domingo, 20 de abril de 2014

Uma no cravo, outra na ferradura...

Quem costuma ler-me far-me-á justiça de reconhecer que não sou hostil ao PCP, muito menos ser aquilo a que é vulgar chamar-se anticomunista primário. Creio ser visível, por exemplo, que, no contexto da crise e da política europeia, a posição do PCP é aquela de que mais me aproximo, como se vê por tudo o que aqui tenho escrito. Também não tenho dúvidas em reconhecer a consequência e tenacidade dos comunistas, a sua entrega à luta, a sua honestidade na vida pública. No entanto, não é fácil manifestar simpatia numa situação de escuteiro que quer à força ajudar a atravessar a rua a velhinha que não o quer fazer. Há ruas que o PCP parece não querer atravessar.

Preliminarmente, deixo claro que, sem prejuízo do que disse atrás, tenho grandes divergências de fundo com o PCP. Se não as tivesse e desde há muito, não teria deixado o PCP, por volta de 1980, individual e discretamente, muito antes das dissidências colectivas posteriores. Foram divergências sobre posições do PCP, nomeadamente em relação à primavera de Praga (que o 25 de Abril tinha deixado em latência), sobre comportamentos depois do 25 de Abril, de sectarismo, triunfalismo e voluntarismo e, na base disto, a concepção leninista de partido, a mentalidade de funcionário, um certo burocratismo e a submissão muitas vezes acrítica a pensamentos esquemáticos. Também a veneração pela URSS, cuja implosão me parece que, para o PCP, em análise superficial, foi principalmente coisa de cúpula, de traição de dirigentes oportunistas, a começar por Gorbatchov. No entanto, isto não prejudicaria, mantendo obviamente as críticas, a convergência consequente de esquerda que advogo (e que não é a convergência milagrosa sem princípios que muito se defende).

Muito mais me repugnaria qualquer sinal de perdurar ainda no PCP alguma simpatia pelo estalinismo. É por isto que não posso deixar de comentar a entrevista dada por Domingos Abrantes (DA), um ex-dirigente histórico, ao jornal i. Sempre que se trata de Estaline e do estalinismo, é uma no cravo e outra na ferradura, ou um “sim, mas…”. Como exemplo mais significativo, fica a opinião de DA de que Estaline “cometeu erros”. Isto é inaceitável. Estaline não cometeu erros, mas sim crimes, como dito pelo próprio PCUS, no seu XX Congresso. Se quer manter esta linguagem tartufiana, o PCP corre o risco de dar razão a toda a propaganda eficaz que o desacredita e que o acantona numa pequena fortaleza defensiva sem papel eleitoral activo e de alternativa de governo.

Hoje ninguém pode ter dúvidas de que Estaline, directamente ou por intermédio de uma clique partidária  medíocre que controlava ferreamente, cometeu crimes de várias dimensões. Eliminou dirigentes revolucionários de alto prestígio, incluindo o próprio Trostsky. Eliminou grupos importantes, como os médicos do processo das batas brancas. Eliminou a elite dos generais do Exército Vermelho, principalmente aqueles que tinham tido experiência de guerra em Espanha, o que foi objectivamente uma traição, desguarnecendo as defesas nacionais pouco tempo antes da guerra. Deportou populações inteiras. Aprisionou milhares de pessoas nos gulags, muita vezes em condições de morte anunciada. Não sei quantos milhares foram ao todo as vítimas do estalinismo, ou quantos milhões. Não sei quantos eram de facto culpados. Creio que ainda ficam os suficientes para se dizer que o estalinismo foi responsável por muitos crimes.

Claro que não se nega muito do que DA diz. Que Estaline teve um papel importante na guerra. Que o caminho da União Soviética, em relação a liberdades e eleições, está relacionado com a sua história particular. Mas DA lembra isto com um intuito indiscutivelmente apologético. Chega a ponto de dizer que as pessoas, em relação ao relatório de Khruschov, se dividiam entre não acreditar ou dizer “se isto é verdade é porque os outros (os que ele mandou liquidar) não eram bons de certeza". Ou não estou a ler bem ou é uma afirmação lamentavelmente espantosa. Eram só aquelas as posições em que as pessoas se dividiam?

Dando uma no cravo e outra na ferradura, DA embrulha-se numa conversa de clichês que já não convence nem o mais dedicado e crédulo simpatizante. Que o problema do estalinismo, no contexto de alguma reabilitação por alguns sectores do PCP, é um problema marginal. De forma críptica, que, em relação à restrição de liberdades no socialismo, temos (PCP) “algum distanciamento em relação a certas práticas”. Que não havia razões para duvidar de Estaline porque até Churchill e Roosevelt o elogiavam (como líder militar, diga-se). Compara crimes do socialismo com os crimes do capitalismo, como se houvesse crimes bons e crimes maus.

Há outra questão sibilina nas declarações de DA. Trata-se da associação que faz, de passagem, entre a desestalinização e a adopção da tese da via pacífica para o socialismo. Não acredito que DA desconheça que não tem nada a ver uma coisa com a outra, a não ser a coincidência temporal. Só me ocorre uma explicação. Sabendo que, para pessoas bem informadas, a via democrática para o socialismo foi o centro da luta de Cunhal contra o desvio de direita, por Júlio Fogaça e o seu secretariado, leva a crer que isto envolve também, de certa forma e invocando Cunhal, alguma desvalorização, simultaneamente, do outro grande resultado do XX Congresso, a desestalinização.

À minha geração de jovens comunistas, nos anos sessenta, não se punha a questão do estalinismo. Como eu, creio que muitos camaradas consideravam coisa arrumada e, nas condições de falta de informação na clandestinidade, resumida à imprensa do partido, não se suspeitava de que ainda pudesse haver simpatias estalinistas. Dir-me-ão que foi ingenuidade. Foi muito mais grave a atitude do PCP em relação à repressão da primavera de Praga, porque os acontecimentos e as informações nos entravam em casa muito mais facilmente e não podia haver álibis de propaganda imperialista ou manobras da CIA. Ou seria Dubcek um traidor, como mais tarde foi considerado Gorbatchov? Por tudo isto, é-me (estou certo de que “é-nos”) intolerável que haja alguma ambiguidade na avaliação do estalinismo, da figura de Estaline, dos seus crimes.

O PCP defronta-se com muita gente que tem preconceitos, com muita gente que foi sempre submetida a uma propaganda larvar anticomunista, mas também aproveitando-se de verdades, porque não há mentiras eficazes que não tenham alguma coisa de verdade. Também há os que viveram ainda jovens com pouca capacidade crítica os anos da brasa, ou os que ouviram dizer, sem muita capacidade para colocar as coisas no contexto. No entanto, ficam ainda os que querem ser isentos e objectivos e que, mesmo críticos e não se sujeitando ao controlo do PCP, desejam ver esse partido com capacidade ofensiva e em expansão de influência eleitoral, como reforço de toda a esquerda consequente. Estes têm o direito de pretender que o PCP se liberte do lastro que, aproveitado pelos seus adversários, tanto prejuízo lhe causa.

Em relação a muitas e muitas coisas, e usando o jargão de cartilha, o PCP deve fazer a sua autocrítica. É um sinal de seriedade, honestidade e responsabilidade. Não basta dizer que se tem paredes de vidro. É preciso que toda a gente veja sem dúvidas que é assim. À mulher de César não basta ser séria.

2 comentários:

  1. Pois mas eu não consigo perceber o PCP.

    Querem sair do Euro, dizem uns, e outros apressam-se a dizer, NÂO SENHOR o que queremos é só discutir....

    Dizem uns que a UE não é reformável, se não é reformável, porque carga de água se candidata o PCP ao Parlamento Europeu, para marcar o ponto....

    Nos ultimos tempos , alguns militantes do PCP defendem com convicção a Cisão da Crimeia, acusam o governo auto-nomeado de Kiev de ser neo-nazi, e endeusam o papel de Poutine, mas ao mesmo tempo ignoram, que o partido neo nazi Hungaro é apoiado financeira e politicamente pelo mesmo Poutine.

    Sem esquecer o apoio ao regime manarco-fascista da Coreia do Norte, como se assistiu recentemente na Assembleia da Republica, á ditadura cubana, ao regime dos fanáticos do Irão, sem esquecer o apoio declarado ao ditador Assad da Siria.

    Em suma seguem a velha máxima, os inimigos dos meus inimigos meus amigos são.

    E ignoram a máxima marxista

    Proletários de todos os países uni-vos


    Mas o que é dificil de entender, é ter-se mantido no PCP até 1980, quando escreve que desde 1968 , depois dos tanques em Praga tenha tido muitas dúvidas...

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  2. Ainda sobre o que escreve, existe um velho de debate sobre uma das peças basilares dos partidos comunistas, o Centralismo Democrático, e a sua completa desvirtuação num pseudo Centralismo Burocratico, já para não falar nessa figura tão cara aos comunistas portugueses o CONTROLEIRO.

    Sobre o que escreve sobre Estaline, se ele cometeu todos esses crimes todos fê-lo sózinho? Ou teve atrás de si a maioria do Partido, e se a teve porquê?

    Lembro-lhe o caso de Salazar, manteve-se no poder, porque tinha a PIDE, mas tambem porque tinha o apoio de sectores importantes da população e do aparelho de Estado, e se não fosse a BENDITA CADEIRA ( que merece uma estátua), quanto tempo mais o teriamos de aguentar....

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