terça-feira, 29 de abril de 2014

Defender o estado social: base de um programa de unidade?

Há dias, chamei a atenção, na minha página do Facebook, para a entrada “PCP, pária da Esquerda?”, neste blogue. Depois, publiquei uma nota, “Conversando amigavelmente, à esquerda”. 
Essencialmente, defendi um diálogo entre pessoas de esquerda, não constrangido por legítimos mas limitantes factores partidários. “É preciso que aprendamos a discutir fraternalmente, militantes partidários e independentes, como tento fazer. Ao discutir com um comunista ou um bloquista, respeito a sua filiação partidária, como é óbvio, mas desejo que nos sintamos juntos em relação a algumas coisas fundamentais: partilha de bases essenciais de uma política popular e patriótica, nomeadamente a libertação do domínio financeiro e orçamental, mas com respeito pela liberdade de discussão, lançando polémica interna, de grupo; defesa de uma sociedade socialista com democracia participada; espírito de independência (o que não contradiz a filiação partidária), rigor de análise; posição firme e consequente de esquerda, mas não sectária; recusa do oportunismo; crítica ao idealismo utópico europeista".
Ambos os textos tiveram larga e muito interessante discussão, mas com muitas pontas a justificarem maior tecedura. A base comum da discussão era, provavelmente, a partilha de uma visão – pluralista – de “esquerda consequente” que, em termos práticos, no que se refere a partidos, e aproveitando a nomenclatura de um amigo meu, posso chamar de esquerda à esquerda do PS (EePS). Mas um dos participantes na discussão, Rodrigo Brito (RB), colocou uma questão bem provocadora.
“Mas há muitos no LIVRE que pensam, como eu, que uma grande parte do eleitorado do PS se situa à Esquerda da sua direcção, assim como uma grande parte do eleitorado do BE se situa à direita da sua (o do PCP parece-me mais em sintonia com o partido) – e o potencial de convergência se encontraria aí, na pressão desse eleitorado sobre os partidos nos quais costumam votar (apesar da limitação dos canais de comunicação). (…) Acredito que uma grande parte do eleitorado português aceita o capitalismo, mas com um Estado Social sólido. Como traduzir isso em representação política e convergência, não sei - mas enquanto cidadão, espero alguma sensibilidade dos partidos políticos a isto.”
Repare-se que esta questão não repete a contradição global entre uma EePS real, de matriz marxista ou marxista-leninista, e um PS também real que se rendeu ao essencial do neoliberalismo, nas suas versões ordo ou neo (afinal não muito diferentes), contradição esta que, como tantas vezes tenho aqui discutido, a meu ver, constrange fortemente a unidade de acção contra a ofensiva brutal do capitalismo e contra a política de austeridade.
O que se trata, segundo RB, é de saber se é possível fazer convergir a EePS e um PS forçosamente renovado – por acção do seu eleitorado, vocacionalmente de esquerda, diz RB – para a reconstrução de um modelo de socialismo com retorno à sociedade de bem-estar (welfare state) que foi objectivo comum dos socialistas  e dos comunistas, de um lado e outro da Europa dividida do pós-guerra.
Não vou agora por considerações históricas, que ocupariam muito espaço. Mais importante é discutir se, hoje, há condições para essa ideia generosa de RB. Em todo o caso, aqui fica uma nota breve, marginal. Não se deve contrapor marxismo e estado de bem-estar, que não esteve na base da separação de marxistas e revisionistas, que se dividiram, com Bernstein, foi por causa da via revolucionária ou eleitoral para o socialismo. No caso das frentes populares, foi um objectivo comum. É certo que o estado de bem-estar do pós-guerra é normalmente associado às sociais-democracias do norte europeu, mas os seus objectivos não estão longe da política social dos países socialistas.
A defesa do estado social como base da unidade de esquerda
A posição de RB tem como suporte duas premissas: i. que a maioria dos portugueses aceita o capitalismo, mas com um Estado Social forte; ii. que uma grande parte dos eleitorados do PS e do BE se situa em aspirações políticas mais à esquerda, no primeiro caso, e mais à direita, no segundo, do que as direcções se aparelhos partidários, podendo por isso ser força de pressão sobre os partidos.
Discutirei adiante a primeira premissa mas quanto à segunda tenho fortes dúvidas. Em primeiro lugar, não tenho quaisquer dados que me indiquem se há ou qual é a desadequação do sentir e pensar dos eleitorados partidários em relação aos seus partidos e muito mais me parece arriscado pensar-se que são a maioria. O que se sabe é o resultado de sondagens e estas são muito contingentes e dependentes do quotidiano, mais do que na apreciação continuada e estruturada da política do partido. Por isto, o eleitoralismo partidário, que todos conhecemos, é de pão e circo, confiando na memória curta e na subjectividade superficial dos eleitores. Seria bom que não fosse assim, mas é a vida…
Para uma análise não idealista
A questão principal suscitada por RB, recordemos, é: pode-se restaurar um verdadeiro estado de bem-estar sem degenerescências neoliberais, como a Europa teve desde o pós-guerra até (simplifiquemos) à Sra Thatcher? A meu ver, não, e nem é por não haver uma relação de forças políticas que o permita. É porque vai contra a lógica do capitalismo, nos tempos actuais. 
Por isto, voltando à primeira premissa de RB – “a maioria dos portugueses aceita o capitalismo, mas com um Estado Social forte” – julgo que essa opinião da maioria dos portugueses (e as eleições confirmam) é desajustada da realidade. Só se explica pelo impacto cultural, ideológico e propagandístico que o capitalismo tem conseguido, agora na sua forma extrema de neoliberalismo, face a forças tradicionais de esquerda que não conseguem combater eficazmente essa hegemonia, muito por culpa própria. É tão mais lamentavelmente quanto, há uma dezena de anos, os operários (incluindo os assalariados da agricultura e pescas) e a classe média assalariada, incluindo intelectuais e quadros técnicos, representavam mais de 80% da população activa.
Começo por um truísmo. O estado de bem-estar não foi uma oferta benévola do capitalismo e, agora que ele foi quase destruído (com destaque para os países ex-socialistas agora na UE) reconstrui-lo obviamente que não será uma oferta benévola do capitalismo. Pergunto porque deixou o capitalismo que se criasse o estado de bem-estar? Porque o destruiu? Que interesse tem em reconstrui-lo?
Julgo que, sem esta opinião ter a ver com simpatia ou antipatia pelo sistema soviético, que todas essas perguntas têm respostas relacionadas com a implosão desse sistema. É idealista pensar-se que o estado de bem-estar foi arrancado, há seis décadas, pela social-democracia europeia. Ele resultou de uma situação de grande competição, política e ideológica, entre os dois mundos, agravada pelo prestígio granjeado pela URSS na guerra entre as classes trabalhadoras europeias. Onde a social-democracia não dominava e se aliava com a democracia cristã (Itália e França), não foi preciso aliciar os eleitores com as medidas sociais, assegurando-se a obediência ao sistema por meio da repressão e isolamento dos partidos comunistas e radicais.
A situação mundial mudou de uma competição bipolar para um sistema unipolar com competição interna e com globalização. A ofensiva capitalista contra o estado de bem-estar, liderada por Reagan e Thatcher, tem muito de ideológico, como fanatismo neoliberal, arma de hegemonia que o capitalismo de hoje, financeiro e desregulado (mas pode-se regular o capitalismo?…) usa para dominar cultural e informativamente uma massa eleitoral reduzida a pessoas sem capacidade crítica e dominadas por um pensamento único, à 1984.
O outro grande factor, objectivo, é a necessidade de competição do capitalismo europeu, prejudicado por uma moeda forte e um sistema económico-financeiro disfuncional, em relação às economias emergentes. A redução dos custos unitários do trabalho é tarefa imperiosa para o capitalismo europeu, com corte nas despesas públicas com educação, saúde e segurança social. Isto nem é só o que está a ser imposto aos países da periferia; os próprios trabalhadores alemães foram vítimas (com consentimento dos seus sindicatos) do plano Harz IV. Da mesma forma houve que se garantir o desmantelamento do estado social nos países do leste europeu, transformados numa reserva de mão-de-obra barata da UE, com os seus serviçais da nova cleptoburocracia.
Também não se pode esquecer o bem conseguido controlo dos sindicatos e movimentos dos trabalhadores, em paralelo à aceitação pelos trabalhadores (ou “colaboradores”…) de um espírito de colaboração de classes como modo de gerir não conflitualmente o conflito entre o trabalho e o capital.
A situação real, nestes tempos
Nestas condições, há um sentido de defesa do estado social ou daquilo que dele resta. Como em outros períodos históricos de defesa contra um inimigo comum (por exemplo, as frentes antifascistas), isto não deveria facilitar a unidade entre a esquerda (EePS) e o PS, podendo ser a base comum necessária e suficiente dessa unidade? É o que me parece ser a posição de RB, julgo que membro do Livre, ao fazer sua a tese de que o papel do Livre é trazer o PS a essa unidade. Será viável?
Primeiro, como disse, trata-se já de reconstruir um sistema social de bem-estar que está gravemente ferido, já não apenas em perigo. Vou dar de barato que o PS o quer defender, embora seja facto que, pelo menos desde o rendimento mínimo garantido, nada fez para o desenvolver ou consolidar. Para isto, há que garantir recursos financeiros, resgatando os prejuízos causados pelas troikas externa e interna. Há que garantir a solidez da economia portuguesa, aumentando o investimento e a procura interna, lutando contra o desemprego, substituindo importações. Ora nada disto me parece indissociável do nosso problema determinante, o sufoco da economia pelo garrote da dívida insustentável. É neste aspecto que se sabe bem como são de difícil convergência as posições do PS, por um lado, e do PCP e do BE, por outro.
Segundo, não basta a política de bem-estar, que até, durante décadas, serviu como factor de adormecimento do combate dos trabalhadores. Durante todo esse tempo, assistiu-se, em paralelo, a outro desenvolvimento que pode e deve ser combatido pela esquerda, em unidade. Refiro-me ao enorme crescimento das desigualdades e ao desequilíbrio, contra os trabalhadores, da relação do rendimento nacional atribuído ao capital e ao trabalho.
Terceiro, as posições do PS, a sua tentação de se aliar preferencialmente à direita, não devem ser vistas apenas como coisa conjuntural, de atenção a factores eleitoralistas. É também questão ideológica, de uma progressiva social-democratização (mas de social-liberalismo ou terceira via antes do tempo) que começou logo com Mário Soares. É por isto que me parece assimétrico o juízo habitual de que o PCP nunca se aliará ao PS, quando também é verdade que tudo na prática demonstrou, desde a contra-revolução palaciana de 1982 (revisão constitucional) que o PS nunca se dispôs a qualquer entendimento com a EePS, nem mesmo, com verdadeira seriedade, nestes últimos três anos.
Assim, não tenho esperanças numa unidade eficaz e coerente da esquerda. No entanto, afirmo categoricamente, pela minha parte, que ficaria contente com uma plataforma comum, a dar suporte a um governo (há formas diferentes de o fazer), que se centrasse no mínimo dos mínimos: a reposição do nosso estado social e uma política económica e financeira de recusa da austeridade e das receitas únicas do neoliberalismo. Ficariam coisas em aberto, como o que disse sobre a dívida ou o apoio do PS ao Tratado orçamental, mas penso que a realidade iria logo confrontar essa aliança e testar a sua solidez, com responsabilização dos partidos.
Como intervir
Temos estado a falar de partidos mas, pela amostra dessas discussões na minha página e em muitas outras de gente de esquerda, parece-me que há uma tendência interventiva, com espírito de abertura, por pessoas da tal EePS, sem filiação partidária, mas com envolvimento notório de ex-comunistas. Há um risco, paradoxal, de isto levar à focalização nos partidos, principalmente, por razões distintas, no PCP e no PS. Penso que a necessária unidade contra o domínio político, económico e financeiro que nos está a ser imposto exige um alargamento de âmbito muito para além do sistema partidário a que a democracia se tem reduzido, com omissão do valor do campo não partidário, social, de iniciativa popular, indispensável na luta democrática e patriótica. E, mais tarde, exemplo de uma democracia participativa, renovada.
Defendi um espírito de “conversa amigável, à esquerda”. Como escrevi na nota no Facebook, entendo que há regras e pontos de partida a respeitar mutuamente, mas que constrições de identidade e de “ismos” dos partidos não devem prejudicar o esforço não partidário para o entendimento. Só quem se auto-excluir é que deve ser excluído. 
Aliás, mesmo no caso dos partidos, há as consequências de imagem de uma identidade fortemente ideológica – estou a falar de um facto, sem valoração – mal compreendida pelos eleitores em consequência de uma desideologização da sociedade. Ela é em parte resultado da osmose social e da satisfação de aspirações de nível de vida, em parte do “fracasso das ideologias” que foi colado ao colapso do mundo socialista, e ainda, lamentavelmente, algum enfraquecimento da acção sindical, principalmente pela situação vulnerável dos trabalhadores precários.
O problema, para os independentes, é o da dificuldade de organizar e dar base técnica a essa acção unitária. É muito mais fácil, tecnicamente, o diálogo entre os partidos mas, insisto, o diálogo na EePS (e depois com o PS, ou desde logo com ele em aspectos particulares) não pode esvaziar o debate extra-partidário. É preciso encontrar formas eficazes. 
Alguns enquadramentos, como o “Que se lixe a troika” só tem carácter de movimentação de massas. Outras duas organizações, a Iniciativa para a Auditoria Cidadã e o Congresso Democrático das Alternativas, têm feito bom trabalho, promovido boas acções de esclarecimento (mas para já esclarecidos…) mas reflectindo apenas o trabalho de um número presumo que reduzido dos seus dirigentes, com escassa mobilização. Pior foi o manifesto 3D, que se transformou num grupo de pressão política a nível para-partidário, com evidente protagonismo, o que, suspeito, lhe estragou todas as possibilidades de intervenção unitária. 
NOTA 1 – Outra perspectiva radicalmente diferente, que não abordo aqui mas que muitas vezes discuti neste blogue, é a da criação de um novo partido, a que voltarei a seguir. Não é coisa fácil, mas também não é incompatível com a intervenção no imediato, extra-partidária, de independentes situados na EePS. Cada coisa a seu tempo.
NOTA 2 – Fica também por tratar uma situação muito esquecida entre nós, ou discutida sem rigor, a das experiências progressistas, pós-neoliberalistas ou de “socialismo de século XXI” na América Latina. Fica também aqui o desafio a esse debate.

2 comentários:

  1. Li com atenção o que escreveu, e o respondeu ao comentador militante do partido do Rui Tavares, e tenho muitas dúvidas.

    De uma coisa não tenho dúvidas , criar mais partidos á ESQUERDA, não vai conduzir a lado nenhum.

    As grandes clivagens que existiram nas ESQUERDA no século passado estão muito esbatidas, e os novos partidos que aparecem não têm uma linha ideológica claramente definida, são sobretudo, uma forma de promoção pessoal de cidadãos que se acham sub-valorizados .

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  2. Para problemas densos, perguntas que permitam dar praticabilidade à realidade: posição em relação a dois temas nucleares: sim ou não à continuação de Portugal no Euro e, num e noutro caso, em que termos; sim ou não à renegociação da dívida pública que, tal como está estruturada (para além do seu carácter parcialmente ilegítimo), constiui um garrote à independência nacional dada a sua estrutura em termos de montantes, maturidades, prazos e taxas de juro.
    Assim, assentando em questões concretas é que a discussão sobre uma qualquer unidade de esquerda deve ser realizada.

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