sábado, 18 de janeiro de 2014

Uma visão rupestre da investigação científica

Tem-se escrito, e muito bem, sobre o criminoso desinvestimento deste governo na investigação científica (e desenvolvimento experimental, ou tecnológico), agora bem expresso na escandalosa redução do número de bolsas atribuídas para doutoramentos ou pós-doutoramentos.

Além de tudo o mais, é um retrocesso em relação a um desenvolvimento notável no país, durante mais de uma década. Não sou um adepto das políticas de Guterres e muito menos de Sócrates e acho que Mariano Gago até foi um relativamente mau ministro do Ensino Superior. Mas reconheço, como quase toda a gente, o seu excelente trabalho no domínio da Ciência e Tecnologia, levando-nos aceleradamente a patamares indicativos de nível médio europeu ou superior. Dito isto, vou abordar outro tema, relacionado.

O ministro da Economia, Pires de Lima, “lamentou hoje [16 de Janeiro] que parte da investigação científica em Portugal não chegue às empresas e disse que não é possível manter um modelo de financiamento que mantenha esta distância (e que) Uma boa parte da investigação é financiada por dinheiros públicos e não chega à economia real. Não chega a transformar o conhecimento em resultados concretos que depois beneficiem a sociedade como um todo”.

Aqui está um exemplo a mostrar como a direita liberal, tecnocrática, dos negócios, é culturalmente primária e desconhece tudo o que está para lá dos seus números, dogmas e simplismos ideológicos. Mariano Gago, com a sua cultura política, a sua experiência científica, a sua noção do desenvolvimento histórico e dos seus “factores imateriais”, nunca diria tal barbaridade de incultura rupestre.

É certo que a ênfase na investigação aplicada já vem de há muito, que ela é dominante nas economias desenvolvidas e que é um critério essencial de apoio pela Comissão europeia. Mas, no caso europeu, é necessário ter em conta que muitos dos projectos financiados são de facto de investigação fundamental orientada – o que não quer dizer aplicada – apenas com boas perspectivas de uma eventual aplicação posterior. Ou, mais importante, a favorecerem o desenvolvimento do conhecimento em áreas científicas de fronteira determinantes de futuros desenvolvimentos práticos. Por outro lado, o favorecimento pela Comissão do financiamento de projectos aplicados não deve ser desligado do carácter supletivo desse financiamento, que pressupõe o investimento nacional na investigação fundamental.

Pires de Lima deve ignorar que as relações de sequência (ou pseudo-sequência) entre a investigação fundamental e a aplicada são complexas. A primeira tem muito de uma coisa designada por um palavrão que certamente o ministro desconhece: serendipidade, isto é, a imprevisibilidade de descobertas não planeadas previamente nem ligadas a desenvolvimentos anteriores. Se não tivesse havido isso, os pais de Pires de Lima, em meados do século passado, não teriam tido a penicilina. E, andando por cá, que interesse tem para a economia e para as empresas o projecto hoje com maior financiamento europeu, o de Rui Costa, sobre a organização de memórias pelo cérebro. Isso dá patentes e exportações?

A relação entre a universidade e os centros de investigação, por um lado, e as empresas, por outro, tem originado resmas de papel. Pela minha parte, veja-se aqui e aqui, entre outros artigos. Falo de universidades e centros por serem, de longe, as principais instituições portuguesas de investigação, descontado o desenvolvimento tecnológico, que não está abrangido pelo caso agora em apreço, o das bolsas. O ministro desconhece isto.

E que investigação pode ser inserida nas empresas? Em qualquer país, a incorporação directa de investigação é fundamentalmente nos sectores de alta tecnologia. Em Portugal, em termos de exportações, representam cerca de 6%, 2,5 vezes menos do que a média europeia. Por outro lado, excluindo a indústria farmacêutica, a alimentar e pouco mais, ficamos só com engenharias. 

Quer Pires de Lima acabar com tudo o que seja ciências exactas e naturais, ciências humanas e sociais? Ou, para a sua visão estreita da realidade e dinâmica científica, no que respeita à dialéctica conhecimento-produção, basta escolas e centros de engenharia, com mais direito e economia a enquadrar ideologicamente os tecnocratas dessas empresas?

E porque é que Pires de Lima nem uma palavra diz da articulação e interalimentação entre investigação e formação superior, directamente a nível de segundo e terceiro ciclo (mestrado e doutoramento), como realização de teses, e indirectamente a nível de licenciatura, como garantia da qualidade dos professores?

E Pires de Lima, neste seu primarismo demonstrado exemplarmente, faz alguma ideia de coisa muito importante e muito discutida, os mecanismos de transferência do conhecimento da investigação para as empresas (parcerias e consórcios, empresas mistas, parques, “start ups”, spin offs”, capital de risco, etc.), seus prós e contras, até a sua exequibilidade para além de chavões à Pires de Lima? Já agora, coisa comezinha, julga que a maioria dos empresários, com qualificações mais reduzidas, se entusiasmam com a ideia de contratarem doutorados, a desequilibrar a hierarquia ainda tradicional de muitas empresas?

Também já agora: o que diz Nuno Crato destas barbaridades do seu colega?

NOTA 1 – É bom não esquecer que a questão das bolsas não significa apenas um aspecto pontual da política científica, com este governo. Em boa justiça, apesar de todos os avanços na formação de doutores e no financiamento de projectos, nos ministérios de Mariano Gago, ficou sempre por resolver o problema da fixação, a ultrapassar a situação de boa formação de doutorados mas com emprego precário. Muitos dos doutorados cujas bolsas não foram agora aprovadas já iam em várias renovações, com vários anos de muito bom trabalho até como investigador principal de projectos.

NOTA 2 – Não desculpa em nada o governo, mas a comunidade científica não tem sabido ser solidária e ter forças para enfrentar esta situação. Agora é que é aqui-del-rei. Não se vê todos os dias o que é uma guerra mesquinha de comunicados de imprensa, propaganda de sucessos que ainda nem sequer correspondem a trabalho real, grandes expectativas de cura do cancro por cada trabalho banal, sobrevalorização da participação em trabalhos com dezenas de autores estrangeiros? Primadonismos de feira de vaidades. Hoje, já não reconheço o ambiente de investigação do meu tempo, modesto e desprendido. 

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