terça-feira, 20 de setembro de 2011

O prazer perverso dos economistas

A satisfação profissional é um grande prazer de vida. Gostar de se exercer a profissão que se escolheu é ótimo, só sendo pena que não seja coisa mais vulgar. O que complica as coisas é que, para quem observa de fora, pode ser difícil definir o que é que determina esse prazer profissional. Num médico é simples. Curar doentes, prevenir doenças, melhorar a saúde. Num professor, idealmente, formar gente que, depois, vai ser mais sabedora e mais competente do que o professor. Mas isto é linear, não tem muito de idealismo? No curso da vida, com o vir à tona de cada vez mais frustração e cinismo, não será também muito o sucesso, o bem estar, a riqueza?

E também a felicidade profissional tida como cumprimento/satisfação dos objetivos pretendidos não tem muito a ver com aquilo que em muito influencia a determinação desses objetivos, isto é os valores pessoais, as conceções de vida, a ética, afinal a ideologia?

Esta deambulação talvez pernóstica tem a ver com o caso particular dos economistas. Claro que da “massa dominante” dos economistas, com muito respeito por tantas e tão excelentes exceções. Falo dos “economistas de serviço”. Descontando a política, que não quero (“hélas”!) considerar como profissão, não há hoje profissão mais determinada ideologicamente do que a dos economistas e/ou gestores (já foi o Direito, hoje muito menos).

Dê-se o benefício da dúvida de que Gaspares, Álvaros, Duques, Cantigas, acima deles Trichet e Constâncio, mais as eminências pardas de Merkel, os homens da “troika”, e todos os cinzentos economistas robôs de Wall Street até Frankfurt, são honestos, tecnicamente motivados e informados e até felizes no seu trabalho, no cumprimento dos objetivos profissionais para que foram preparados. Mas este é que é o problema: para que foram preparados!

É inegável que hoje a política mudou radicalmente de discurso. Curiosamente, foi este o tema do primeiro “post” deste blogue. O discurso político tradicional é hoje irrelevante sem fundamentação na economia política. Com isto, foi-se ao exagero de bastante apropriação do debate político pelos economistas. O que obriga os não especialistas, como eu, a um grande esforço de estudo, mas sempre com a dúvida do amador inseguro.

No entanto, esta apropriação da política, manifesta na comunicação social, esconde-se na falácia da competência técnica, da informação especializada, do raciocínio “científico”, quando essa apropriação resulta de facto, essencialmente, de um pensamento ideológico, no caso enquadrável no que podemos chamar de “neoliberalismo”.
“O peso do Estado deve ser mínimo. O funcionalismo público é uma cambada de privilegiados, com emprego para a vida, incompetentes, sugador dos nossos impostos. A escola privada é muito melhor do que a pública. Nada deve ficar fora da privatização, água, energia, indústrias de defesa, até prisões, um dia destes a polícia e as forças armadas. A competição é muito maior fator de enriquecimento do que a solidariedade e a motivação social. Deve haver uma grande flexibilidade para coisas tidas tradicionalmente como imorais (por exemplo, a agiotagem, juros de 130%! a um ano, à grega; pecado de usura que nem é do cristianismo, já vem no Velho Testamento); flexibilidade aceitadora porque são coisas que se enquadram no “sistema”. E este “sistema” é indiscutível, principalmente depois do fim do pseudo-comunismo. O estado social contribui para a preguiça, para o parasitismo. A economia deve favorecer os audazes, num novo circo romano. As empresas e principalmente os bancos são intocáveis, porque sem elas e eles vai-se a “economia nacional” e, com ela, a “economia doméstica” de nós todos, que devemos ajoelharmo-nos aos benfeitores do futuro dos nossos filhos, ainda por cima bons exemplos de virtudes, os banqueiros, gente fina.”
Descontando a caricatura, não é isto que os “economistas” apresentam como indiscutível, como se houvesse alguma coisa "indiscutível" para além de axiomas e postulados? E isso tem alguma sustentação racional, é economia “científica” ou é pura e simples ideologia? E, transmitindo-se pela máquina de produzir opinião, não é isto que faz a tal “razão” da maioria dos 80% de votantes na “troika” interna marioneta da “troika” externa? Isto chama-se, pura e simplesmente, ideologia neo-liberal, estado hoje mais avançado do capitalismo. Não é um sistema económico racional, cientificamente estruturado (“porque não?”), é simples ideologia, “porque sim”.

Uma visão porventura um pouco redutora faria dizer que boa parte dos economistas que por aí vemos, a todos os níveis, com exceções gratificantes, mas minoritárias e com influência reduzida (por agora!), são os homens de mão do capital, ou mesmo, pessoalizando, dos grandes capitalistas. Não é bem assim, é mais complicado. São produtos de uma formatação ideológica que não conseguem criticar, são criaturas de um sistema que não se aguenta só a nível infra e estrutural (seria visão esquemática do marxismo), mas hoje, cada vez mais, também a nível superestrutural, do pensamento, dos valores incutidos, da ideologia. Isto é a hegemonia.

Só assim compreendo que os economistas “chapa-um” possam ser felizes, com a felicidade que se lhes vê na cara quando defendem coisas que a qualquer pessoa bem formada fazem pensar “estes homens são sádicos”. Como é que se pode sentir profissionalmente útil e feliz alguém que está a propor e a levar à prática a miséria de muita gente, o desemprego, a redução da proteção social, o corte de salários da função pública, a diminuição do rendimento dos mais vulneráveis - os reformados? Pode-se dizer que o fazem por obrigação, até para evitar males maiores. Mas a impressão que deixam, por todas as formas de expressão, até facial, é que também o fazem com algum prazer. Talvez isto seja exagero, mas ao menos parece inegável que, não sendo porventura prazer, é pelo menos insensibilidade  e frieza desumana e tecnocrática.

Admito que esta nota seja um bom exemplo de “economia moral”, pelo lado esquerdo, talvez tão criticável como a “economia moral” hoje dominante, do tipo “não podemos ser caloteiros”. Admito, mas não me arrependo de a escrever. Há uma dimensão ética na política sem a qual ela fica exercício cínico e desgostante.

Finalmente, uma nota de professor. Se esta atitude da “classe económica” tem muito a ver com o “para que foram preparados”, escrito acima, então há que olhar bem a sério para as escolas de economia. Já houve tempos em que foram ambiente fértil de debate, de confronto de escolas de pensamento económico - e, inevitavelmente, político. O confronto era estimulante para os estudantes, favorecia-lhes o gosto pela reflexão e pela análise.

Hoje, parecem cada vez mais padronizadas e são sem dúvida um aval do pensamento único ou hegemónico que está a fazer uma opinião pública (com reflexos eleitorais) também padronizada. Como universitário que contata bastante com jovens, noto muito mais variedade de opiniões, de mundivivências, entre universitários de outras áreas do que entre os mais “formatados” estudantes de economia e gestão. Pode-se recear que se esteja perante um mecanismo formatador auto-alimentado e permanente: os professores de hoje preparam os estudantes que serão os professores seus sucessores.

NOTA - Um pouco a despropósito, ou talvez não. Vejam-se os “sites” das mais celebradas escolas de economia portuguesa e as suas designações oficiais, embora não estatutárias. Já foram Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa e Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais da Universidade Católica Portuguesa. Hoje são NOVA School of Business and Economics e Catolica-Lisbon School of Business & Economics. Repare-se que não são traduções para uso em documentos redigidos em inglês; são as designações agora oficiais, em documentos em português! Não é ridículo, pretensioso, novo-rico? Não consigo encontrar coisa equivalente em universidades espanholas, francesas, alemãs. “Esta é a ditosa pátria minha amada”, mas é pena que lhe falte coluna vertebral.

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