariamente, uma insuportável ameaça à hegemonia dos grandes partidos da alternância. Pretender criar um novo partido lisboacéfalo será uma grave acefalia.

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