quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Sobre o populismo - os descamisados na net


Há dias, publicou-se um estudo que revelava que só 56% dos portugueses confiam ou valorizam como essencial a democracia. Felizmente, ao que penso, isto não significa que os restantes anseiem por uma ditadura. Nem esta, muito menos por manu militari, me parece ameaça próxima. Já não digo o mesmo de velha doença degenerativa da democracia, tão vulgar quando ela perde alma e caráter, que é a demagogia, nos tempos modernos bem exemplificada pelo populismo.
Começo por um exemplo de comentário de hoje a uma notícia de jornal, que até só era indireta, sobre o risco de incumprimento da nossa dívida. Vai como publicada, toda em maiúsculas (não tenho pachorra para passar para grafia decente), a forma netiana de berrar, com aquela “sabedoria” provinciana de que quem acaba por ter razão é quem berra mais (ou, também na net, a disfarçar os erros de gramática, muitas cores, muito “bold”, muitos tipos de letra em grande tamanho).
ACABEM, FECHEM TUDO O QUE SERVE AOS DEPUTADOS E POLÍTICOS PARA "SACAR" E NO FINAL AINDA VAI SOBRAR DINHEIRO PARA EMPRESTAR Á "EUROPA" A JUROS SUPERIORES AO QUE NOS EMPRESTAM A NÓS E ACABEM COM OS LADRÕES DE REFORMADOS E DE QUEM TRABALHA, INCLUINDO OS ALDRABÕES DE CRIANÇAS !!! ASSIM : 
NÃO É COM O CAPITALISMO QUE É PRECISO ACABAR...É PRECISO ACABAR COM A GANÂNCIA, PARTIDOS POLÍTICOS E PRINCIPALMENTE COM LADRÕES DE REFORMADOS E DE QUEM TRABALHA...ENTÃO SIM O MUNDO SERÁ PRÓSPERO E A HUMANIDADE VIVERÁ FELIZ !!! ACABAR COM VENCIMENTOS DE MILHARES DE "PENTELHOS" EM TODOS OS SECTORES DE ACTIVIDADE, LIMITAR AS PENSÕES A POR EX. 2000 € / MENSAIS, ACABAR COM AS PENSÕES DE DEPUTADOS QUE NÃO TRABALHAM 40 ANOS, ACABAR COM INDEMINIZAÇÕES A DEPUTADOS PARA VOLTAREM AO ACTIVO NO PRIVADO UMA VEZ QUE QUANDO SÃO DEPUTADOS ESTÃO A TRABALHAR NO...PRIVADO, TRANSFORMANDO A POCILGA DA REPÚBLICA NUM ESCRITÓRIO DE INTERESSES INSTALADOS !!! QUE NINGUÉM GANHE MENSALMENTE MAIS DO QUE O P.R. (NÃO ESTE! ), QUE A JUSTIÇA FUNCIONE, QUE OS EX-PRESIDENTES SE LIMITEM Á SUA PENSÃO E NÃO A CUSTAREM 300.000 EUROS ANUAIS AO POVO, ETC, ETC.
Este texto reproduz, no essencial, as centenas ou milhares que todos os dias se publicam, com a mesma indigência mental e política. Por exemplo, coisas elementares suscitadas por este texto. Se acabasse o “sacanço” dos políticos, que percentagem do PIB se pouparia? O que têm a ver os pedófilos com a dívida? Acabando-se com os partidos, não é preciso acabar com o capitalismo?! Um teto de rendimento de 2000 euros é coisa revolucionária, certamente inspirada na Coreia do Norte? Desde quando um ex-PR custa 300.000 euros por ano? Etc.
As pessoas estão zangadas, e com razão. Se, pelo tipo de educação que temos e da cultura que temos interiorizada, não sentimos muita tendência para o pensamento crítico, muito mais quando, sendo a zanga má conselheira, ficamos irracionais. 
Pior é o alinhamento com isto, alimentador, de uma mistura perversa de jornalistas, professores (principalmente de economia), opinadores e gurus. Ainda há dias um amigo me dizia que eu não tenho razão em denunciar a ação malévola (estou convencido de que é consciente) de Medina Carreira, parece que opinador arguto para muita gente de responsabilidade. Isto levou-me a ver a sua última participação, até porque o tema era a saúde, que julgo dominar minimamente. Percebi que ele agrade a gente evoluída e culta porque lhes excita o tradicionalismo político da crítica verrina entre clubistas, não de futebol.

Não há uma observação fatual que não venha embrulhada no ataque generalizado aos políticos (como se ele nunca tivesse sido). Parece que os "políticos", mesmo não encartados, gostam disso. Os simpatizantes do PS acham que ele está a criticar o PSD, vice-versa. A arraia miúda acha e bem que ele está a malhar em todos, como quem atira barro à parede.
Mas fiquei a perguntar-me como é possível que não se perceba que todas as suas observações “atraentes” contra a corrupção, o estatismo, a irresponsabilidade vão sempre cair em “se queremos saúde e educação, então temos de cortar nos salários e na segurança social, porque não há dinheiro”. Num só programa, esta mensagem foi repetida meia dúzia de vezes. Não se está a assistir hoje a uma espécie de “sado-psicopatologia” sobre o empobrecimento dos outros? Estarei porventura a ser delirante, mas é o que me vem à cabeça quando vejo pessoas a babarem-se de gozo com a austeridade, principalmente quando é para os outros. Há algum neoliberal fanático que ganhe menos do que os tais razoáveis 2000 euros por mês a que se referia o comentarista da notícia?
Já nem falo dos célebres gráficos, porque talvez seja preciso um pouco de domínio da estatística - minha obrigação profissional - para se perceber logo que aquilo não tem qualquer rigor, chegando até ao ponto de usar só valores nominais e não valores reais. O homem ou é senil ou é desonesto. Escolham.
Também me preocupa que este tipo de reação populista que invade a net e as conversas de café ou de mercado seja acarinhada por um outro tipo sofisticado de populismo (sei que vou apanhar por dizer isto), o de políticos que avalizam todo este discurso irracional de zanga quando expresso por novos “movimentos”, espontâneos, populares (?). Quando declaram o nascimento de uma nova democracia numa praça de Lisboa. 
É claro que não me passa pela cabeça que a esquerda, o caminho da revolução, se faça na biblioteca do British Museum. Mas fez-se muito aí! A questão é como enquadrar a zanga, a revolta, num quadro ideológico consequente e racional. E como impedir que os pensadores, os políticos mais experientes e com maior reflexão, resistam a esta terrível tendência atual para a sua infantilização e auto-degradação no populismo, mesmo que muito disfarçado de crítica superior e de nova sociologia.
Nada disto é verdadeiramente esquerda. Nada que seja inteletualmente viciado, mentalmente desonesto, pode validar uma ação política com futuro para além da pequenina vida dos profissionais da política. Vem-me à cabeça a dúvida sobre se Marx, que tanto discutiu o papel nefasto do “lumpen”, não acharia que hoje o “lumpen” tem computador, acesso à internet e possibilidade de malhar como sempre fez no verdadeiro proletariado a soldo da polícia, agora como escrita a soldo do sistema.
NOTA - Referi Marx, mas sobre este tema, sobre a construção das ideias feitas, da manipulação das mentes, de como se fazem as ideologias, de como isso se articula com os determinantes económicos estruturais do processo histórico, é imprescindível lembrar Gramsci e toda a sua discussão da hegemonia.
(Ilustração - Padre Malagrida)

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