domingo, 12 de janeiro de 2014

Notas quase soltas

1. Ainda a convergência

Os dois últimos dias trazem de novo para destaque jornalístico as notícias sobre a convergência. O 3D propôs ao BE e ao Livre uma candidatura convergente nas europeias. Esta “convergência” já começa a parecer novilíngua; uma candidatura dessas é comum ou unitária. Semedo mostra simpatia pelo 3D, mas afasta-se do Livre. O 3D continua a afirmar querer uma candidatura convergente e já admite que, contra o que dizia anteriormente, talvez seja preciso constituir-se em partido. Semedo afinal não acolhe assim tão bem o 3D e afirma que o BE não prescinde de lista própria, recusando diluir-se em qualquer outra candidatura. Não ficam confusos? Não parece que nada disto é para levar a sério? Bem faz Carvalho da Silva, astutamente calado e que, ao que consta, nem é membro da comissão instaladora do 3D.

E continuo a pensar em coisas bizarras para as quais já chamei a atenção. Boa parte dos promotores do 3D são promotores do Congresso Democrático das Alternativas; porquê a duplicação? Por as posições firmes do CDA serem inaceitáveis para o PS? E, dado o peso mediático e experiência política de Daniel Oliveira, saído do BE por falta de aproximação deste ao PS, não é legítimo pensar-se que a sua posição no 3D é influente e se esconde, no manifesto (ao menos o Livre é mais transparente) o objectivo essencial de aliança com o PS? Não é isto que explica a exclusão liminar do PCP?

Já agora, sendo de supor que, com a descida do número de deputados portugueses e a baixa eleitoral do BE, esta convergência só eleja um deputado, será muito interessante saber quem será o cabeça de lista. Ainda por cima se Rui Tavares vier a juntar-se à companhia.

2. Eleitorado de esquerda

Volto a dizer que a convergência de “esquerda”, nos termos generalistas e pouco rigorosos em que normalmente é posta, é uma utopia romântica a oscilar entre as boas intenções generosas de muita gente e o oportunismo de namoros políticos inconfessados. Que esquerda se quer fazer convergir? E não é bom distinguir entre partidos e pessoas com grande motivação política, por um lado, e o eleitorado em geral, por outro? É que não são a mesma coisa.

Pode ser discutível a definição de esquerda (em relação a partidos e movimentações), por ser uma realidade e um conceito dinâmico e estreitamente relacionado com os interesses de classe representados, os valores e posições ideológicos, as relações políticas, económicas e sociais. Tudo coisas que evoluem, com avanços e recuos, fazendo variar a posição da fronteira, também esbatendo-a ou melhor a definindo.

Operacionalmente, tendo a dar um sentido útil a esta questão, não fechando tanto a esquerda que atire para o lado oposto forças e sectores sociais mais indefinidos ou conciliadores com a política reaccionária e, agora, na sua versão neoliberal; ou que, pelo contrário, dilua tanto a esquerda que a descaracterize. Por isto defendo a distinção clara entre uma aliança estratégica da esquerda real (ou radical, se preferirem) e uma convergência táctica, conjuntural, entre esta esquerda e o centro-esquerda da social-democracia.

Mas será que isto se transpõe linearmente para o eleitorado? O eleitorado do PS, por exemplo, deseja uma convergência de esquerda, com tradução governamental? Ou, por natureza, está muito mais inclinado, pela sua próxima oscilação, para uma aproximação entre PS e PSD, como mostram as sondagens que indicavam forte desejo de um acordo entre os dois partidos na crise de Julho? Falo de um eleitorado numericamente muito mais expressivo do que as dezenas de milhar que se podem prever como eleitores de um Livre ou, eventualmente, de qualquer coisa que suceda ao 3D.

Não sei caracterizar sociologicamente o eleitorado do PS, tanto mais que boa parte dele tanto é do PS um dia como do PSD no outro. Diria que o eleitor de centro-esquerda é mais sensível à solidariedade, aos benefícios sociais (de que beneficia), ao papel do Estado. Mas é facilmente manipulado por valores e princípios tradicionais, por “bons costumes”, pelo sentido da moderação como valor absoluto. Com isto, é radicalmente anti-radical (passe a contradição) e hostil ao PCP, bem como estranho a um BE que não compreende. Esse eleitorado vai votar nos convergentes para obrigar o PS a uma ancorarem (outra palavra na moda) à esquerda?

3. A armadilha para a esquerda

A esquerda real corre o risco de cair numa armadilha, nos próximos tempos eleitorais. Em certo aspecto, a sua margem de manobra é muito estreita. É importante chamar o PS a libertar-se da tendência para entendimento – tácito ou explícito – com a direita, que é facilitado por todo o enquadramento ideológico e político europeu, a juntar-se à própria deriva do PS, com toda a social-democracia. A convergência entre uma esquerda real coesa, como escrevi acima, e o PS é coisa que ninguém desvaloriza, não sendo necessários novos messias para que se compreenda isso.

Um movimento amplo centrado nos dois partidos da esquerda real deveria declarar com muito impacto, desde já – e fazer disto cavalo de batalha ao longo dos próximos tempos – a sua disponibilidade para um entendimento com o PS para a superação da desgraçada política deste governo. Se não tomar a dianteira nesse anúncio, arrisca-se a ser confrontada com posições programáticas inaceitáveis do PS, cuja necessária rejeição seja utilizada para a habitual acusação de que a esquerda real não está disposta a governar.

No entanto, por outro lado, as posições actuais do PS e as suas propostas (ver o manifesto do “Novo Rumo”) são ocas, irrealistas ou demagógicas sem recursos só possíveis com uma mudança radical na política financeira e de dependência do domínio europeu, mudança que o PS não aceita. Cedências da esquerda quanto às suas propostas essenciais – é preciso definir bem o que são – não captarão eleitorado do PS e farão perder eleitorado verdadeiramente de esquerda.

4. O anticomunismo

Nestes tempos de discussão sobre a esquerda, dou por que, mesmo como coisa que desconhecia em amigos políticos, muita argumentação parte de uma posição claramente anticomunista. É parcialmente injusto e é politicamente errado. Parafraseando Talleyrand, diria que, neste caso como em toda a política, um erro até é pior do que uma injustiça.

Começo por uma declaração de interesses. Fui comunista desde os anos 60 até 1980, mais ano menos ano, com uma interrupção devido à invasão da Checoslováquia. Saí tranquilamente, sem alardes, não só por discordar de mecanismos e funcionamentos internos, como me parece ter sido fortemente decisivo em dissidências colectivas posteriores. As minhas discordâncias referiam-se fundamentalmente à falta de correspondência do PCP às grandes mudanças sociais da segunda metade do século XX, à rigidez ideológica (quanto ao leninismo, porque considero o marxismo, por natureza, como anti-rígido) e, por outro lado, a ter presente que um partido, com a sua vida interna e mentalidade dos seus dirigentes e quadros, espelha com antecipação o que será a sociedade se ele governar.

Dito isto, e continuando a ter grandes divergências com o PCP – e também com o BE – longe de mim colocar-me com alguma equidistância, como vejo agora muitos fazerem, entre o PCP e o PS, estilo “estão bons um para o outro”. E, infelizmente, até chego a ver gente séria repetir coisas de propaganda facilmente desmentíveis por um pouco de estudo, sem necessidade de qualquer simpatia, apenas objectividade.

Como se quer construir alguma coisa nova à esquerda, seja um novo partido seja um movimento, em ambos os casos bem caracteristicamente coisa de metrópoles e de intelectuais, sem se ter em conta a força eleitoral, popular, autárquica, até mítica, do PCP? Ou a influência do BE em sectores mais específicos, mas também importantes, como os jovens intelectuais e os estudantes?

Mas também o PCP tem responsabilidade. É coisa como a mulher de César. Não me interessa que o PCP diga que não é nada daquilo de que desde há décadas a direita (e não só) o acusa, caindo muito mais fortemente no juízo das pessoas depois da falência do mundo soviético. Pode não ser nada disso, mas também é preciso não parecer.

5. Uma esquerda “limpa”

Primeiro: com os seus 20% de votos, a esquerda radical não pode ambicionar governar. Que outro eleitorado pode conquistar? Segundo: está sujeita a uma campanha persistente de acusações de ser uma esquerda irrealista, irresponsável, negativista, oposição que não quer correr os riscos da governação; como ter credibilidade perante o eleitorado do PS mais à esquerda como sendo essa esquerda factor de condicionamento, num governo, de uma política conciliatória do PS?

Para responder a isto, é preciso uma reconversão da esquerda, em termos de uma “esquerda limpa”. De forma alguma limpa da sua combatividade, da sua coerência. De forma alguma levando os compromissos necessários até ao ponto de cedências inaceitáveis. “Limpa” é no sentido de menos presa a factores de imagem negativos, menos defensiva e mais empenhada no esclarecimento e no debate ideológico e económico, séria nas propostas, sem demagogia, realista nos fundamentos técnicos das propostas. Renovada nas relações entre partidos e sociedade, na rejeição do partidarismo instrumentalizador, na valorização dos corpos intermédios, dos movimentos sociais, das causas transversais. Modernizada na sua formulação de partidos de classe, tendo em conta a evolução da estrutura de classes e da composição das camadas populares.

Como escrevi há dias, o eleitorado do “pântano” está farto de promessas e mentiras, de chavões, e por isto anda confuso e permeável à desinformação manipuladora. Precisa de ver propostas firmes e não ambíguas. Os seus preconceitos contra a esquerda fecham-no ainda mais ao mesmo tipo de coisas vindo dela. Exige-se da esquerda posições muito claras, expostas pedagogicamente e com rigor, bem como a desmontagem serena e paciente das acusações contra a esquerda real que, anos e anos, foram instiladas na cabeça de muita gente (não isentando a própria esquerda por as justificar em alguns casos).

Uma “esquerda limpa” não é a descaracterização à italiana ou a cedência oportunista adivinháveis em “convergências” hoje tão em foco. É a deslocação da discussão desse aspecto conjuntural do plano do tacticismo político para o plano da estratégia política. É um trabalho corajoso e transparente, também pelo exemplo prático, de autocrítica e de desmontagem, quando for o caso, de críticas injustificadas. É a oferta aos eleitores de uma nova relação com eles, honesta e politicamente séria, com um programa firme, coerente, com alternativas claras, sem ambiguidades e sem subterfúgios eleitoralistas.


NOTA – Em coerência com a posição defendida nesta entrada, este blogue vai passar a dar boa atenção e esforço à discussão de propostas concretas e alternativas, mais do que, como hoje é vulgar na blogosfera política, ao simples comentário ou à escrita de “agitação” ou panfletária (sem sentido pejorativo). Provavelmente, pela maior exigência na escrita, a frequência de publicação de entradas pode ressentir-se.

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