segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

As pessoas têm razão para estar confusas


As pessoas têm razão para estar confusas. A sua opinião, principalmente a partir de certa idade, com quase confinação a casa e à televisão, é o resultado do conúbio cada vez mais indecente entre as esferas política e mediática. 1984. Ainda há dias uma pessoa não muito próxima mas que estimo me disse, como derradeiro argumento, “eu ouvi na televisão”. 
Com raras exceções, consentidas para darem dos media uma ideia demagógica de algum pluralismo, a mensagem que passa é a do neoliberalismo, ou do ordoliberalismo europeu que não está muito longe e até é mais antigo. Para que não se diga que uso chavões e porque talvez eu seja lido por não convencidos da ortodoxia, embora ainda não lhe frontalmente opostos, recordo o que as pessoas hoje ouvem como massacre da sua capacidade de raciocínio crítico.
"A iniciativa privada e os mercados são indiscutivelmente virtuosos, por natureza. A despesa pública é perversa, abafa a economia. O estado social contribui, para além disso da despesa pública, para uma mentalidade de preguiça, desleixo, parasitismo. A intervenção reguladora do estado é perniciosa, perturba o “divino” mecanismo da auto-regulação do mercado. Não se pode impor restrições gravosas às empresas, senão o capital deslocaliza-se. Gastamos (quem é este pessoal plural, “nós”?) mais do que as nossas possibilidades". E muito mais.
Mas não é certo que muita gente que sente na pele os efeitos perversos desta ideologia não consegue desenvencilhar-se das grilhetas que a propaganda, os académicos de serviço, os gurus, lhes apertam cada dia mais?
De acordo com esta hegemonia do pensamento dominante (volto a Gramsci, não há revolução sem a mudança da hegemonia), é lógico que se aceite a grande consequência prática em tempo de crise, a política da austeridade expansiva, aquela a que foi sujeita a Grécia com os resultados que se veem e a que nós fomos sujeitos um ano depois e por isto ainda sem se verem os mesmos resultados.
Não é possível listar aqui as centenas de referências de trabalhos que mostram que austeridade e crescimento económico são incompatíveis. Mesmo que até a simples redução do défice e a diminuição da dívida - pública, porque da mais importante, a privada, nem falar - são impossíveis na espiral descendente de recessão-dívida-recessão. Que mais não seja, é questão de aritmética elementar: desce o denominador (PIB), aumenta a fração (dívida/PIB).
Mas nem é preciso eu mostrar citações, mormente de grandes economistas americanos, mesmo prémios Nobel, em quem adivinhamos uma ideia simples quando escrevem: “estes governantes e economistas europeus estão endoidecidos pelo seu fanatismo ideológico”.
Todavia, talvez não seja bem assim. Todos os dias, cada vez mais, lemos e ouvimos entre nós economistas, comentadores, jornalistas, a reconhecerem que a política troikiana da austeridade é suicida. Até vão hoje mais longe do que os políticos da corte berlinense, que já admitem a preocupação com o crescimento mas ainda defendem o milagre da sua compatibilidade com a política austeritária e recessiva.
Não hão de estar confusas as pessoas que passaram este último ano e meio a ouvir a inevitabilidade e a panaceia curativa da política da troika, e que agora ouvem que talvez não? Que ainda há duas semanas ouviram Passos Coelho e Gaspar, depois da cena triste dos “apanhados”, garantirem que nunca renegociação de prazos e juros, muito menos um segundo empréstimo, e hoje leem que Passos acha que afinal ninguém pode ter a certeza?
Um bom sinal desta confusão é o resultado de uma sondagem de há dias publicada pela Lusa. À pergunta se “o programa de austeridade permitirá a saida da crise”, não responderam que sim os 80% de eleitores na troika interna, há um ano. Responderam sim 47,4%, 34,7% negativamente. Mas há respostas pouco coerentes. Por exemplo, 66,8% apoiam o novo tratado, o que parece revelar a aceitação de uma lógica punitiva e de controlo dos incumpridores, afinal nós também. No entanto, é pequena (10%) a diferença entre os que aceitam e rejeitam a inscrição da “regra de ouro” na constituição, afinal, um aspeto essencial do novo tratado. Por outro lado, apoiando, a maioria (53,3%) quer ver isso referendado.
E, para esta atitude de confusão, como pesará o sentimento atual de todos os que deram a vitória ao governo atual? Pode sempre haver desculpas, como alguém me disse há uns tempos: “não votei no Passos Coelho, votei foi contra o Sócrates, que foi o único culpado desta crise”. Não sou nada simpático para Sócrates e não o quero desculpabilizar, mas fico a pensar como pode ter sido tão inepto um político que conseguiu que tantos milhares de pessoas fossem votar numa política ainda muito pior do que a dele. Por inepto não quero isentá-lo de outras coisas, videirinho, pouco sério, mesmo aldrabão. Mas, afinal, em política, isto acaba por ser inépcia. Como dizia Talleyrand, em política, pior do que um crime é um erro.
Como se vai sair desta confusão? Pode-se oferecer a tantos desses eleitores honestos mas perturbados uma alternativa política? Ou deixamos crescer o risco inevitável destas situações de ambiguidade, confusão, raiva irracional, que é o populismo, a descambar para soluções antidemocráticas?

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