domingo, 6 de abril de 2014

A reestruturação (2) - as propostas

Era para concluir hoje esta série, discutindo perspectivas de acção abertas pela crescente sensibilização para a recusa da inevitabilidade de uma “sujeição honrada” à dívida. Afinal, pensei que talvez fosse útil, em intervalo, fazer uma revisão das principais posições sobre a questão da dívida. Procurarei ser objectivo e isento.

O presidente
Cavaco Silva dá a volta ao problema, para chegar a conclusões opostas. Não pode negar que é matematicamente inevitável ter de respeitar um sistema algébrico simples, envolvendo, de um lado, três variáveis – variação do PIB nominal (sem correcção para a inflação), taxa média de juro e saldo orçamental primário (o saldo sem os juros) – e, do outro, o número de anos necessário para se passar da dívida actual, em percentagem do PIB, a um outro determinado valor mais reduzido.

O Presidente parte desse prazo, de vinte anos imposto pelo pacto orçamental (não é exactamente assim, mas deixemos isso), para concluir que são necessários índices irrealistas: aumento anual de 4% do PIB nominal (era de 2,4% antes da crise!), saldo primário de 3% (nunca houve) e taxa de juro de 3,5%.

Mas a sua conclusão é que isto é possível e desejável, obrigando mas é à continuação por vinte longos anos da austeridade e, lá tinha de vir, a um amplo “consenso nacional” dos partidos sensatos e respeitadores dos acordos troikistas.

(NOTA – veja-se uma simulação que fiz e que resulta no prazo incrível de 147 anos parava se atingir a meta de Maastricht)

O governo
Segue o mesmo caminho, mas de forma muito mais simplista: a dívida já é sustentável e pronto, nada mais a discutir. Falar de reestruturação é tabu e traição à pátria. No entanto, pela calada, renegociaram-na em versão suave (abaixamento de taxas de juro e prolongamento de prazos) e já começam a abrir uma fresta da porta em relação à mutualização. A Sra Merkel diz um taxativo “nein” mas nunca se sabe , em política nunca digas nunca.

A propósito, lembro o que escrevi ontem. A mutualização não é propriamente um “haircut”. Significa é que a responsabilidade pela dívida, emitida por cada país ou pela união, é partilhada por todos, em diversas modalidades. Não se trata de aliviar directamente o esforço da dívida, por redução do seu montante, a não ser que parte desse montante passe para um fundo de amortização, como proposto pelo Grupo de Peritos (ver adiante). Não quer dizer que a mutualização não tenha outras vantagens indirectas. Por exemplo, envolvendo a solidariedade dos países de maior notação na garantia de pagamento, gera-se confiança dos mercados com possível redução das taxas de juro, bem como se facilita a renegociação de juros e maturidades.

O PS
Desde pouco depois da sua assinatura do memorando com a troika, o PS começou a admitir a necessidade de renegociação de taxas de juro e de prazos de amortização, fazendo disto progressivamente a sua posição central em relação à política de austeridade. Ao mesmo tempo, defendia a mutualização da parte da dívida acima dos 60% do PIB segundo os critérios de Maastricht.

Tem defendido também uma política de crescimento e de investimento, bem como de criação de emprego e de defesa do estado social, com propostas concretas. O problema, a meu ver, é que, quantificando esta despesa, nunca apresentou processos de obtenção de recursos para o seu financiamento (a não ser coisas insignificantes), não se sabendo como conseguiria um saldo primário para esse fim, apenas pior negociação de taxas de juro mais baixas, forçosamente muito mais baixas (os juros que pagamos anualmente são de 8 a 10 mil milhões de euros, tanto quanto boa parte das despesas sociais).

Tudo isto porque o PS, em coerência com a sua atitude seguidista em relação à política ordoliberal da sua corrente social-democrata europeia e ao facto de ter aprovado o pacto orçamental, recusa taxativamente qualquer forma de redução do montante da dívida. O PS ficou preso de um truque semântico, ao distinguir em propaganda a sua “renegociação”, só de juros e prazos, mas com pagamento honrado até ao último euro, da “reestruturação" que envolveria sempre um “haircut”. 

O manifesto dos 74, falando de reestruturação, veio baralhar o assunto e por isto, inicialmente, o PS adoptou uma posição cautelosa, de “respeito” pelo manifesto e pelos seus subscritores. Mas desmarcou.-se, afirmando que “nós devemos pagar até ao último cêntimo, e devemos fazê-lo através de uma estratégia credível”. Só depois, baralhando com mutualização a proposta do manifesto e dando ênfase à defesa pelo manifesto de uma solução obrigatoriamente no quadro institucional europeu, é que o PS se sentiu mais à vontade. Coisas…

O PCP
Considero a posição do PCP como a mais estruturada e mantida das posições partidárias. isto sem prejuízo de algumas limitações à clareza, porque seria utópico que um partido não tivesse de ter em conta considerações eleitoralistas e a sensibilidade do eleitorado ou o seu condicionamento pelo rolo compressor da máquina de enchouriçar mentes. A última posição do PCP, repetindo, no essencial, propostas de 2011, consta do projecto de resolução parlamentar apresentado em 4 deste mês.

O PCP defende o uso, em diversas combinações possíveis, dos três mecanismos de reestruturação (curiosamente, fala mais de renegociação): redução das taxas de juro, dos prazos de maturidade e dos montantes. Defende o não pagamento de dívidas ilegítimas ou odiosas e defende a indexação do serviço da dívida ao crescimento económico e às exportações. A determinação da dívida ilegítima competiria a um grupo independente nomeado pelo Conselho Económico e Social.

Como medidas relevantes, de entre outras mais que compõem um programa muito pormenorizado, saliente-se: prioridade da reestruturação da dívida aos credores da troika; isenção da reestruturação dos pequenos aforradores e da Segurança Social; travão ao aproveitamento especulativo por parte da banca; proposta de revisão dos estatutos do BCE e do Pacto de Estabilidade e Crescimento; diversificação das fontes de financiamento do Estado; emissão de dívida pública junto do mercado de retalho; diligências, na medida do possível, para anulação de contratos de PPP, “swaps” e rendas excessivas; política de substituição de importações por produção nacional.

Não abordo aqui outra posição do PCP que complica esta discussão sobre a reestruturação, porque ainda é tabu para todos os outros partidos e alguns grupos políticos. Embora por intermédio de declarações pessoais, PCP afirma a sua disponibilidade para estudar a possibilidade, custos e benefícios da saída do euro, embora não a proponha nesta fase. Não é ninguém menos responsável do que o cabeça de lista às europeias, João Ferreira, que diz “temos de nos preparar para sair do euro”.

O BE
A meu ver, a posição do BE tem oscilado nestes três anos, e sofreu alguma mudança quando Louçã deixou de ser dirigente formal. Interessa principalmente o que o BE defende agora. Na sua VIII Convenção, em 2013, o BE manifestou-se pela rotura com o memorando da troika. Obviamente, passado este tempo e em vésperas do fim do resgate, essa proposta fica datada, mas permanece o essencial – a recusa da dívida tal como ela foi acumulada, recusa assente em quatro pilares fundamentais: 1. anulação da dívida abusiva, redução do montante da dívida a 60% do PIB e renegociação de prazos e juros; 2. reposição dos rendimentos cortados e garantia do estado social; 3. nacionalização da banca intervencionada pelo Estado, com mobilização de recursos para a política de emprego, e nacionalização dos bens comuns privatizados ou concessionados; 4. novo sistema fiscal, beneficiando o trabalho.

O BE defende também a “desobediência” às regras do pacto orçamental e um referendo para desvinculação de Portugal, considerando que, por não ter sido aprovado por unanimidade, o pacto não é um tratado constitutivo da UE.

Parece-me que, com mais ênfase numa ou noutra nuance, as posições do PCP e do BE são compatíveis sem grande esforço, mas muito mais distantes das do PS. Onde há maior distância entre o PCP e o BE, mas com importância secundária em relação à reestruturação, é no domínio do processo europeu. O PCP sempre foi crítico, posição agora acentuada pela disfuncionalidade do euro e pelas posições quase-imperialistas da Alemanha. Pelo contrário, o BE adopta expressamente uma posição de “europeísmo de esquerda”.

O Livre
Tenho dificuldade em perceber qual é a posição do L em relação à reestruturação da dívida. A sua declaração de princípios é omissa. O programa para as europeias, nas suas 67 medidas, só inclui três propostas que, com boa vontade, se podem ter como relacionadas com a reestruturação: 1. pedido ao Tribunal de Justiça da União Europeu de indemnizações por ilegalidade da troika; 2. revisão do mandato do Banco Central Europeu; 3. emissão de eurobonds, mas sem efeito na dívida já existente.

Não conheço qualquer outra proposta do L. Aguardo por um programa de política nacional. Já tarda. Entretanto, fica-se com a impressão que o L é um partido muito mais preocupado com a arena europeia do que com a luta cá no país.

Fico só com uma proposta muito confusa de Rui Tavares, que provavelmente não compromete o L: colocar na mesa europeia (sempre a Europa como local político por excelência) a discussão dos “componentes essenciais para uma Europa de futiuro que saia desta crise” e que seriam um novo Bretton Woods, um FMI próprio e um novo plano Marshall. De que guerra é que os vencedores iam fazer isto? Quando a Alemanha ganhar a actual guerra económica?

O manifesto dos 74
Como todas as posições que temos vindo a ver, o manifesto defende a reestruturação da dívida, com negociação de prazos e juros e, de certa forma, de montantes. A diferença é que, parecendo o PCP e o BE abertos a formas variadas de negociação (ou assim o deduzo da sua omissão neste ponto), o manifesto afirma taxativamente que a renegociação tem de ser “honrada e responsável” e exclusivamente no âmbito de funcionamento da União Económica e Monetária.

Quanto à redução do montante da dívida, acima dos 60%, o manifesto propõe um mecanismo que tem alguma coisa de mutualização e que se baseia no fundo de resgate das dívidas proposto pela Comissão e agora objecto de um relatório pelo grupo de peritos. As amortizações caberiam a esse fundo, financiado por todos os países da zona euro, tendo em conta o “favorecimento do crescimento económico e do emprego num contexto de coesão nacional”. “As condições relativas a taxas de juro, prazos e montantes abrangidos devem ser moduladas conjugadamente, a fim de obter a redução significativa do impacto dos encargos com a dívida no défice da balança de rendimentos do país e a sustentabilidade da dívida pública, bem como a criação de condições decisivas favoráveis à resolução dos constrangimentos impostos pelo endividamento do sector empresarial público e privado e pelo pesado endividamento externo.”

Habilmente, esta proposta, uma espécie de mutualização não só das responsabilidades como também dos pagamentos, acaba por ser um “haircut” sem o dizer. O problema é que a sua viabilidade é duvidosa. Ficará para outra entrada a discussão desse relatório do grupo de peritos. Surgido já depois do manifesto dos 74, receio que as suas contrapartidas práticas sejam muito custosas e que, mesmo assim, venha a ser rejeitado politicamente pela Alemanha e seus satélites.

Outros
Que eu tenha dado por isso, só dois movimentos políticos s pronunciaram sobre a dívida. Logo na sua sessão de constituição, o Congresso Democrático das Alternativas propôs “a denúncia do Memorando e abertura de um processo negocial com a CE, o BCE e o FMI a partir de uma posição determinada, com a reestruturação da dívida colocada no topo da agenda das negociações; a preparação para os cenários adversos que podem resultar de uma atitude negativa da troika, traduzida numa suspensão do financiamento internacional (incluindo a necessidade de declarar uma moratória ao serviço da dívida); e a intervenção ativa no quadro da União Europeia (UE) tendente a consolidar alianças com outros países periféricos em situação semelhante à portuguesa e reforçar as posições favoráveis à criação de mecanismos que travem a especulação financeira e favoreçam o investimento e a criação de emprego como resposta à recessão.”

Também a Iniciativa para a Auditoria Cidadã à Dívida, na carta aos deputados que acompanha a petição por si promovida, recusa uma reestruturação com prioridade atribuída aos credores e defende uma reestruturação que “envolva sempre ou extensão dos prazos, ou redução das taxas de juro, ou redução do capital em dívida, ou uma combinação destes elementos”. Propõe uma redução da dívida de 50%, atingindo também os credores oficiais e isentando os pequenos aforradores e investidores públicos residentes (Segurança Social). Chama também a atenção, realisticamente, para os obstáculos e riscos que decorrem de uma reestruturação.

É disto, do peso relativo com as vantagens, do modo de fazer a reestruturação e da via política para o conseguir que conversaremos amanhã.

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