segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A maioria tem sempre razão? (V)

Fiquei de acabar hoje esta série, "A maioria tem sempre razão?", mas confesso que com desgosto, com algum enjoo, porque não me apetece pensar que os tais 80% de eleitores que têm razão não têm percebido tudo o que se passou na Europa depois de terem ido lá deitar o voto.
Lembremos o que era a situação nessa altura. Todo o poder europeu, mediocremente simbolizado pela parelha dançante Merkel-Sarkosy (quem é hoje o Metternich que encena este congresso valsante?) definia como dogma a austeridade, os resgates, os planos da troika. "Eurobonds", nem pensar (mas Barroso, à revelia da sargenta prussiana, vai mandando fazer estudos). Compra de dívida pelo BCE, nem pensar (mas Trichet lá vai comprando). Penalização dos bancos privados nos resgates, nem pensar. Reestruturação das dívidas, a tal coisa diabólica de caloteiro, não só nem pensar, era nem imaginar, nem fantasiar. 
"E pur si muove", está tudo isto hoje em cima da mesa, contra o que a troika interna disse aos portugueses na últimas eleições, de braço dado com a troika externa (que finaço que é ser-se governado pelos homens dos olhos azuis…)
Foi isto, esta irredutibilidade estúpida (porque em política, "nunca digas nunca!") que me levou à tal série de escritos, sempre com o tema central de que há alternativa. Nessa altura, a alternativa era já a reestruturação da dívida, no contexto de uma luta forte no campo europeu para revisão da política germano-hegemónica, desejavelmente com a construção de uma frente europeia meridional. Hoje, quando toda a gente diz que a reestruturação da dívida grega está às portas, cairam os tabus, só o ministro "nerd" ainda faz cara de convicto.
É pena que isso a que eu chamei a "frente do não" tenha sido frágil em Portugal, com um PCP mais coerente nas suas propostas mas menos credível como partido, por tudo o que sabemos, e com um BE ambíguo, a meu ver raiando a desonestidade inteletual e política na conversa entre Louçã político e Louçã professor de economia, apresentando como "renegociação" uma coisa mixuruca que os eleitores não puderam compreender.
Esta coisa da reestruturação da dívida, na altura heterodoxa, virou inevitabilidade em relação à Grécia. Nem me dou ao trabalho de consolidar esta afirmação com referências, que seriam aos milhares. Não há dia em que os jornais não falem nisto, não lembrem que a Grécia vai fazer um "corte de cabelo" de 50% no valor da sua dívida, que os bancos vão pagar, a começar pelos bancos alemães e franceses que disseram aos gregos (e aos nossos bancos que depois ecoaram para o Zé) "compra, compra, compra". Tanto é culpado quem se endivida tontamente como quem empresta agiotamente.
Em 21 de julho, pareceu que os zombies dos governos europeus tinham acordado. Afinal, o que se viu? Há dias, o Ecofin, que devia ter pensado em salvar o euro, concluiu por não haver conclusões. Entretanto, os gregos com o nó cada vez mais apertado no pescoço, sem dinheiro para os salários de outubro, veem os cinzentos da troika irem e virem sem desbloquearem a pequena fatia do empréstimo, porque são amanuenses de um manual de instruções para burocratas, porque a sua cabecinha formatada pelos MBA não permite ir mais longe. Mesmo que ainda hoje o gélido comissário finlandês tenha vindo dizer que o FEEF devia ser aumentado para quatro vezes mais!
Mas nós não somos os gregos! Não somos? Vejamos o que era a Grécia antes do pedido de resgate, em 2010, e Portugal na mesma situação, em 2011. PIB, respetivamente Grécia e Portugal: 321,7 mM US$,  247 mM US$. Défice orçamental, em percentagem do PIB: 12,7%,  9,1%. Dívida pública (/PIB): 130,2%, 93,0%. Dívida externa total (/PIB): 174%, 217%. Juros (maturidades a 10 anos) 10,7%, 9,63%. Nós não somos a Grécia? Claro que os números não são idênticos, mas é preciso vê-los "na estrutura". E olhe-se, principalmente, para a dívida externa total. Sinal de que isto é que é crítico é a atitude dos mercados, atirando-se mais à Itália grande devedora do que à Espanha, apesar de esta ser economicamente menos forte.
É verdade que não somos gregos, num aspeto, de calendário. A Grécia teve de pedir resgate e sujeitar-se ao colonialismo da troika um ano antes de nós. Nesse ano, sofreu a maior brutalidade de uma política de austeridade. Ainda há dias se sujeitou a coisa louca, politicamente suicida para o seu governo, para tentar cumprir as regras surrealistas que condicionam uma fatia devida do empréstimo ou um novo plano de resgate: novo plano de austeridade no valor total de 78 mM € (curiosamente, o mesmo valor do nosso empréstimo, e depois de um ano de "ajuda"), 50 mM € de privatizações. 
Isto depois de este ano de resgate troikiano ter custado à Grécia uma média de 30% na redução de salários, subidas de 50-100% dos preços de combustíveis, eletricidade, transportes, falência de 165000 empresas, e, surrealisticamente, 97% de retorno dessa "ajuda" para os países ricos da UE, como juros e amortização da dívida.
E sabendo-se muito bem, toda a gente o diz por todo o mundo político, financeiro, jornalístico, que nada disto vai evitar o inevitável, amanhã ou depois, a reestruturação da dívida grega.
Creio que não é preciso ser-se economista para se perceber a espiral da recessão. Ou só os 20% que não votaram com razão é que são dotados de um pouco de capacidade de raciocínio? A previsão da própria troika é de recessão à volta de 2% em cada um dos próximos dois anos (P. S., 27.6.2011 - O governo acaba de dizer que talvez sejam -2,5%). É outro tanto de diminuição do denominador de todos os índices referidos ao PIB, portanto, simples aritmética, nem sequer economia, é aumento do valor desses índices - défice, dívida - em termos de percentagem do PIB. É falência de empresas e desemprego, com recurso por isto e por outras razões a subsídios estatais, a agravar a despesa. Também menor cobrança de impostos. Menos receita e mais despesa, maior défice em valores absolutos, muito mais, como disse, em percentagem do PIB. Etc. 
Foi o que aconteceu com a Grécia e, ao fim de um ano, vão, forçados, para a reestruturação da dívida. Pagaram pelo inevitável um ano de miséria. Vítor Gaspar também diz, preto no branco, que as nossas maiores dificuldades ainda estão por vir. Nós vamos ter de pagar o mesmo preço Grécia pelo nosso inevitável incumprimento, só por haver aí uns robôs do sistema que ainda matraqueiam a tal maioria de 80% que "é preciso obedecer à troika"? "Que não somos a Grécia" - já ouviram algum argumento a provar isto? Vamos mas é aprender, vamos fazer por nossa iniciativa e sob nosso controlo uma política soberana a aprender a lição dos outros. E aproveitar já o "reboque" da Grécia, que vai forçar a zona euro a concessões para uma reestruturação "ordenada" que não sabemos se podemos conseguir daqui a um ano ou dois, quando chegar a nossa vez.


Não podemos dizer, à fatalista e bem à portuguesa, "agora a Grécia, depois chegará a nossa vez". Não temos de esperar, não devemos esperar.

E não temos força, nós coitados portugueses? Lembro só o que escreveu há dias, no Expresso, o ex-comissário António Vitorino, certamente que não suspeito de simpatias pelas reestruturações das dívidas, coisa revolucionária (e soberana!). "Se a Grécia cai, há um tsunami na Europa"! Bem à plebeia, e só desadequadamente por a a frau usar saia, diria que "os temos pelos t...".
E com isto termino esta série de entradas. Sou pela reestruturação da dívida, desejavelmente no quadro de uma luta europeia que reponha o projeto estragado por estes vergonhosos e medíocres políticos que nos governam, de Lisboa a Berlim, passando por Bruxelas.

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