quarta-feira, 23 de abril de 2014

PCP, pária da Esquerda?

Domingos Abrantes (DA), um dirigente veterano do PCP concedeu a Nuno Ramos de Almeida, do jornal i, uma entrevista em que aborda a figura e significado histórico de Estaline. DA já é idoso e há anos que não exerce cargos dirigentes. Podia deixá-lo tranquilo, não fossem duas razões. Em primeiro lugar, era vulgar entre os seus camaradas dirigentes a sua atitude um pouco ambígua, própria de quem viu desabar, com o XX Congresso do PCUS, uma quase religião em que acreditava piamente e que lhe dava conforto ao heroísmo e sacrifícios dos dirigentes na clandestinidade. Depois, chocou-me a referência por NRA a alguma reabilitação actual de Estaline, em alguns sectores do PCP, coisa que DA desvalorizou mas sem desmentir.

Por isto, escrevi aqui a penúltima entrada, bastante lida. Referindo-me a ela no Facebook, gerei uma discussão interessante. Um dos comentadores, de passagem e creio que não se referindo a mim ou a outros comentadores, fala de “bloguistas amigos do PCP”. O que queria dizer? Militantes do PCP, simpatizantes ou colaboradores habituais, eleitores sistemáticos? Ou, coisa muito diferente, os “amigos críticos”, como eu, que, não se eximindo de apontar erros do PCP ou mesmo discordâncias que os conduziram à rotura, continuam a ver no PCP uma força de esquerda essencial, sem uma atitude de hostilidade essencial ou baseada no preconceito de que o PCP “nunca” se vai transformar?

A minha posição, bem como a de muitos amigos ex-comunistas com quem me dou parece-me coerente. O PCP, para bem da esquerda e das classes populares, deve renovar-se, quase que refundar-se, mantendo a sua coerência e firmeza de princípios mas limpando o que justifica, em boa parte (em justiça, não na totalidade) o seu enquistamento eleitoral. Isto não me é questão estranha, como nada do que é esquerda. Não posso influir nela; mas não posso é ser cúmplice de um anticomunismo politicamente muito mais emotivo do que racional, com base na pretensa impossibilidade da sua renovação. Não me parece verdade. Em primeiro lugar, porque muito dessa renovação é mediática, é trabalho de desfazer mitos. Segundo, nenhuma tara política se transmite hereditariamente de geração em geração, por décadas fora.

Mutatis mutandi, digo o mesmo do BE, de que me afastam muitas divergências e, até mais do que do PCP, alguma leviandade política, por vezes oportunismo. Mas é igualmente um partido de esquerda indispensável àquele núcleo duro de unidade de esquerda, com sindicatos, movimentos, organizações sociais, que já muitas vezes aqui defendi ser a base de partida, coerente e consequente, para uma unidade táctica mais alargada, traduzindo então uma política conjuntural de aliança de classes.

Contribuir para uma dinâmica de renovação do PCP, por parte de quem, como eu, não é seu militante, ganha credibilidade se baseada numa atitude crítica leal e amistosa de quem não está a prestar-se a nenhum frete, antes a lutar por toda a esquerda. A lista de divergências com o PCP é extensa. Algumas ficam por abordar, por razões práticas, embora sejam importantes para a opinião pública e a sua consequente manifestação eleitoral: a natureza política da China, a Coreia do Norte, a quase simpatia pela Rússia oligárquica de Putin, como se fosse herdeira da URSS, etc.

1. Começo por coisa aparentemente menor, a linguagem. Nenhuma missa seria hoje compreensível se dita em latim. O discurso do PCP é muitas vezes cansativo e a resposta é de quem não compreende que a “cassete” pode não ser o conteúdo (não a ter seria volubilidade) mas sim a forma, o uso martelado de um léxico usado para todas as circunstâncias e em tom comicieiro. É certo que todos os partidos o fazem, e até com menor propriedade literária, mas as coisas são como são. Além da linguagem, também o ritual. As grandes encenações partidárias passaram de moda e já não são “show” para quem se quer cativar, os mais jovens. E os mais velhos estão no sofá, defronte do televisor, não estão no Campo Pequeno a agitar bandeiras.

2. Os comunistas, a todos os níveis do exercício de funções políticas, são exemplares. Numa altura em que, justamente, a corrupção é um cancro que corrói a democracia, duvido de que o PCP esteja a conseguir divulgar e enaltecer esse seu retrato. Pior, talvez sem culpas suas, nem me parece fazer passar a ideia de que está sempre e fortemente em cima do problema, a nível legislativo e comunicacional.

3. De há muitos anos que o PCP se deixa confundir – não sei se sempre injustamente – numa imagem ambígua em relação à sua política de unidade. É certo que esteve sempre na criação de movimentos unitários que, antes do 25 de Abril, só falharam no marcelismo, em 1969, por responsabilidade do grupo de Mário Soares. Mas é verdade, e todos os militantes comunistas se devem recordar, que as relações entre o PCP e o PS, principalmente depois do 11 de Março, foram de franca hostilidade, de parte a parte. Quando se quis emendar, com o PCP em refluxo a seguir ao 25 de Novembro, claro que era tarde. Muita gente de então ou os seus filhos ainda têm isto muito em conta quando rejeitam o PCP como parte de uma solução política de governo.

4. Da mesma forma, o sectarismo do PCP, em termos de absolutização do papel do partido, leva-o tradicionalmente a subalternizar a importância das movimentações sociais, quando não são instrumentalizáveis. Chegou mesmo a fazê-lo com partidos de que fez satélites, como o MDP – entretanto auto-libertado – ou como os Verdes, que sei muito bem terem sido mera criação do PCP (aliás, contra o MDP). Neste momento, com mentalidade, valores e até tecnologias que afastam os jovens de uma imagem de conservadorismo de estilo e de linguagem do PCP, este parece não fazer nada para o diálogo com os novos movimentos jovens, que, para além da sua generosidade e entusiasmo, até bastante beneficiariam da experiência (não paternalista!) do PCP

5. Há uma imagem feita, negativa e acrítica, sobre o papel do PCP em muitos acontecimentos do pós-25 de Abril que ou ainda são a sedimentação do que os ainda vivos ouviram naqueles tempos de guerra de propaganda ou é, pior, o que já passa como verdade para a geração seguinte. Proposta de um regime soviético, descolonização às ordens da URSS, desprezo pelos ex-colonos, cumplicidade na “expoliação" de bens, espionagem a favor da URSS e envio dos ficheiros da Pide, etc. Evidentemente, não digo que o PCP devia promover congressos ou comprar canais de televisão para combater tudo isto, mas é mau remeter-se à defensiva, que por vezes – não sei se estou a ser injusto – me parece sobranceira.

Mais em particular, tudo o que refere ao antigo mundo soviético, porque representa, como exemplo real, o que o PCP não escondia ser o seu referencial de projecto político (enquanto que às vezes lhe fazia pequenas críticas, mas só internas, “para não fazer o jogo do inimigo”). Não vou dar testemunho, porque só estive duas semanas na Hungria e duas em Moscovo e Leninegrado. Pareceram-me sociedades sem pobreza visível, também sem ostentação de riqueza, mas pardas e tristes. Mais importante é pensar nas convulsões, Berlim, Budapeste, Praga, Varsóvia. Para mim, militante na época, marcante foi Praga. Alguma coisa está muito mal explicada quando uma revolução pelas liberdades que o PCP dizia defender, por um “socialismo de rosto humano”, acaba sufocada por tanques dos países irmãos, com o apoio do PCP, como se tudo aquilo fosse uma movimentação contra-revolucionária, senão fascista.

Da mesma forma, o PCP remeteu-se a uma defesa de entrincheiramento, “poucos mas bons”, à espera de que o tempo resolvesse os problemas, quando ocorreu o processo mais sério do seu sistema político-ideológico, o colapso do mundo soviético. Não me lembro de mais explicações, no essencial, do que reduzir tudo à traição de uma pequena clique, personificada em Gorbatchov, apoiando o PCP um contra-golpe ridiculamente fracassado. Como é que o PCP não viu que os militantes, já na legalidade e bem informados, ao contrário de 1968, iam discutir livremente e que o tempo das certezas vindas de cima acabara? Como é que o PCP não perguntou como é que Gorbatchov tinha sido eleito com tanto apoio, e precedido de alguns avisos libertadores de Andropov, um homem que, como chefe do KGB, conhecia bem a situação? Como não se apercebeu do grande apoio à perestroika, mesmo entre os seus próprios militantes? E como é que desaba um sistema com um aparelho partidário e securitário tão forte? Pior, como é que se forma quase logo um capitalismo extremo, com uma oligarquia imbricada com a nomenklatura anterior? O PCP não irá longe se tudo isto não ficar claro. Lembre-se, aliás, que é daí, não de nada de antes, que vêm os grandes cismas, do grupo dos seis, do Hotel Roma, da Renovação comunista.

6. O PCP tem receio de que cedências eleitoralistas e de contra-propaganda em relação à sua imagem o possam levar a oportunismos descaracterizadores, à italiana. Muito bem, é um risco demonstrado pela prática! Mas então, mantém-se firme na sua caracterização como partido marxista-leninista, o que, pessoalmente, me levanta problemas. Não é coisa meramente semântica, tem significado real. Por exemplo, desde logo, sou marxista (embora não seja uma religião) mas não sou leninista. Aprecio em Lenine a teoria do estado e a do imperialismo, não suporto o pastelão do Materialismo e Empirocriticismo (para provar que também era filósofo, como Marx?) e considero completamente datada ou pelo menos exclusiva de uma época de luta clandestina a concepção e prática do centralismo democrático, que, a meu ver, é abusivo colar com hífen ao nome de Marx.

Diga-se que, ao contrário do que se julga, as consequências nefastas do centralismo democrático não derivam de qualquer sistema ditatorial interno. São efeitos psicogrupais perversos do espírito partidário levado ao mais alto nível, da ideia de que os sacrifícios serão recompensados pela visão de um paraíso por que, é importante e justo que se diga, se lutou com esforço, fraternidade e desinteresse pessoal. São efeitos, em paralelo, de um corpo determinante de funcionários políticos, muitas vezes fazendo da sede o centro do seu mundo (devo dizer que assisti a alguma evolução positiva). No conjunto, não receio dizê-lo, era uma espécie de colectivização mental, auto-disciplinada.

Simplesmente isto não podia ser imposto a pessoas ou massas sem o entusiasmo dos militantes pela causa. Aquilo que, para isso, para a construção do socialismo, teria legitimidade revolucionária, só seria aceitável na justa medida e no justo tempo. Sempre receei, e muito mais gente, que a sociedade socialista que desejávamos podia vir a ser defraudada por vícios do nosso próprio partido. Ainda há dias me perguntavam se o que eu rejeitava era o funcionamento do PCP ou o modelo de sociedade que defenderiam se tivessem o poder. Respondi que, a meu ver, ambas as coisas são indissociáveis.

Nesta situação, até homens muito inteligentes que conheci perdiam o sentido crítico. Não resisto a contar uma situação anedótica. No fim dos anos 70, o meu trabalho partidário era unitário, em relação a militares. Alguns, mesmo de destaque, cujos nomes nunca divulguei nem o vou fazer, estavam muito críticos, porque, como membros da esquerda militar, tinham sofrido represálias e visto derrotado o seu projecto. Isto causava-me problemas de consciência, porque frequentemente concordava com eles mas tinha de defender as posições do partido. Mas, contando o tal pormenor, muitas vezes recebia um saco com umas publicações militares, creio que da Novosti, com os feitos militares de Brejnev. Claro que iam para o lixo logo à saída da Soeiro.

Cunhal não precisava de exercer domínio férreo nem de promover o culto da personalidade para efectivamente ser um “santo” para quase todos os comunistas. Afinal, nada de diferente do que vai ser canonizado domingo, João Paulo II. De alguma forma, o PCP era no tempo ainda muito marcado por Cunhal e a velha guarda de dirigentes (não sei como é hoje). Mas era o que viviam com naturalidade, como sua maneira de ser, como segunda pele de defesa de um clandestino,

7. “Last but not the least”, outra crítica ao PCP, parcialmente pertinente, diz respeito ao seu programa. Não tenho dúvidas de que é, em toda a esquerda, o programa mais consequente e mais firme, o que coloca a acção numa perspectiva teórica articulada, numa análise correcta de classes e na luta clara pelo socialismo, entendido sem sofismas como o derrube do capitalismo. Também a política europeia. Mas, a meu ver, está preso ao passado, a uma sociedade de há cinquenta anos de antes das profundas mutações sociais que alteraram profundamente os factores demográficos, as aspirações individuais, os padrões familiares, o défice do espírito comunitário, a atitude em relação aos “costumes”, a estrutura do trabalho e o impacto das novas tecnologias, o aumento das desigualdades, o desemprego, as migrações, etc.

Conclusão. Quem rejeita liminarmente o PCP, não considerando as suas muitas virtudes e só vendo os seus muitos defeitos, não é amigo do PCP mas, desculpem-me a franqueza, também não é amigo de quem dele depende, a esquerda consequente, no seu conjunto, logo o campo popular e patriótico. Quem quiser ser isto, deve ter uma atitude amistosa com os partidos consequentes de esquerda, PCP e BE, mas fraternalmente crítica. Espero que eles compreendam que esses é que são os seus verdadeiros amigos, mesmo – ou especialmente – quando são frontalmente críticos e ainda mesmo que não tenham valor propagandístico para enfeitarem as listas dos eternos companheiros independentes.

NOTA FINAL Creio que certamente se percebe que, apesar da veemência de algumas destas minhas críticas ao PCP, sempre na base de que nada impede (chamem-me utopista) a sua correcção, estou longe de me situar, à moda, na equidistância em relação ao PS. Percebem porquê, mas se for necessário explico.

7 comentários:

  1. Discordo de muita coisa que escreveu, principalmente quando refere a coerência do PCP, acha que quem tenta olhar com algum rigor para a historia do PCP durante todos estes anos, vê coerência.... ou oportunismo?

    Basta sem ir mais longe, ver os zig-zags do PCP entre Abril de 74 e Novembro de 75, e a sua presença no Governo depois do golpe reaccionário levado a cabo nessa data.

    Ninguém põe em causa que o PCP é uma força necessária á ESQUERDA, mas a ESQUERDA para se afirmar terá que se libertar da ideia que sem o PCP não pode haver mobilização popular, as grandes manifestações que se têm realizado contra a Troika sem o apoio do PCP e mesmo algumas claramente combatidas por este partido provam o contrário.

    Discordo também da sua visão esquemática do Centralismo Democrático, ele funcionou com Lenine, se depois foi totalmente desvirtuado, e em lugar de debate , esse centralismo serviu sobretudo para abafar a critica, e levar a um seguidismo acritico, isso é outro problema.

    Uma ideia não é errada por ser mal aplicada ou desvirtuada.

    Por ultimo , e porque este contraditório já vai longo, no PCP não há nenhum culto de José Estaline, o que há é um silenciar da critica e das vozes incómodas, como sempre houve.

    Já a admiração do Velho Abrantes, sectário quanto baste, pelo Estaline, tem muito a ver com uma geração que sempre olhou o Zé dos Bigodes como um herói que derrotou o nazismo na Europa, e pedir a alguem como o Abrantes ,que renegue o José Estaline renegue , é como pedir a um cristão que renegue Jesus.

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  2. Caro Vasconcelos Costa:

    Não tendo agora disponibilidade intelectual para mais, fico-me cordialmente por duas observações:


    1. Não gosto de o ver a afirmar uma coisa destas : «Da mesma forma, o PCP remeteu-se a uma defesa de entrincheiramento, “poucos mas bons”, à espera de que o tempo resolvesse os problemas, quando ocorreu o processo mais sério do seu sistema político-ideológico, o colapso do mundo soviético. Não me lembro de mais explicações, no essencial, do que reduzir tudo à traição de uma pequena clique, personificada em Gorbatchov, apoiando o PCP um contra-golpe ridiculamente fracassado.» É que, ao escrever isto, o caro amigo esquece-se da Resolução Política do XIII Congresso Extrordinário (1990) que procedeu a uma análise corajosa e densa como poucos partidos comunistas terão feito. é CLARO QUE O LIVRO DESSE cONGRESSO ESTÁ ESGOTADO MAS PODE SER ENCONTRADO EM QUALQUER DAS PRINCIPAIS BIBLIOTECAS PÚBLICAS DE LISBOA.

    2.SUPLEMENTARMENTE, TAMBÉM PODERÁ ENCONTRAR NO PROGRAMA EM VIGOR DO pcp EXTENSIOS ELEMENTOS QUE RECTIFICAM ALGUMAS DAS SUAS APRECIAÇÕES.
    sAUDAÇÕES

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  3. Dou a mão à palmatória. Sobre a posição do PCP em relação ao fim da URSS, escrevi honestamente mas de cor. De qualquer forma, gostaria de não se centrar nisso toda a análise que fiz. Modéstia à parte, acho que merece mais, até por, provavelmente, ser uma excepção à crítica nada amistosa e preconceituosa que em geral se lê.

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  4. zecadanado, não percebi. Acha numerosas as referências que faço ao PCP? Como não havia de ser, se é o tema do "post"?

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  5. A entrevista de José Tengarrinha da CDE , que vi há dias num canal de televisão, é esclarecedora, sobre os métodos que o PCP utiliza com os seus aliados.

    E foi interessante a parte em que refere o papel que desempenharam o Vitor Dias e do Lino de Carvalho.......

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    1. Augusto, não vi a entrevista, mas conte-me : o Zé Tengarrinha referiu-se EXPLICITAMENTE A MIM E AO LINO DE CARVALHO ?

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